quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Aquele estranho encantamento…

            Na Faculdade de Letras de Lisboa, falava D. Fernando de Almeida, com imensa ternura, do que era, nesse já longínquo ano lectivo de 1965-1966, a sua actividade em Idanha-a-Velha. Sabia que era capaz de se meter no carro sempre que de lá chegava notícia de achado fora do comum. A mim encantavam-me tantas inscrições e, de modo especial, uma, a dedicada a Igaedus, divindade protectora do que, em tempo dos Romanos, fora a civitas Igaeditanorum.
            Encontrara-se a inscrição não muito longe da capela – de grande devoção das gentes raianas – em honra da Senhora da Almortão. Exacto, essa a que a gente canta ao som ímpar do adufe. Teria vindo a Senhora substituir o pré-romano Igaedus, cujo culto também os Romanos fizeram questão de respeitar? Ainda tenho cópia do trabalho prático que fiz, em Maio de 1969, juntamente com Joaquina Salgueiro da Silva, para a cadeira de História da Cultura Portuguesa, regida pelo incomparável Vitorino Nemésio, a que demos o título de «Continuidade cultural e romarias (A Senhora do Almortão)».
            Encanta-me Idanha-a-Velha, assim aninhada a lavar-se no Ponsul, sob a vigilância, mais além, do Monsanto altaneiro. E por entre imaginado chocalhar de rebanhos, o adufe. Adufe que é também – e excelentemente – o nome que o Município de Idanha-a-Nova quis dar à sua revista cultural anual. Acabo de ser obsequiado com o nº 25, de 2017 (e tenho a colecção completa!). Em versão bilingue (Português e Inglês), são 144 páginas que também elas me encantam, pelo saber nelas derramado acerca das gentes e das paisagens de Idanha. Ao som do adufe se concretizou a presença portuguesa na Feira de Natal de Estrasburgo, pelas mãos de Fernanda Gabriel, natural de Monsanto e correspondente da RTP naquela cidade. E acredito que também será com esse ritmo por fundo que Stephan Doeblin trata das sementes vivas no Ladoeiro, que Luís Paixão Martins rege o Clube de Tiro de Monfortinho, Licínia Gaspar, de pá de forno em riste, leveda e coze tradicionalmente o pão em Penha Garcia e Henrique Raposo trata dos cogumelos, a que, aliás, mais umas páginas desta vez são dedicadas, para que se saibam distinguir e bem apreciar. Desenham-se os piu pius (que importa conhecer e proteger). Fotografam-se as velhas portas, prenhes de segredos e tradição. Desenham-se também as paisagens rurais «fora dos caminhos». E o riso deliciado de Maria Nascimento faz-nos crescer água na boca com os seus incomparáveis petiscos beirões.
            Ai, o som do adufe! Ai, a melodia que se desprende das páginas desta revista singular!...

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 719, 11 de Novembro de 2017, p. 11.
 

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