sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Escapar à chuva!

             «O Baixo Alentejo e o Algarve devem escapar à chuva» – anunciou a locutora da Antena 1, no passado dia 23 de Novembro, no programa da manhã, por ocasião das informações meteorológicas.
            Eu estivera em Loulé na antevéspera e a conversa com o motorista da Câmara que me fora buscar à estação – caíam, na altura, uns chuviscos – incidiu naturalmente sobre a chuva.
            Chovera ali na noite anterior; pouca coisa, porém, para as necessidades prementes que se faziam sentir. Aliás, não fora sem razão que o Município decidira criar um Gabinete de Eficiência Hídrica, justamente para racionalizar o mais possível o consumo e o aproveitamento da água. Recordei-me também dum dos primeiros interesses de meus tios: fazerem uma cisterna para armazenarem a água das chuvas.
            Dei comigo a pensar na frase «escapar à chuva». Que é como quem foge duma praga ou perigo iminente.
            E quem disse ao senhor do texto dito que o Baixo Alentejo e o Algarve queriam escapar à chuva? Para quem vive em meio urbano onde raramente a água falta, a chuva é, na verdade, um incómodo, chatice, tenho que levar guarda-chuva, a gente molha-se toda, depois as varetas não obedecem…
            Lembrei-me, até, daqueloutro locutor a perguntar à colega que estava nas informações de trânsito: «Então, já há algum acidente?». Como quem pensa: «Isto sem acidentes é uma pasmaceira!»…
            Reflexos, estes, inconscientes porventura, de uma visão ligeiramente distorcida da realidade desejável. Precisa-se de chuva, é bom não haver acidentes – este, o prisma pelo qual também se deveria pautar a informação.

                                                                     José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 277, 20-12-2019, p. 17.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Entradas desabridas

             Dei comigo a pensar nas entradas desabridas.
            E foi porque vestira às avessas a camisola interior e só reparei nisso quando já havia por cima dela a camisa, devidamente metida nas calças, e uma camisola. A primeira reacção foi:
            – Pronto! Já vesti mal esta porcaria outra vez!
            Matei-a, felizmente, à nascença e, serenamente, fiz o propósito de, na próxima, ter mais atenção ainda! E, claro, evitar sempre a entrada desabrida.
            «Desabrida». Agora reparo no sentido do termo: desabrida por não ter qualquer resguardo, recato ou ponderação. «Entrada», por seu turno, lembra-me logo o futebol, onde uma entrada dita perigosa ou mal intencionada é de imediato punida pelo árbitro.
            Punida. Boa ideia. Será que tem árbitro e punição o uso corrente de palavras ‘feias’ como porcaria e parecidas? Tem, consciencializo-o eu agora, após tantos anos passados: faz-nos mal! Aumenta o nosso mal-estar; contribui para cimentar aquela carga emocional negativa que nos ensombra a existência – como o aumento dos impostos, as guerras, as catástrofes quotidianas, os conflitos sociais… Quanto a esses, pouco nos é possível fazer; mas quanto a nós, ao nosso íntimo, à nossa relação com os demais (desculpar-se-me-á o tom), uma atitude serena constitui válida contribuição para nos sentirmos bem connosco e saborearmos plenamente a vida.
            – Pronto! É sempre assim, não tens cuidado nenhum! Bolas!
            Sim, é agressão à pessoa a quem nos dirigimos; todavia… não o será ainda mais para nós próprios? Se omitirmos o ‘sempre’, o ‘nenhum’, provavelmente se encontrará outro termo para resolver a situação, sem apoucar a criança, o marido, a mulher… que, naquele momento, por qualquer motivo, não tiveram cuidado. Ou nós achamos que não tiveram. Houve um descuido? O próprio descuidado fica magoado consigo mesmo, não carece que, ainda por cima, nós o critiquemos! E a resposta, a melhor resposta, para nós e para o descuidado, será não a da entrada desabrida mas a de encarar a situação e… resolvê-la!
            Que raio de crónica esta, dirá quem me leia. Perdoe-me o desabafo! É que, hoje de manhã, eu vesti a camisola interior ao contrário e ia perdendo a calma!...

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 767, 2019-12-15, p. 11.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Da venda pessoal ao comércio massificante – O caso de Cascais

                Situado na ponta ocidental do que poderia chamar-se a «península de Lisboa», entre a Serra de Sintra e o Oceano Atlântico, o concelho de Cascais partilha-se entre um interior onde se viveu da agropecuária até aos anos 60 e o litoral apetecido desde sempre mas sobretudo a partir da 2ª metade do século XIX, quando se começou a criar o hábito dos banhos de mar. A evidente dicotomia entre o campo e a «cidade» – susceptível, pois, de ser paradigma, um válido testemunho das transformações por que passou o comércio nos últimos 50 anos.
           
1 – A venda pessoal
            Chamava-se «venda» ao estabelecimento comercial onde praticamente tudo se comprava. O dono era conhecido, conhecidos eram também os fregueses.
            Nesse tempo, o trabalho era pago à semana, não havia semana-inglesa e, por isso, dinheiro «fresco» era ao sábado. Até lá, o valor das compras era assente no «rol», um livro onde cada página era duma família. Saldavam-se as contas ao sábado ou quando, por via de qualquer serviço extra, o dinheiro aparecia.
            Tudo em regime de mútua confiança, embora os proprietários da venda soubessem do risco de sofrerem um «calote», nome pejorativo dado à dívida passível de não vir a ser saldada, por penúria ou maldade do freguês.
            Na venda (estabelecimento), havia o essencial para o dia-a-dia; contudo, isso não evitava a existência de vendedores ambulantes. O padeiro era um deles, vendia ao domicílio e sabia quanto é que cada casa gastava de pão por dia. O leiteiro, visita diária também. E as varinas! Essas iam de madrugada à lota da vila arrematar as tecas; punham as canastras nas camionetas de carreira aí pelas nove, dez horas e espalhavam-se pelos lugares, cada uma pelo seu, chegando a meio da manhã, para o peixe ainda servir para o almoço. O azeiteiro vinha semanalmente ou de 15 em 15 dias; trazia azeite, vinagre, óleo, petróleo, álcool desnaturado… Até o amolador e o funileiro eram visitas periódicas!
            Uma vez por semana, as donas de casa rumavam à «praça», nome por que se designava o mercado saloio. «Saloios» eram, na Idade Média, os habitantes dos arredores de Lisboa que a abasteciam de produtos hortícolas. Na praça era mesmo o que se vendia. Fresquíssimo. Da época. Colhido no dia anterior. Tomate no tempo do tomate, uvas no tempo das uvas, melões no tempo dos melões, nabos no tempo dos nabos…
            Conheciam-se quem vendia. Regateava-se, quando se tratava de freguesa certa… Ir à praça era um ritual. Aí se reencontravam amigas, se sabiam as novidades, à boa maneira das feiras medievais…
            E esse recuar no tempo fez-me recuar mais também: para o período negro, do racionamento, que se viveu no após-guerra. Cada família tinha direito a uma porção de azeite, de açúcar, de petróleo, de sal… Havia senhas e ia-se aqui e além, na esperança de poder ser aviado, porque nem sempre havia de tudo…

2. O pânico dos anos 60
            Este panorama tranquilo viria a ser perturbado com o aparecimento dos supermercados e, depois, com as «grandes superfícies». Cascais foi dos primeiros a ter uma loja desse tipo, o Pão de Açúcar, inaugurado em Setembro de 1973 (do actual grupo Auchan) e dos primeiros a ter um shopping center (Maio 1991).

            Antecipando-se à anunciada dificuldade do comércio a retalho – os padeiros já haviam criado, em Outubro de 1953, a União Panificadora de Cascais (hoje, Panisol) – os pequenos comerciantes uniram-se n’A Luta (Cooperativa Abastecedora de Produtos Alimentares do Concelho de Cascais), que, mediante a compra por atacado, permitiria manter os preços baixos e fazer face a esses «monstros» do comércio.

            Uma resistência que, arduamente, se manteve por mais de uma década. Sucumbiria depois, mormente com a internacionalização do comércio (hoje, comem-se melões nem se sabe bem donde…) e as facilidades concedidas aos chineses…

            Morte anunciada? Creio que não.

 

3. O valor do património

            Também nos produtos comerciáveis, o conceito de património entrou, sobretudo quando – a todos os níveis da população – se começou a compreender que, além da qualidade, o produto local ganhava «substância», isto é, começava a impor-se de novo. Já se preferem a laranjas do Algarve, os melões de Almeirim, as azeitonas de Elvas, os ananases dos Açores, o pão alentejano...

            Por outro lado, as vicissitudes financeiras das famílias – os filhos a não terem emprego, os idosos a serem cada vez mais, a permanente instabilidade do trabalho, a falta de confiança nos governos regidos mais por interesses partidários do que pelo bem-estar do Povo… – essas vicissitudes obrigaram, de certo modo, a um retorno ao valor da comunidade, do espírito de vizinhança e, consequentemente, a loja de bairro  voltou a ganhar preponderância.

            Nesse caminho estamos.

            Nesse caminho, auguro eu que continuemos, inclusive para salvaguarda dos nossos patrimónios. E sublinho nossos, porque, neste caso, já não é de Cascais que falo, mas, inclusive, da mais recôndita aldeia do interior alemão. A todos cabe essa missão!

 

                                                      José d’Encarnação

Publicado em Portugal-Post [Correio Luso-hanseático], Hamburgo, 66, Dezembro 2019, p. 38-40. 
O texto tem versão alemã – Vom “Tante Emma-Laden” zum Massenbetrieb – Am Beispiel von Cascais – da autoria de Karin von Schweder-Schreiner. A publicação original impressa pode ser vista e descarregada em: http://hdl.handle.net/10316/88469  
 
Varinas (Foto do Museu do Mar de Cascais)
O mercado de Cascais num antigo desdobrável turístico
O mercado da Vila de Cascais na publicidade institucional
 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

20 anos da Orquestra

Ninguém apostaria, há 20 anos, que o projecto tivesse pernas para andar. Tantos semelhantes haviam nascido para se dissolverem depois, mesmo antes de largos meses andados. Este, não. O projecto OCCO – Orquestra de Câmara Cascais Oeiras, 20 anos passados, recomenda-se.
      Vários factores contribuíram para o êxito. Primeiro, a coragem e perseverança sem desfalecimentos do Maestro Nikolay Lalov; depois, a capacidade que teve de envolver duas câmaras municipais, convencendo os respectivos presidentes de que era aposta ganha; em terceiro lugar, porque o Maestro se soube rodear de colaboradores activos como ele, mais com o olhar na aurora do que na moribunda dolência do pôr-do-sol.
      Marcelo Rebelo de Sousa foi dos primeiros a acreditar. Aceitou ser presidente da Assembleia-geral da associação criada para suporte das actividades e, como teve ocasião de o dizer no concerto comemorativo do passado dia 30 de Novembro, não está nada arrependido e muito se congratula com o percurso feito. Contente também toda a equipa de Lalov, onde se inclui a esposa e a filha, Lilia Donkova, 1º violino, que desta vez nos brindou com um exímio solo.
      Começou a sessão com a projecção de um filme, sugestivamente intitulado «20 anos a crescer», em que se traçou uma panorâmica do que tem sido a actividade da OCCO. Nikolay Lalov falou dos projectos sempre a despontar, culminando – se assim podemos falar – com a abertura do Conservatório de Música de Cascais. É que a proposta não foi apenas a de manter uma orquestra residente que dá concertos de vez em quando, conforme o programado: há também a vertente pedagógica! Aliás, praticamente cada executante da OCCO é, simultaneamente, professor. Ou seja, estamos perante um alfobre!
      Nunca será de mais realçar, por exemplo, a importância que teve a criação da Orquestra Sinfónica, porque, além dos quatro concertos anuais (as quatro estações, teremos no dia 14 o de Inverno), outros há; e cada concerto constitui mais uma experiência única que engrandece os executantes, na medida em que o rigor sempre foi paradigma do trabalho do Maestro.
      E, por se falar em escola, recordar-se-á que, no concerto do dia 30, actuaram igualmente – na segunda parte, com o maior brilhantismo – o Coro de Câmara do Conservatório de Música e um coro misto em que se incorporaram alunos do Conservatório e do ensino articulado da Escola Secundária Frei Gonçalo de Azevedo. Tive ocasião de trocar impressões com o director desta escola, sediada no Bairro Massapés (Tires), Prof. David Sousa, que manifestou o seu entusiasmo pelos singulares resultados que a introdução da Música, quer a nível coral quer de aprendizagem de instrumentos, logrou atingir, mormente no domínio educativo e de realização pessoal do aluno. Congratulamo-nos.
      Um encanto ouvir o programa, desta vez integrando textos mais conhecidos do que É habitual. E se a interpretação de Tiago Vicente, à guitarra, do adágio do concerto «Aranjuez» encheu de mui serena ternura o auditório, toda 1ª parte nos envolveu: de Beethoven, a abertura do bailado «As Criaturas de Prometeu»; de J. Massenet, a meditação da ópera «Thaïs»; de Bizet, dois andamentos da Suite Arlésienne nº 1. Com os coros, a 2ª parte foi vibrante, a começar na marcha militar de Schubert e a terminar no Hino da Alegria, de Beethoven.
      Concerto de antologia!

                                    José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 309, 2019-12-11, p. 6.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A Casa do Arqueólogo


           De tudo o que vem – e muito é, como se verá – no volume 27 de «Adufe» referente a 2019, este título me chamou particularmente a atenção e fui logo ler, deixando para trás outros temas a que já se voltará.
            Recordava-me de, no acompanhamento que sempre fiz questão de ter em relação aos vestígios romanos de Idanha-a-Velha (a ‘civitas Igaeditanorum’ dos Romanos), se haver saudado a possibilidade de casas que o Município comprara junto à muralha poderem vir a ser aproveitadas para apoio substancial à investigação. Algo de inovador e mui precioso, atendendo a que Idanha-a-Velha está longe, nos confins do Interior, e de muita coragem se deve vestir quem se decida a lá passar algum tempo a estudar.
            Para além de espaço de reserva para alguns materiais arqueológicos que sempre se encontram, haveria um laboratório para o seu adequado tratamento e, sobretudo, alojamento. Diz no «Adufe» que é uma «casa rústica, recuperada com a subtileza e os traços do seu lugar – dispõe de um quarto de casal, outro individual, com duas camas e uma divisória».
            Fiquei encantado ao verificar que o sonho se concretizara. Agora, é habitar o local. É mostrar como, ainda em pleno dealbar de um século incorrigivelmente urbano, a vida rural, em plena comunhão com a Natureza e no estudo pelo que os Antigos nos legaram, se pode antojar como realidade a viver.
            Aliás, a leitura de mais um número desta revista cultural de Idanha-a-Nova proporciona-nos, na verdade, mil e uma razões para saber que o campo é bom lugar de acolhimento. Na entrevista a Francisco Sarmento, representante em Portugal da ONU para a Agricultura e Alimentação, empenhado no combate às «faces negras da globalização: a fome e a má alimentação» se apontam, por exemplo, caminhos para «quebrar o ciclo da insegurança alimentar e nutricional»: a vontade política e a concertação entre os actores relevantes.
            Lugar ainda para ilustrada reportagem sobre o Bodo de Monfortinho; sobre a empresa Sementes Vivas (nome traduzido, certamente pelo ‘senhor Google’, como ‘Living Seeds’!…), sediada em Idanha-a-Nova desde a sua criação em 2015, destinada a promover a produção de sementes ‘100% biológicas e biodinâmicas’; sobre o ímpar acervo de arte sacra do núcleo museológico da Misericórdia de Proença-a-Velha… E convivemos com a pacatez dos valados de pedra solta, e as patas, os pêlos e os olhos de várias e preciosas espécies de aranhas.
            «Adufe» é assim: um olhar para o nosso Interior profundo. Como deve ser!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 766, 2019-12-01, p. 12.