quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Ainda os toiros em Cascais…

            Não sou aficionado das touradas. Aprecio, porém, a arte dos cavaleiros e a sua íntima comunhão com a montada. A inteligência do cavalo no despique com o touro. Não houvera o sangue das bandarilhas e tudo o que se sabe quanto ao antes e ao depois da lide em relação ao touro e, decerto, outro seria o meu entender. Admiro a coragem dos forcados.
            Vêm de novo estas reflexões a propósito de mais um livro sobre o passado cascalense, devido à mesma dinâmica dupla – Manuel Eugénio e Zé Ricardo – a que já fiz referência na crónica anterior. Parabéns, Amigos! E que lhes não doam as mãos na incessante busca das nossas raízes!
            Algo, porém, ficou por dizer e daí que ora retome o tema.
            Primeiro, para assinalar o enorme recheio documental ali apresentado.
            Nomes, fotografias, cartazes – poderia dizer que esta trilogia faz a grande riqueza deste imenso e minucioso repertório, que não retrata apenas o mundo dos toiros, mas toda uma sociedade e uma época de características singulares, a não esquecer! E que fotografias, senhores! E que cartazes! A cabeça do «Sautão», de 470 kg, da ganadaria do Engº Francisco Goes, o primeiro toiro a ser lidado na corrida de inauguração da iluminação eléctrica, a 6 de Julho de 1974, pelo cavaleiro Manuel Conde. O trajo dos Forcados Amadores de Cascais, grupo ainda existente…
            Depois, para aplaudir o enorme espírito de abertura da União de Freguesias Cascais Estoril, por os seus responsáveis (nomeadamente, o seu presidente, Pedro Morais Soares) entenderem que é preciso reservar verbas para editar um livro palpável, de papel, que se pode pôr na estante ou na mesa principal da sala de estar para mostrar aos amigos vindos doutras paragens, a fim de que eles compreendam que a vila não é apenas o que os meios de comunicação social, virados para as ‘vidas’ da ‘sociedade’, lhes mostram e que, com soez ironia não despojada de manifesta maledicência, os entremezes cómicos da rádio e da televisão mui de boamente veiculam. É muito mais a vila a quem, em 1364, el-rei D. Pedro I deu alforria em relação a Sintra. Tem uma história para contar! E os livros aí estão para isso mesmo!

Recordações
            Quando chegamos a certa altura da vida, acabamos por ter receio de que factos para nós significativos – que para os outros certamente nada dirão – venham a ser inteiramente esquecidos.
            Permita-se-me, pois, que refira dois aspectos. Prende-se o primeiro com os atrás citados cartazes, onde as corridas eram sempre «imponentes», «extraordinárias», «sensacionais» ou «grandiosas». E os toiros – «6 – toiros – 6!»... – sempre «imponentes» também, «poderosos», «bravos», «lindos», «bravíssimas novilhas» (estas, em número de 9, lidadas a 9 de Março de 1975!...). E a «Corrida de Gala à Antiga Portuguesa», num desfilar de montadas ajaezadas a rigor e os cavaleiros em seus esplendorosos ‘trajes de luces’. E aqueles pasodobles – olé!... – a sublinharem artes e perícias!... Enfim!
            Estava-se quase no fim da paginação do Jornal da Costa do Sol (é o segundo ponto a referir!) e lá vinha o Zé Coimbra, da Comissão da Praça de Touros José Pessoa, à última hora, «deixaram espaço para o cartaz, não deixaram?». Publicitava o jornal a corrida do domingo seguinte, tinha de ser! E, depois, era um encanto ler – com aquela bem saborosa terminologia – os circunstanciados relatos dos dois comentadores de serviço, ora um ora outro: António Lopes Portelinha e João Carlos Carraça. Castiços!...
                                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 247, 2018-08-29, p. 6.

 

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Patrimoniices cascalenses 17 - O Sanatório de Sant’Ana

            O azulejo apresentado para a adivinha é um dos muitos – e preciosos! – que ornamentam corredores e a fachada do actual Hospital Ortopédico de Sant’Ana, na Parede.
            Mostra, em letras entrelaçadas, o nome por que foi primeiramente designado: S(anatório) de S(ant’) A(na). Assim se chamou porque as condições atmosféricas que o rodeavam (e ainda rodeiam), designadamente as características da exposição solar e do ar marítimo, o aconselhavam largamente para a terapêutica das doenças ósseas. Diz-se, aliás, que condições iguais de sol e de iodo só numa prainha dos confins do Japão…
            Vale a pena aproveitar o ensejo para contar como parece ter estado «embruxado» o começo desta unidade de saúde, ora mundialmente reconhecida. Disso nos dá conta Ferreira de Andrade, no seu livro Cascais – Vila da Corte, uma passagem que, pelo seu interesse, transcrevi em Cascais e os Seus Cantinhos (p. 150):
            «Mandaram construir Dona Amélia Biéster e seu marido, Frederico Biéster, na Parede, um sanatório – o actual Sanatório de Santana.
             Foi encarregado da direcção e escolha do local o Dr Sousa Martins, que designou para elaborar o projeto o Prof. José António Gaspar, da Academia das Belas Artes. Entretanto, faleceu o Doutor Sousa Martins e era convidado para prosseguir a obra o Doutor Manuel Bento de Sousa, que pouco depois perecerá também.
             Houve certa superstição e, antes que outro médico fosse convidado, morreu Frederico Biéster e, poucos meses volvidos, sua mulher.
             As obras interromperam-se; o arquitecto Prof. Gaspar, impressionado, abandonou-as».
             Foi, pois, uma tia e herdeira dos Biéster, D. Claudina de Freitas Chamiço, quem decidiu não deixar a obra a metade. Entregou a sua orientação ao notável cirurgião Gregório Fernandes. A primeira pedra foi lançada a 7 de Agosto de 1901. Rosendo Carvalheira, um nome grande da arquitectura portuguesa, dirigiu os trabalhos. A inauguração fez-se a 31 de Julho de 1913.

 

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Aquele burrico emociona-me!

             Impressionante – mas dizem-me que é assim! – como, entrados na década dos 70, revivemos e até estão mais vívidas na ideia as cenas da nossa infância. Explica-se, hoje, que o «disco» ainda estava virgem e nele profundamente se gravava tudo o que nos acontecia, de bom e de mau.
            Assim, estes dias de caloraça – como então se dizia – recordaram-me as férias em Agosto no Corotelo. Minha avó, após o almoço, achava (e bem!) que eu devia ir dormir a sesta no sobrado. Eu ia. A casa estava na penumbra em que as janelas fechadas, por mor do Sol, a envolviam. Fazia fresco e eu adormecia ao som de uns barulhinhos familiares, quais máquinas de costura. Uns bichinhos com que nunca travei conhecimento, mas que, ao que parece, estavam nas canas do telhado. Som a espaços que acabava por me adormecer, sem que eu tivesse medo que me caíssem em cima…
            Aconteceu agora que, de novo, me emocionei. Uma vizinha, amiga antiga de meus pais, são-brasense como nós, tinha uns quadros a estragarem-se numa arrecadação do quintal. «Coisas do Algarve», disse-me, «de que vai gostar de certeza e a mim para nada servem». Aceitei, quando mos mostrou. Seis desenhos de Júlio Amaro, a retratarem instantâneos da vida algarvia, mormente da zona por onde ele se passeou: a Praia da Luz, Alte, a igreja de Lagos, as chatas num repouso da faina… De todos, porém, mostrados naquela singeleza de traço inconfundível e esplêndido, o que mais me emociona é o da velhota, trajada como minha avó se vestia, de chapéu na cabeça e xaile pelas costas, a levar o burrico à fonte. Duas infusas grandes – quais ânforas romanas – uma de cada lado das cangalhas. E lá ia. Adivinho-lhe o passo lento. E todos os dias, ao subir a escada, paro diante deles, em reverente saudação ao Passado!
 
                                                               José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 261, 20-08-2018, p. 13.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

O livro sobre a tauromaquia em Cascais

            Houve logo quem bramasse: «Um livro sobre toiros, agora que toda a gente está contra as touradas?! Só visto!...».
            A crítica só pode ter saído da boca de quem não sabe distinguir os tempos e as mentalidades e não tem a noção de que algo que hoje é branco amanhã pode ser preto, se mudarem as circunstâncias. Criticamos os políticos por dizerem hoje uma coisa e amanhã outra completamente diferente; amiúde, eles nem têm culpa e explicam: «Senhores, as circunstâncias mudaram!».
            Mudou hoje a mentalidade geral sobre as corridas de touros, nomeadamente porque se começou a dar mais importância ao mundo animal, se começou a ver quão importante é a biodiversidade. Dantes, eu matava lagartos, cobras, lagartixas, aranhas; eu armava aos pássaros e matava-os (quando lhes acertava) com uma fisga improvisada; hoje, saúdo as pequeninas lagartixas que andam pelo meu jardim, preservo as osgas que me passeiam pelas paredes da garagem, porque me comem os insectos, e também por isso protejo as aranhas…
            Mudam as mentalidades e o facto de as corridas, hoje, serem globalmente mal encaradas, tal não quer dizer que, no passado, esse não tivesse sido um entretenimento típico das zonas mediterrânicas e, de modo especial, de Espanha e de Portugal. Aliás, não se combatiam as feras em plenos anfiteatros romanos e não foi o nosso Salvação Barreto chamado a fazer a pega no filme «Quo Vadis?», que evocava precisamente um desses espectáculos, em que (pesa-nos!) às feras também eram lançados os Cristãos?... Na actualidade, o solene anfiteatro romano de Nîmes, em França, transformou-se em praça de touros, mas sobretudo em palco de grandes espectáculos musicais. Tal como a Praça do Campo Pequeno, em Lisboa.

Uma tradição
Emília Sabino, representante da Junta
            O livro A Tauromaquia em Cascais, da autoria dos já consagrados reveladores do passado cascalenses, Manuel Eugénio Fernandes Silva e José Ricardo C. Fialho, em muito boa hora apoiado pela União de Freguesias Cascais Estoril e apresentado perante mais de meia centena de amigos e cascalenses, no final da tarde do passado dia 18 de Junho, no largo fronteiro ao edifício da Junta, vem precisamente no sentido de nos revelar essa tradição, a das touradas em Cascais.
Manuel Eugénio e Ricardo Silva
            Uma tradição que remonta ao século XIX e se prolongou décadas afora, com a construção de sucessivas praças, até à Monumental, inaugurada a 15 de Agosto de 1963 (faria agora 55 anos!) e demolida em Março de 2007, por a Santa Casa da Misericórdia de Cascais ter considerado o empreendimento não rendível, apesar de os baixos da praça estarem ocupados por estabelecimentos comerciais e no terreno derredor se efectuar uma feira, a conhecida «Feira da Praça de Touros». Demoliu-se, ficou longos anos – demasiadamente longos! – o terreno a servir de parque «informal» de estacionamento (como hoje se diz) e só agora para aí se logrou a aprovação de um projecto urbanístico, que também não vai ser aceite sem reservas.
Aspecto da assistência à apresentação do livro
            Conta-se tudo, tintim por tintim, nesse livro, ano após ano, corrida após corrida: quem se notabilizou, que ganadarias, que cavaleiros, que forcados, se esteve frio, se o vento (o grande inimigo, sempre, das touradas na Monumental!...) incomodou, se houve praça cheia ou assim assim…

                                                                              José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 245, 2018-08-15, p. 6.

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

A economia da imagem

              A palavra «imagem» leva logo o homem a pensar em mulher bonita e a mulher em busto masculino bem feito e musculado. Não é inocentemente que os publicitários privilegiam uma e outro e que bem conhecida marca de café está indelevelmente ligada ao sorriso matreiro de George Clooney…
            Chegou-se agora ao extremo – amiúde deliciosamente alvejado pelos humoristas e não só – de, com todo o requinte, nos apresentarem um prato sob a elegantíssima palavra… como é? Ah! … Gourmet! E empratar constitui já uma das técnicas em que os estudantes das escolas hoteleiras se têm de aprimorar!
            Lembro-me, a propósito, de ter lido mui saboroso escrito acerca de inovador prato em que «com feijão» era um dos ingredientes. E era! Um feijão apenas! Ora, para português que «feijão» é mesmo «feijoada à transmontana» ou «sopa de feijão com hortaliça», aquele fêjanito ali perdido no meio do prato como que a gritar por socorro era de… rir e chorar por mais! Literalmente! E de atirar essa imagem às urtigas!...
            Quando havia bancários para atendimento ao público, eles, sim, sempre engravatados, sabiam, no entanto, que vestir trapos não significa pobreza (e, aqui para nós, quanto não custam agora essas calças de ganga rasgadas à maneira, soubesse-o minha mãe, que toda se azafamava a pôr joelheiras nas de meu pai e fundilhos nas minhas, que eu as delia nos escorregas!...). Sabiam isso do trajar os bancários, porque, muita vez, do bolso de calças coçadas saía volumoso maço de notas!....
            Mas esta questão da imagem veio-me assim de repente à mão de semear, porque eu queria dar conta dum episódio em que ela, a imagem, me descoroçoou deveras. Eu conto.
            Não quisemos jantar em Espanha e parámos, por isso, no primeiro restaurante português, logo a seguir à fronteira.
            Era do tipo self-service, mas apercebemo-nos que havia sopa («caldo verde», disseram-nos) e as hipóteses mais viáveis eram prego no pão ou sanduíche de panado. Estava um rapaz na caixa e atendia um senhor ao balcão. Iam dando as ordens para dentro, para a cozinha. Quando a recebemos, aquecida a tigela ao microondas, verificámos que, afinal, a sopa era de nabiças. Demoraram bastante os pregos.
            Na casa-de-banho dos homens, já não havia toalhetes e o recipiente dos usados transbordava para o chão.
            Assim, à entrada de Portugal, nada boa era a imagem. Nem para a economia!
                                                                       José d’Encarnação
 
Publicado em Renascimento (Mangualde), 01-08-2018, p. 11.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Patrimoniices cascalenses 16

                                                       Cónego José Maria Loureiro

            Acertou J. João Loureiro.
            É, de facto, como se vê agora por inteiro, a placa que homenageia, no lugar da Torre (Cascais), o Cónego José Maria Loureiro.
            A casa ainda se manteve à maneira antiga, com pátio antes da habitação propriamente dita, e fica na Rua das Amoreiras, no coração saloio do lugar.
            Natural de Cascais (14.11.1838 29.5.1911), foi, na verdade, «orador sagrado de muita fama» e chegou a ser o professor oficial da Escola Conde Ferreira, a mais célebre da vila.
               Mais informações sobre a sua vida e obra podem ser colhidas em Cascais – Paisagem com Pessoas Dentro, Associação Cultural de Cascais, 2011, livro onde lhe dediquei as p. 54-59.

                                                                                  José d’Encarnação