sábado, 27 de agosto de 2022

Publicidade, propaganda, mentiras…

            Ouvi com toda a atenção o discurso do político recém-chegado. Tudo iria ser feito, salvar do marasmo de décadas toda uma população que, até ele vir, votara errado,  noutras formações partidárias. Uma lástima, um zero. Do princípio se iria agora começar.

            Por sinal, eu recebera dias antes um vídeo em que se dava conta do que um ancião aprendera, das mudanças que em si, agora, já septuagenário, sentia:
«Aprendi a não corrigir as pessoas, mesmo quando sei que estão erradas. A responsabilidade de tornar todos perfeitos não é minha» – era uma das conclusões a que chegara.
          Abençoado! Resisto, pois, tranquilo, à reacção – outrora impetuosa – de corrigir o recém-chegado. Que é bem verdade, amigo ancião, também isso não é da nossa responsabilidade.
            E não é que, de supetão, me vieram à mente experiências e normas e ditos e cenas?
        A primeira, a da guerra actual, a das balas, dos mísseis e dos drones e, sobretudo, a da desinformação. Sei bem o que isso vale; na tropa, quando fiz a especialidade, tive a disciplina de «Acção Psicológica»…
            A segunda, a da exímia interpretação do actor João Vasco em «La Nonna»: a idosa, sorrateira, ia à cozinha quando todos dormiam e banqueteava-se com tudo o encontrava, porque, de dia, a obrigavam a mui rigorosa dieta.
            A terceira (associada à ideia de noite), a do senhor que, tendo-se levantado para ir à casa-de-banho, explica à mulher: «Ouvi um barulho, a televisão estava acesa…».
            A quarta, o livro de Gustave Le Bon, Psicologia das Multidões (de 1895!), que não me canso de citar, nomeadamente naquela parte em que diz que o candidato pode «prometer sem receio as mais amplas reformas», porque a promessa produz efeito e não compromete o futuro, o eleitor depressa se esquece disso. Aliás, «o candidato que consegue descobrir uma fórmula nova, bastante destituída de significado preciso e, por consequência, adaptável às mais diversas aspirações, obtém um sucesso infalível». E cita o caso do slogan «Salud y republica federal» que norteou a revolução espanhola de 1873 e cuja interpretação foi a mais variada e… serviu para tudo e todos!
            Isso mesmo! Nada de imposições. A não ser uma, no caso dos anciãos e na sequência da sabedoria daquele que falava no vídeo: importa é envelheser! Exacto, com s, como se lembraram escrever, a dado passo, os técnicos da Misericórdia de Cascais: envelhecer + ser! Ser é o mais importante!
            E olhar com um sorriso para quem se desfaz em promessas; para quem garante que se levantou porque ouviu barulho; ou para com a avozinha que garante: «Eu? Não comi nada, não! Juro! Dormi a noite tida!».

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 14-08-2022: https://duaslinhas.pt/2022/08/publicidade-propaganda-mentiras/

sábado, 20 de agosto de 2022

Até que enfim!

             Vêem-se, de coração bem apertadinho, as imagens de habitações completamente destruídas, vítimas dessa loucura da guerra ou dessoutra loucura, a da voracidade das chamas, que o aquecimento global e os homens não se cansam de provocar.
            Deplora-se. Há teimoso nó na garganta. Batemos no peito, «eu, pecador, me confesso». As loucuras, porém, continuam. Confrange-nos ver reduzido a cinzas, num ápice, todo o longo anseio de uma vida. Confrange-nos e, por oposição, lembramos nomes de vivendas, mormente nos subúrbios das cidades: «Até que enfim!», «O Nosso Lar», «O Nosso Sonho»… – frases que consubstanciam e proclamam o anseio ali concretizado.
          Esse hábito não se tornou ainda generalizado na nossa S. Brás e, nos ‘montes’ que paulatinamente vão passando das mãos antigas para os dos estrangeiros recém-chegados, é provável que venham a ser palavras inglesas as preferidas. 
          Tem, no entanto, a nossa terra um outro património a preservar: o das datas que, nomeadamente nos finais do século XIX e primórdios do XX, foram gravadas nas chaminés, nos lintéis das portas, amiúde acompanhadas das siglas do nome do primeiro proprietário. É provável que o levantamento de todas essas informações já tenha sido feito, inclusive de forma sistemática. Se sim, congratulo-me e faço votos de que se publique, com breve explicação contextual. Uma documentação deveras preciosa.
 Se não, permita-se-me que apele à urgência da sua concretização. Poderá ser mesmo uma tarefa a concitar a colaboração multidisciplinar de docentes e alunos das nossas escolas.
Muita surpresa se terá: datas significativas, nomes de canteiros e de gente laboriosa, que, na ânsia de inovar que tão facilmente nos arrebata, acabariam por irremediavelmente se perder. E nós não queremos! São, afinal, memórias nossas!

                                                           José d’Encarnação

            Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 309, 20-08-2022, p. 13.

 

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Retrato de um sentir feminino

             

Não é apenas Agatha Christie que tem razão quando afirmou que o marido continuaria a gostar dela porque, sendo arqueólogo, gostava das «coisas velhas»; também parece verificar-se como verdadeira a realidade de o arqueólogo, a determinado momento, também se sentir poeta. É, sem dúvida, esse contacto maior com a Natureza, a terra que lhe passa pelas mãos, os objectos que vai exumando, esse diálogo com os que, séculos e até milénios, por ali andaram e deles se encontram os vestígios...
            São, pois, vários os arqueólogos portugueses que publicam livros de poesia. Eu tenho-me na pele (fraca) de arqueólogo, não sou poeta, mas gosto de escrever e, sobretudo, de dar a conhecer o que de interessante outros escrevem.
            Atrevi-me, em 2004, a tecer considerações sobre livro de poemas de um arqueólogo ilustre e enviei-lhe previamente o texto, na intenção de que ele diligenciasse, se achasse bem, para a sua publicação num jornal local. No que eu me fui meter! Desancou-me o senhor de cima a baixo, porque eu não percebera da sua poesia. Remeteu-me para outros livros seus, para eu (só depois!) me poder abalançar a fazer uma apreciação crítica válida a este. Precisava de ter lido todos os outros e Fulano (nome de um professor igualmente ilustre como ele) é que compreendia bem «o profundo» da sua poesia: «Acho que é importante perceber o mais profundo da minha poesia, e por isso também é preciso ler os outros meus livros…».
            Agradeci-lhe o atestado da minha burrice e guardo religiosamente, qual autógrafo, os seus comentários manuscritos ao texto dactilografado que eu lhe remetera.
    Sou, porém, reincidente e ouso, por isso dar conta de uma outra iniciativa congénere: de uma arqueóloga que também decidiu passar a escrito o que, ao longo dos tempos, lhe foi passando na alma, espécie de retrato de um sentir feminino.

ooo

O livro À Flor da Pele, da autoria de Ana Alexandra Luz Resende, publicado em papel e em formato digital por Corpos Editora (nº XIII da Colecção Wordl Art Friends: www.worldartfriends.com) foi apresentado na Biblioteca Municipal de Loulé pela Dra. Idália Farinho, louletana dos quatro costados, poetisa e grande estudiosa dos costumes e das manifestações literárias do Povo.
A autora vive em Loulé há vários anos e propôs-se mostrar, neste seu primeiro livro, «o sentir feminino da adolescência à maturidade». Quer isso significar, antes de mais, que se trata de uma ‘compilação’ (como a autora a designa) do que foi escrevendo. Ainda que não datados e certamente não incorporados aqui por ordem cronológica, sente-se que há sonhadora adolescência, em que se é «beijo de rosas / que se requebra / sob o hálito do orvalho», e há a experiência da maturidade, patente, por exemplo, logo na dedicatória «a todos aqueles que ainda têm a coragem de deixar fluir a alma à flor da pele num mundo agredido pela indiferença» – e esta frase constitui, sem dúvida, não apenas a razão de ser do título, mas também a vontade de, através do lirismo, por exemplo, da entrega à pessoa amada e da dedicação aos outros, se lutar contra a indiferença generalizada: «Menino da rua! / Criança perdida / Rumando sozinho / na estrada da vida!».
E, pelo caminho, vão-se retratando as angústias («Quero ser uma rosa e sou um espinho»; os desânimos: «Que esta porta que se fecha / Nunca mais se abrirá»; as ternuras: «Como o mar que se deita com a areia e lhe segreda ao ouvido»; os murmúrios de um pesar: «Pena de quem vive a vida a fugir»; os amores que se desejam eternos: «Mas se só um dia mais bastasse / Para se ter o que se quer de tal maneira / Que esse dia então jamais cessasse / Ou calasse o tempo a vida inteira!»; os vazios: «Beijas os meus lábios mas não sentes meu sabor!»…
Um livro, enfim, para ter na mesa-de-cabeceira. 51 poemas a saborear de vez em quando, antes de adormecer, a deixar-se enlevar na melodia das palavras, em jeito de meditação quotidiana de uma vida que queremos agarrar com ambas as mãos.

José d’Encarnação

                                               Publicado em Cyberjornal, 4-11-2012 [agora inacessível].

 

sábado, 13 de agosto de 2022

Um atento olhar

             Muita gente por ali passou e, quiçá, um dia, até alguém se apercebeu de que naquela pedra havia letras. Aliás, quem a reutilizara para padieira de porta do que é, hoje, casebre quase em ruínas no Largo do Forno de Arícera (concelho de Armamar) deve ter pensado: «O melhor é pormos o escrito à mostra, não vá ele querer dizer alguma coisa!»…


    
       E razão tinha!
            Certo é que as décadas passaram até que um olhar atento, o de José Carlos Santos, formado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sobre essas letras se demorasse. E bem o fez, porque a comparação dessas parcas letras com letreiros idênticos encontrados na região permitiu apresentar-se a proposta da sua reconstituição total, que viria a publicar-se na revista Ficheiro Epigráfico (estudo acessível em http://hdl.handle.net/10316/100307).
Trata-se de um terminus augustalis, ou seja, um marco que, sob autoridade imperial – neste caso, do imperador romano Cláudio – confirmou, no ano 43, o limite (o termo) dos territórios de dois povos ali localizados já, quando os Romanos chegaram.
Desconhece-se, por enquanto, que povos seriam esses, mas a atitude imperial assim gravada em pedra demonstra o interesse do governo de Roma por estas paragens da Lusitânia, por um lado, e, por outro, o respeito que esse mesmo governo tinha para com os povos pré-romanos.
Três ou quatro ranhosas letras, dir-se-ia! Com essas minudências, porém, se giza a História também!

José d’Encarnação 

Inserido, a 13/8/2022, na página «Literatura e Poesia – Amadeu Carvalho Homem», no Facebook.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

A magia dos provérbios

Provérbio, anexim, ditado, adágio, prolóquio – estes, alguns dos nomes por que são conhecidas as frases que passam de geração em geração e se constituem como padrões de vida, norma de comportamento. A sabedoria popular consagrada numa frase curta, sobretudo relacionável com as circunstâncias do calendário agrícola e os costumes que ele determina: «Pelo S. Martinho, vai à adega e prova o vinho», «Março Marçagão, de manhã Inverno, de tarde Verão», «Em Abril, águas mil!».
Em tempo, como é o nosso, de estações do ano completamente às avessas, somos capazes de sorrir desse ancestral conhecimento. Por outro lado, é natural que amiúde se confunda provérbio com frase célebre que, um dia, alguém pronunciou e que, tendo passado para algum compêndio de frases de famosos, se comece a pensar em termos de provérbio, que não é. Recordo «Penso, logo existo!», de Descartes. Tem esse carácter lapidar, mas não pode arvorar-se à categoria de provérbio. Como «lembrar-se de Santa Bárbara quando troveja» é frase comum, mas que não detém essa característica de norma que no provérbio é quase essencial: «Devagar se vai ao longe!», «De pequenino se torce o pepino».
E se, na verdade, a rima se revela, amiúde, como forma popular de ser usada, mesmo em termos de provérbios, o certo é que a sedutora magia dos provérbios não deixa ninguém indiferente.
Fez-se, por exemplo, a 28 de Agosto de 2017, no Centro de Interpretação Pedra do Sal, em S. Pedro do Estoril, a apresentação do livro, de Irene Prata, Provérbios para sorrir ou… reflectir, uma edição do NASPE – Núcleo de Amigos de S. Pedro do Estoril. Cada provérbio, uma quadra.  Veja-se este: Às vezes muito ameaça quem de medroso não passa. E a quadra

Ameaça é coisa fácil
É prática de muita gente
É apenas o disfarce
Do medo que o próprio sente.
 
Já vi na Internet que há provérbios feitos com emojis.
Peter Koj, alemão que foi docente na Escola Alemã, de Lisboa, grande difusor da língua portuguesa na sua terra natal, Hamburgo, consignou provérbios portugueses num dos seus livros, traduzindo-os para a língua alemã. Passatempo Proverbial (Schmetterling Verlag GmbH, Estugarda, 2016) constitui, de facto, mui jocoso passeio pelos provérbios portugueses, ilustrados alguns deles pelos bem oportunos desenhos de Marlies Schaper. Vejam-se as ilustrações de «Quem vai ao mar perde o lugar» e «Nem tudo o que vem à rede é peixe».
 
Provérbios errados
Recebi, em tempos, uma série de correcções a provérbios que vogam por i numa versão errada. Para isso serve a Paremiologia, a ciência dos provérbios.
Portugal detém nesse âmbito o palmarés, sendo Tavira a «capital dos provérbios», pois que nela está sediada a Associação Internacional de Paremiologia / International Association of Paremiology (AIP-IAP), «a única no seu género a nível mundial», e que se «ocupa do estudo científico dos provérbios em todo o mundo»; tem página na Internet – http://www.aip-iap.org – e «organiza várias actividades ao longo do ano: exposições, palestras, concertos, tertúlias, idas a bibliotecas, escolas, fundações e instituições de solidariedade social para dinamizar e divulgar a tradição oral através das ideias transmitidas pelos provérbios»Aí se realizou no passado mês de Novembro o 16º Colóquio Interdisciplinar sobre Provérbios, com mui larga participação.
Vamos lá então aos provérbios errados.
Por exemplo, a versão original não é «quem tem boca vai a Roma!», mas sim «quem tem boca vaia Roma!», ou seja, amaldiçoa-a, do verbo «vaiar», atitude tão assumida nos estádios de futebol…
Também o correcto não será «quem não tem cão, caça com gato», mas sim «como o gato», ou seja… sozinho!

«Hoje é domingo pé de cachimbo», o correcto é: «Hoje é domingo pede cachimbo» – o relaxar tranquilo, saboreando aroma bom…

«Batatinha, quando nasce, esparrama pelo chão». De facto, era difícil esparramar-se e o que deve dizer-se é… «espalha a rama pelo chão»!

            Rica, sem dúvida, muito rica mesmo é a língua portuguesa. E nunca nos cansamos de aprender, mesmo que por vezes se diga «Burro velho não aprende línguas!». Preguiça é o que é! 
 
                                                                        José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 09-08-2022: https://duaslinhas.pt/2022/08/a-magia-dos-proverbios/