segunda-feira, 30 de abril de 2018

Lisboa romana não cessa de nos surpreender!

            Foram as obras de ampliação do Metropolitano que proporcionaram a descoberta da spina do hipódromo romano, ou seja, da «espinha» mediana, em torno da qual se processavam as corridas de cavalos. Olisipo, a Lisboa romana, guindava-se, assim, ao escol das cidades que dispunham de um equipamento singular. A fazer jus ao que a tradição contava das éguas da Lusitânia, fecundadas pelo Vento, dizia-se, tal era a velocidade que logravam atingir. A fazer jus também ao muito célebre auriga lusitano, Caius Appuleius Diocles, que, tendo falecido com 32 anos, 7 meses e 23 dias, conquistou nas corridas de cavalos em Roma, conforme reza o seu epitáfio (CIL VI 10 048), 1462 vitórias, 861 segundos lugares, 576 vezes o 3º, uma vez o 4º e não ficou classificado em 1351, do total das 4251 competições em que participou. Que palmarés!
            Assinale-se, porém, que – ao contrário do que se supõe ter acontecido em épocas transactas – neste caso e nos que vão ser assinalados a seguir, foi possível contar com uma mudança de mentalidade por parte das entidades promotoras dos empreendimentos e por parte também do organismo oficial que tutela essas riquezas patrimoniais. Houve cedências de parte a parte, tendo em vista a preservação e a valorização de um património de memória que se compreendeu ser importante, até do ponto de vista económico.

O núcleo da Rua dos Correeiros
            Estava tentado a falar deste caso por palavras minhas. Creio, porém, que valerá a pena verificar como ele é abordado na respectiva página da Internet, porque – em palavras singelas – aí se dá conta do que, até para leigos, pode significar o subsolo desse edifício do Millennium bcp, situado «próximo do Arco da Rua Augusta, a ocupar quase por inteiro um quarteirão pombalino da baixa de Lisboa».
            Explicita-se:
            «Entre 1991 e 1995, no decorrer das obras de remodelação aí efectuadas, a perfuração do pavimento pôs a descoberto estruturas arqueológicas de civilizações que, ao longo dos tempos, habitaram Lisboa.
            Pelas suas características únicas – aí se podem percorrer 2500 anos da História de Lisboa – este espaço, agora designado Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (NARC), sendo um espaço do Millennium bcp, é também património da Cidade e mesmo do País, entendendo-se que, como tal, deve ser acessível ao público em geral».
            E informa-se que foi preocupação da Fundação Millennium bcp, responsável pela gestão do NARC e pela organização das visitas guiadas, editar um catálogo, em português e em inglês, e uma brochura, assim como apoiar a «edição de um estudo de carácter técnico e cientifico sobre o NARC, da autoria da Dra. Jacinta Bugalhão, responsável pela equipa de escavações arqueológicas».

A Casa Sommer
          Chamamos «Casa Sommer» ao Palácio do Conde de Coculim – edifício do século XVI, localizado no nº 40 da Rua Cais de Santarém, bem perto de Santa Apolónia, onde hoje se encontra o Hotel Eurostars Museum. E já vamos saber porque se chama Museum a um hotel. «Casa Sommer», porque, já no século XX, o palácio serviu de armazém de ferro, que viria a ser depois adquirido pela família Sommer para os escritórios da Cimentos de Leiria, comprado por António Champalimaud, na sequência do seu interesse pela indústria cimenteira.
            Desde 2004 que se sabia da existência de vestígios antigos no seu subsolo. Por isso, numa atitude que nunca será de mais realçar, os responsáveis pelo grupo hoteleiro espanhol Hotusa houveram por bem sentar-se à mesa das negociações com os seus arquitectos e com os arqueólogo, a fim de que o negócio «hotel» tivesse uma vertente «museu» incontestável, mantendo nas estruturas novas as antigas que nelas bem se pudessem enquadrar. E o resultado é excelente.
            Tive ocasião de visitar o Eurostars Museum no dia 14 de Março, guiado por Nuno Neto, da empresa Neoépica, responsável pelos trabalhos arqueológicos e consequente musealização do sítio. Ele e os seus mais directos colaboradores – Ricardo Ávila Ribeiro, Paulo Rebelo, Miguel Rocha – já haviam apresentado ao I Encontro de Arqueologia de Lisboa (Novembro de 2015) a comunicação «Dados preliminares de uma intervenção arqueológica nos antigos armazéns Sommer, Lisboa (2014-2015) – Três mil anos de história da cidade de Lisboa», que viria a ser publicada nas respectivas actas (p. 222-245); mas uma coisa é o que se ouve ou lê e outra o que nos é dado contemplar!
            Pasmei!
            Logo a um plano acima do nível da recepção, do lado direito, uma casa romana, de paredes com cerca de três metros de altura conservados, pintadas a fresco; no pavimento, um mosaico cujo motivo central é a deusa Vénus a descalçar a sandália (Fig. 1). Recuamos assim dois milénios e entramos de corpo inteiro no que é de mais vistoso e eloquente da época romana!
            O mosaico, apresentado na I Bienal de Arqueologia e História de Alter do Chão em Julho de 2016, foi publicado, na Turquia, nas respectivas actas: Ricardo Ávila Ribeiro, Vasco Noronha Vieira, Paulo Rebelo e Nuno Neto, «A Roman Mosaic Unearthed in Armazéns Sommer (Lisbon). Archaeology and Iconography», Journal of Mosaic Research, 10, 2017, p. 335-346. Aí se conclui que ele «reflecte fortes intercâmbios cosmopolitas e estilísticos entre a cidade de Olisipo e o resto do Império Romano», sendo assinaláveis «o seu elevado grau de conservação e a riqueza da sua decoração».
            Também se publicou (Ficheiro Epigráfico 164, 2018, inscrição nº 642 [acessível em: http://hdl.handle.net/10316/48110]) uma estela funerária romana, datável da 2ª metade do século I da nossa era, que se refere a uma menina de dois anos, cujo nome é etimologicamente grego; foi o pai que lhe preparou o sepulcro.
            As remodelações por que o espaço passou cortaram, por exemplo, a muralha do século IV, e esta cortara, por sua vez, casas romanas, tal como acontecera na cidade romana de Conimbriga, com o pormenor de, aqui, as paredes estarem pintadas a fresco de ambos os lados (Fig. 2)! Maravilha!
 
Um museu
            A zona central, de estar, do hotel, proporciona a observação, a nível do solo, dessas estruturas romanas, algumas datáveis do século I.
            Em plano superior, donde pode ver-se, em panorâmica, o conjunto arquitectónico (Fig. 3), foi colocada uma longa vitrina com os achados mais significativos (Fig. 4), a documentar o que foi a ocupação humana do sítio desde os tempos da Pré-história e, nomeadamente, da Idade do Bronze até ao século XIX e aos nossos dias: «Três mil anos de história», como atrás se assinalava.
            Localizado junto ao rio Tejo, numa área que desde sempre (ousaríamos dizer) servira para o comércio ligado à navegação, o edifício sofreu, naturalmente, com o terramoto de 1755 e desse momento há um testemunho que se me afigura notável. Notável em si e notável por se ter logrado encontrar. É que um dos comerciantes guardava as suas moedas num saco e esse montinho de numismas constitui, sem dúvida, um dos achados mais curiosos, porque, meio derretido pelo calor do incêndio que o tremor de terra provocou, ali se mostram as moedas agarradinhas umas às outras!... (Fig. 5).
            Depois, há uma sugestiva colecção de cachimbos de caulino, moedas, medalhas, crucifixos e anéis… A História esparramada em fragmentos pejados de eloquência...

A estela fenícia (Fig. 6)
          A estela, de 73 centímetros de altura, que ostenta uma inscrição em escrita fenícia, é unanimemente considerada uma das peças mais valiosas do espólio recolhido, por se tratar, de acordo com os investigadores que a estudaram, «a manifestação escrita mais antiga recuperada na Europa Ocidental». Datável do século VII a. C., é «a inscrição funerária de um indivíduo com possível nome local», como pode ler-se no artigo que os descobridores publicaram no volume 19, de 2016, p. 123-128, da Revista Portuguesa de Arqueologia, onde se afirma:
            «A existência de conhecedores da escrita fenícia e dos seus costumes epigráficos vem trazer luz sobre a introdução e desenvolvimento da própria escrita e os seus usos (especialmente os epigráficos) tanto na fachada atlântica peninsular como em toda a Península Ibérica (pois não estamos apenas perante a mais antiga amostra de escrita na zona, como também na presença de um dos mais antigos testemunhos de epigrafia monumental lapidar no Ocidente)».
            A importância do achado – que, apesar de já publicado numa revista de referência, não terá tido ainda a repercussão científica que merece – justifica a sessão que se programou para o próximo dia 5 de Maio deste ano de 2018, nas instalações do próprio Hotel Eurostars Museum, porque se lhe seguirá uma visita à colecção.
            Do programa constam, sob o título genérico «Um dos mais antigos testemunhos de escrita no Ocidente»: a notícia do achamento, por Nuno Neto e Paulo Rebelo; a contextualização paleográfica da estela e sua relevância no Ocidente europeu, pelo Professor José Angel Zamora López (da Escuela Española de Historia y Arqueología, de Roma); a contribuição do estudo da estela para o conhecimento da ocupação fenícia de Lisboa, pela Professora Elisa de Sousa (Faculdade de Letras de Lisboa).

Os merecidos aplausos
                Comecei por frisar que, finalmente, as entidades que têm por missão superintender na preservação da memória lograram entender-se, mercê de muito combate persistentemente levado a cabo pelos ‘chatos’ dos arqueólogos – para usar a terminologia recentemente adoptada por um deputado do CDS na Assembleia Regional dos Açores. Na verdade, «segundo o líder do CDS-PP na Assembleia Legislativa Regional, há arqueólogos a mais “para chatear o povo”». Na cidade Património Mundial, disse ainda, os arqueólogos só servem «para impedir as pessoas de construírem as suas casas». «Não precisamos desse tipo de gente que só coloca problemas» (Diário Insular, 19-4-2018, p. 7). Felizmente que os centristas do Continente não perfilharão tal ideologia.
            Também por isso me apraz divulgar, com louvor, a informação de que se teve conhecimento em meados deste mês de Abril: procedeu-se, em Lisboa, a uma escavação na Rua de São Julião nº 80 (a nascente da Rua da Prata), para que se pudesse verificar, de uma vez por todas, se o criptopórtico romano sempre se prolongava até aí, como se deduzia dos levantamentos antigos. E, sim, prolonga-se e até foi possível saber-se o que ele sustentava à superfície em época romana.
            E acrescentava quem me facultou esta notícia:
            Foi fantástico! E tão fantástico como essas descobertas foi o facto de esta intervenção ter existido graças à conciliação de muitas boas vontades, muitas colaborações e empenhos (dono de obra, empreiteiro, encarregado de obra, o director do Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, a directora da Unidade de Intervenção do Centro Histórico, o chefe da Divisão de Saneamento, a Empresa de Arqueologia que escavou até à cota de obra e depois associou a ela arqueólogos para que se pudesse prosseguir a escavação em profundidade com objectivos meramente científicos, a técnica que, na Direcção Geral do Património Cultural «foi abrindo portas e janelas», «todos concertados para que, de um dia para o outro, pudéssemos estar lá».
            Quando assim é – tal como ocorrera no caso dos Armazéns Sommer – afigura-se-me legítimo congratular-me vivamente! Congratulo-me!

                                                           José d’Encarnação
 
Fotografias gentilmente cedidas pela Neoépica.

Publicado em Cyberjornal, edição de 29-04-2018:

Fig. 1 - A casa romana, de paredes com frescos.
No mosaico, Vénus a descalçar a sandália.


Fig. 2 - A muralha do séc. IV, que cortou a parede de uma
casa. Assinalo a vermelho os vestígios dos frescos.
Fig. 3 - Panorâmica sobre os vestígios romanos,
vista do piso superior.

Fig. 4 - Em segundo plano, a extensa vitrina
onde cronologicamente se expõem os objectos mais significativos



Fig. 5 - As moedas do mercador, que o incêndio
subsequente ao terramoto de 1755 parcialmente derreteu.
Fig. 6 - A estela fenícia, o mais antigo vestígio da
escrita encontrado.
 

domingo, 29 de abril de 2018

Patrimoniices cascalenses 5



 Ora então descubra lá:
Onde é que isto está?

Acertou! É a torre da igreja matriz da vila de Parede.
            E merece o templo uma referência assim especial?
            Sim, merece, porque houve uma intenção específica ao arquitectá-lo, que não apenas a de ser casa de oração, quando se pensou na sua construção.
            Foi inaugurado a 1 de Março de 1953, com traça do arquitecto Guilherme Rebelo de Andrade, morador do burgo, que gratuitamente ofereceu o projecto ao Patriarcado. E teve o arquitecto em atenção um público muito especial: os doentes.
A Parede é, como sobejamente se sabe, o pólo de atracção de quem padece de doenças ósseas. As condições climatéricas associadas a características especiais do seu mar iodado constituem remédio eficaz para uma cura mais rápida.
Ora, foi precisamente tendo em conta que muitos dos fiéis se teriam de deslocar ao templo para ouvir missa nos «tabuleiros» que se fizeram rampas (decerto, um dos primeiros lugares do País em que nisso expressamente se pensou) e se criou, ao fundo da igreja, como que uma plataforma para a concentração das ‘cadeiras’.
Nem tudo foi fácil do ponto de vista estético e funcional e o prior, Padre José Baptista da Silva, que veio para a Parede em 1956, teve de negociar com Rebelo de Andrade, a fim de tudo ficar mais bem equacionado.
E tem o amigo leitor a ideia de quais as peças de arte mais notáveis dessa igreja? Exacto: ficará o segredo por desvendar numa próxima vez!
                                                                             José d'Encarnação

quarta-feira, 25 de abril de 2018

O mercado – ponto de encontro

            Isso é que foi uma manhã, vizinha!
            É verdade. Já sabe como é. Vem a Genoveva e conta-me dos filhos que estão na Inglaterra; a Antónia, dos achaques do marido, que mal pode andar; a Teresa, da filha que não arranja emprego; a Balbina, que rapa do telemóvel e se põe a mostrar as fotografias dos netinhos… E assim se passa a manhã, entre a compra de umas batatas, da carne no talho, dos nabos à da Ti Marquinhas…
            Vira-a a apanhar a carreira, ainda não eram dez horas, e encontrava-a agora, ajoujada com a alcova das compras, a descer do autocarro, quase à hora do almoço. Revivi, por conseguinte, o que aprendera acerca das feiras medievais: pontos de encontro dos vizinhos, lugares onde se sabiam as novidades, onde os almocreves contavam das suas andanças por esse País além…
            E, claro, lembrei-me de minha mãe, que tinha a quarta-feira como dia santo, não havia patroa nesse dia, que era para ir à praça e dar uma espreitadela na feira a ver se haveria umas camisetas para o meu pai, que andava precisado delas. Peixe habitualmente não comprava, que isso era pelouro de meu pai, no regateio com a menina Sara ou com a Carolina, as varinas que passavam lá por casa.
            Lembro-me de a acompanhar, era moço pequeno, quando a feira era à volta da Parada e o peixe se vendia num grande alpendre onde mais tarde viria a fazer-se o pavilhão do Dramático. Essa, a vaga imagem que tenho.
            E adregou chamar hoje à baila o mercado não só por mor da conversa com a vizinha Eugénia mas porque só agora me chegou à mão (distracção minha!...) o livro «História(s) do(s) Mercado(s) de Cascais 1952-2014». Edição camarária levada a efeito no quadro das comemorações dos 650 anos da elevação de Cascais a vila, da responsável de uma vasta equipa de técnicos camarários, coordenados por João Miguel Henriques, que, juntamente com Margarida Sequeira e Fátima Henriques, procedeu à miúda investigação nos arquivos municipais, à elaboração do texto e à selecção de imagens.
            Dizer que se trata de um «trabalho notável» pode, até, soar a lugar-comum. Não é. De mui excelente apresentação, o volume permite que passemos em revisão os momentos mais importantes do que foram as acções relacionadas com o estabelecimento de um local onde os «saloios» pudessem vir vender os seus produtos hortícolas e os pescadores o seu peixe, desde mesmo o século XIX! Vemos a par e passo tal odisseia. Imagens do mercado que foi encerrado na Primavera de 1944, sito por onde hoje passa a marginal, entre o Jardim Visconde da Luz o Hotel Baía; aliás, foi exactamente a necessidade de se prolongar a Marginal que determinou a transferência dos vendedores «para a Parada, para o local onde haviam funcionado os lavadouros e antigas oficinas municipais» (p. 24).
            Aplauso ainda maior à iniciativa da rubrica «Testemunhos» (p. 63-84), porque esta história «é feita de pessoas!». E nós gostamos disso!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 231, 2018-04-25, p. 6.

terça-feira, 24 de abril de 2018

O silêncio de Jacinto Luís

             Inspirado na abertura do catálogo, da autoria de Edgardo Xavier, que apresenta Jacinto Luís como «um pintor do silêncio», Pedro Lima de Carvalho optou por chamar «Silêncio» à exposição inaugurada no sábado, 21, na Galeria do Casino e que aí se manterá até 15 de Maio.
            Considera Edgardo que poderá ser o silêncio uma das características das pinturas agora expostas, por estarem como que despojadas de tudo o que poderia provocar ruído, distrair os sentidos.
            E confesso ser esse, de facto, o sentimento estético e emocional que a contemplação desses quadros me despertam. A luz que deles se desprende, quer das naturezas mortas quer mesmo das paisagens. Encantam-me esses marmelos solitários, quase hieraticamente postados em taças no armário da cozinha.
            Um achado o enquadramento que o pintor vai repetindo, como variações sobre o mesmo tema, mas sempre com essa luz que só quem sabe dominar a rigor o colorido é capaz de transmitir.
            Uma «comunicação que decanta o real», como observa Edgardo Xavier, para só nos transmitir a maviosa pureza de linhas quase imperceptíveis.
            Apetece, em silêncio, sentarmo-nos diante das telas, a saborear a mensagem dessa fruta assim elevada a tão alto grau de perfeição.

                                                        José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 2018-04-24:

Patrimoniices cascalenses 4


 

                                          

Ora então descubra lá:
Onde é que isto está?

            Acertou! É uma das mais notáveis carrancas que ornamentam, na Rua de Olivença, no Estoril, as cocheiras de Santos Jorge, aqui veiculada por um bonito desenho que ficamos a dever ao génio artístico de Almeida Ferreira e que foi capa, em 1993, do livro, de Maria Amélia Brandão de Azevedo, «Costa do Estoril Tempo de Poesia».
            «Ali vêem passar comboios atrás de comboios. Gente atarefada, cansada, alegre. Por ali passam turistas e gente que vai prá praia», escrevi no prefácio. E é verdade: por ali tem passado muita gente, inclusive os que, roubando ferragens, madeiras, tudo, pouco a pouco contribuem para que o edifício se degrade a olhos vistos, aos olhos de todos, sem que aqueles que têm poder algo se resolvam a fazer para estancar a desgraça.
            A Doutora Raquel Henriques da Silva, no seu notável artigo sobre a arquitectura de veraneio publicado no «Arquivo de Cascais» (7, 1988, p. 93-174), conta (p. 124-125) como o arquitecto Joaquim Norte Júnior as projectou em 1914, sendo de muito admirar o facto de, seguindo os ditames aprendidos na Escola de Belas Artes de Paris, ter dado maior realce às cavalariças do que à casa de habitação que elas serviam, «como se o conforto burguês devesse ceder aos encantos inesperados de um provisório abrigo». E assim, conclui a historiadora, o arquitecto livremente decidiu, com «um gosto exótico, pessoal e indisciplinado» «vestir as cocheiras com os ornatos habituais de um palácio».
            O certo é que, mesmo assim ornadas, as cocheiras não vão durar muito.

«Mas as crianças… Senhor!»

             Surgiu-me de repente este verso da «Balada de Neve» do Augusto Gil, não porque algo me tivesse levado a pensar na «tanta dor» que amiúde as atormenta – e a essa aludia Augusto Gil – mas por me ter acometido um outro sentimento: o do dever que se está cumprindo nas creches da Misericórdia de Cascais, minorando sofrimentos e, de modo especial, despertando nas crianças sentimentos de beleza, de comunidade, de gosto pela vida.
            Isso eloquentemente se mostrou na exposição «Mãos na Massa» que o Departamento de Infância daquela instituição secular levou a efeito, no fim-de-semana de 20-22 deste mês de Abril, em duas das salas da sua sede. Um mar de cor por aquelas paredes em trabalhos de estampagem, tapeçaria, monotipia, digitinta, colagem, desenho, histórias…
            À sessão de abertura, na tarde de sexta-feira, estiveram presentes as educadoras, os educadores e colaboradores da Santa Casa, também para assistirem à apresentação do vídeo que vai estar disponível na página da instituição, página que ora recebeu um novo e bem atractivo formato.
            Creche da Abóboda, Creche do Arneiro, Centro Alfredo Pinheiro, Centro Infantil do Linhó, Infantário O Pinhal, Creche de S. José. Infantário de Bicesse, Creche da Pampilheira, Creche Teodoro dos Santos – é este o rol das unidades do Departamento de Infância. Todos nunca seremos de mais para que a Santa Casa consiga levar a bom porto a sua vocação de apoiar os mais necessitados, que, neste momento, são – para além das crianças – os anciãos, cada vez mais anciãos, cada vez mais dependentes, cada vez a requererem mais braços para os amparar.
            No minúsculo livrinho distribuído, sobre as ideias e as histórias, como ‘contributos para uma educação participada’, lia-se, em 7 páginas (para obrigar a pensar…) o seguinte: «Quando a expressão / comunica o que a criança sente, / cumpre a função / de desenvolver / o seu equilíbrio harmonioso / e permite-lhe uma relação equilibrada / com tudo o que a rodeia».
            Por seu turno, no texto de apresentação de «Mãos na Massa» se explicita que «estas actividades funcionam como uma linguagem como o são o gesto ou a fala e a escrita. Na educação pré-escolar, o desenho assume especial importância visto que o prazer de escrever deve radicar no prazer de desenhar».
            Este foi, pois, mais um passo para dar a conhecer o trabalho que – com muita abnegação – se está a desenvolver. Uma abnegação habitualmente não compreendida pelas entidades oficiais, mormente pelos burocratas do Governo Central, que só sabem ler com antolhos a letra das leis e se esquecem das pessoas, essas que, por sinal, até também devem ter nas suas famílias…
            Aplauso maior, portanto, para a iniciativa – no voto de que ‘desânimo’ nunca seja vocábulo deste dicionário de afectos.

                                                  José d’Encarnação





 

 

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Uma benemérita quermesse no Corotelo

            Quis Vítor Barros ter a gentileza (que lhe agradeço) de me fazer chegar a circular que abaixo se reproduz, amarelecida pelo tempo, encontrada «nuns papéis velhos que a minha mãe guardava» (escreveu-me) e que, pela quantidade de nomes aí mencionados, decerto vai merecer a maior atenção dos nossos leitores, dado que aí encontrarão, sem dúvida, referência a algum dos seus antepassados.
            Em si mesma, a circular demonstra o que, nos anos 50 (?), era o sentir da população: quando alguém estava em dificuldades, mormente devido a problemas de saúde, organizava-se uma quermesse com as ‘lembranças’ que cada um poderia trazer e, desta sorte, não só se pagavam as despesas da festa como se angariavam fundos para socorrer quem necessitava. «Numa época em que todos tinham pouco, o pouco que tinham dividiam com os que tinham ainda um pouco menos» – comentou Vítor Barros. E tem razão.
            Dois sentimentos de pesar me ocorrem, todavia, a par da consolação de podermos dar a conhecer um documento histórico:
            1º) Um pesar de historiador: a ausência da menção do ano. Claro, compreendia-se então que seria aquele ano e, por isso, considerava-se desnecessário dizê-lo. Vê-se agora que não é bem assim e que temos de dar algumas voltas para tentar saber quando é que isso foi. Esse, aliás, o desafio que poderemos pôr aos leitores do Noticias: alguém, até pelos nomes citados, terá ideia do ano?
            2º) O pesar do corotelense, que sente como a sua terra há 50 anos atrás estava na crista da onda, com o dinamismo dos dirigentes da sua Sociedade, e hoje esmorece, esmorece, sem direito até a singela placa toponímica…

                                                                José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 257, 20-04-2018, p. 13.

terça-feira, 17 de abril de 2018

A cabeça no ar?

            Quanto me não ralhou minha mãe sempre que eu me esquecia dum compromisso:
            ‒ Cabeça no ar, é o que é! Quando é que vais aprender a ter juízo?
Retirado, com a devida vénia,
da história de Johnny
cabeça no ar
            Acho que algum já terei. Não muito, é certo; mas, se calhar, também ter muito juízo é capaz de não interessar. Se o tivesse, não me disporia a redigir esta crónica, que trata de pessoas desajuizadas. Eu conto.
            Enviaram-me por correio electrónico a informação, com calendário apenso, de que este mês de Maio iria ter cinco sextas-feiras, cinco sábados e cinco domingos. De acordo com uma crença chinesa, dizia, não só essa oportunidade só acontecia uma vez na vida da gente (de 823 em 823 anos!), como era de muito bom agoiro e haveria fortes possibilidades de, em quatro dias, eu vir a encher os bolsos de dinheiro! Achei piada, porque já o ano passado me haviam dito a mesma coisa e… dinheiro, viste-o?!...
            É, porém, tão grande a vontade de se enriquecer facilmente (bastava colar a mensagem no mural…) que nem sequer se olhava para o que nos diziam, assim com olhos de ver. É que o calendário não era o de Maio nem tinha esses tais dias cinco vezes seguidas e, além disso, já em Dezembro passado se verificara essa sequência, que voltará a acontecer em Março do próximo ano e, se Deus quiser, ainda havemos de cá estar.
            Outro caso: uma das minhas vizinhas começou a achar estranha tanta chilreada. Donde é que vem, donde é que não vem… Vinha do contentor do lixo. Alguém pusera lá uma gaiola com três bonitos canários, que, resgatados, foram, naturalmente, distribuídos pela vizinhança. Nem ouso comentar!
            Recorro amiúde aos serviços de uma instituição de saúde, obviamente muito frequentada nos tempos que correm. Há sempre mais anciãos do que eu a entrar ou a sair ou pessoas com canadianas ou senhoras. Gentilmente, porque minha mãe assim me ensinou, abro a porta e deixo passar. Agradeces tu? Assim agradecem eles! A maior parte das vezes nem «água vai!». Outro dia, voltei-me para a menina da recepção:
            ‒ Já viu? Nem boa tarde dizem!...
            ‒ Ah! Sr. José, não ligue! É assim, raramente alguém agradece, quando facilitamos a entrada ou a saída. É assim.
            E dei comigo a interrogar o Bom Senso e a Boa Educação:
            ‒ Por onde é que andam vocês, meus malandros?
                          
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 729, 15-04-2018, p. 11.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

«Como Vos Aprouver», em cena no Mirita Casimiro

             Estreada a 27 de Março, vai estar em cena no Teatro Mirita Casimiro até 29 do corrente mês de Abril a peça «Como Vos Aprouver», de William Shakespeare, a 154ª produção do Teatro Experimental de Cascais, integrada na programação de Cascais 2018 Capital Europeia da Juventude.
            Encenação de Carlos Avilez, tradução de Fátima Vieira, dramaturgia de Miguel Graça, cenografia e figurinos de Fernando Alvarez, musical original de Tiago Machado, coreografia de Natasha Tchitcherova. Apoio de toda a habitual equipa do TEC. Interpretação a cargo de elementos da companhia e de alunos ou antigos alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais.

A discussão sobre o texto
            Prestou-se a discussão, ao longo dos tempos, a interpretação do título original inglês «As you like it». Fátima Vieira justifica a opção por «Como vos aprouver» ‒ que, além do mais, se reveste de mui vernácula roupagem – mas já Miguel Graça, em jeito de provocação, optou por «Como vocês gostam», no comentário inserto na folha distribuída aos espectadores. ¿Ter-se-ia Shakespeare dirigido aos leitores, como que a dizer-lhes «Aí têm, como é do vosso desejo», ou a fala foi para os actores e encenadores «Façam como acharem melhor!»?
            Cumpre salientar, a este propósito, que dispomos, nos Textos de Apoio, de um excelente ensaio, de 25 páginas, sem assinatura mas que se pressupõe ser da autoria de Fátima Vieira, professora associada com agregação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde, no âmbito do Instituto de Estudos Ingleses, lecciona desde 1986 e onde se doutorou, em 1998, com uma tese sobre a obra de William Morris e a tradição de literatura utópica inglesa. Um ensaio em que, com erudição e saber, trata do texto, das representações e das fontes; dos diferentes modos de ‘ler’ esta peça; do retrato que o autor faz do mundo político, levando, por exemplo, os seus personagens a refugiarem-se na floresta de Arden, sob a égide benevolente do Duque Sénior, na busca de uma liberdade que a ordem imposta pelo Duque Frederico lhes não permitia usufruir; da sexualidade e das convenções sociais (o costume de as personagens se travestirem e o que isso queria significar); da caracterização das personagens; das canções e da tradução.
            Congratulo-me, naturalmente, com o facto de o TEC haver optado pela colaboração com uma universidade para a fixação do texto, que, diga-se, é realmente bonito de se ouvir, muito cuidado. Foram investigadores do atrás referido Instituto que lançaram mãos à obra, «no âmbito de um projecto de investigação apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia», iniciado em 1998, e que «tem como objectivo principal a tradução da obra dramática completa de Shakespeare e a sua divulgação (com uma vertente de reflexão histórico-crítica) no mercado português». Dir-se-á ainda que cada tradução, «embora sendo da responsabilidade do membro do grupo que a assina, beneficia da discussão participada por todos os membros», o que também é digno de registo.

A encenação e os actores
            Temos, pois, um texto muito bom. Sobre a forma como ele nos é apresentado, escusado será dizer que, por mais tratos que, lendo o texto, cada um de nós desse à imaginação «como é eu apresentaria isto?...», dificilmente conseguiria lograr atingir (nunca atingiria!) a genialidade que nos é mostrada no Mirita Casimiro.
            Primeiro (não havendo, nesta sequência, nenhuma ordem de importância relativa): mais uma vez se deve brindar com entusiasmo ao espírito criativo de Fernando Alvarez. Se nos figurinos e no guarda-roupa se revela o seu extraordinário bom gosto, a opção por a floresta nos ser minimalmente sugerida por fios de nylon pendurados resultar muito bem e é, de facto, um verdadeiro achado.
            Temos depois a direcção de actores. Bárbara Branco revela-se, mais uma vez, na sua juventude, bem promissora actriz: dicção excelente, expressão natural e sempre ajustada a cada passo. Um nome a fixar. Os parabéns a Carlos Avilez pela arguta formação que lhe deu.
            Todos vão bem, desde o nosso querido Ruy de Carvalho, na veste de um Adão ancião, aos elementos que há muito integram a Companhia, passando pelos jovens da Escola, um estabelecimento de ensino que vai merecer – não tenho dúvida! – cada vez maior atenção, mormente tendo em conta a fama que goza junto de instituições congéneres e universidades estrangeiras, onde os sues antigos alunos depressa se evidenciam pela técnica, pela presença e pela experiência de palco que os responsáveis da Escola desde cedo lhes proporcionam obter. Registe-se, para que conste, a informação de Miguel Graça: «Dos 21 actores e actrizes que estão em cena 15 formaram-se ou estão a formar-se na Escola Profissional de Teatro de Cascais»!
            Permita-se-me, todavia, que realce Renato Godinho, cujo crescimento no TEC se tem revelado de espectáculo para espectáculo. Não creio sofrer contestação que Renato tem na figura do bobo Bitolas a sua melhor interpretação de sempre. Encaixa às mil maravilhas o seu perfil habitualmente gozão aos ademanes e aos chistes irónicos e acutilantemente críticos de um bobo, realçado, de resto, pelo facto de Carlos Avilez o ter posto a deslocar-se em cadeira de rodas (os bobos sofriam, habitualmente, de corpóreas mazelas, eram anões ou aparentemente lerdos…). Inscreva-se já o nome de Renato Godinho no rol dos actores a galardoar em 2018!

A cadeira de rodas e a interculturalidade
            Esta referência à cadeira de rodas leva-me a focar ainda um outro aspecto neste espectáculo: a interculturalidade, tópico que sempre, aliás, preside às encenações de Avilez: adaptar aos nossos dias cenas que originalmente se passam há muito tempo (a comédia As You Like It foi escrita, pensa-se, mesmo no final do século XVI e supõe-se que representada pela primeira vez em 1603), em contextos e ambientes bem diferentes dos da actualidade.
            Assim, a cadeira de rodas é dos nossos dias (oh se é!...); a moda de mulheres se vestirem de homens e vice-versa, se constituía, outrora, como nos carnavais de sempre, mera brincadeira, reveste-se, aqui, como algo de mais profundo: o natural reconhecimento da homossexualidade.
            Por outro lado, português que se preze promove a interculturalidade. A palavra está hoje de moda; mas há muito que nós a assumíamos e carlos Avilez não hesitou, neste caso, em pôr em lugar de destaque, no final, um negro como sacerdote do Altíssimo, o sacerdote que poderia abençoar os quatro casamentos (‘apraz-nos’ que os enredos acabem em alegres casamentos, o de Rosalinda e Orlando, de Célia e Olívio, de Sílvio e Febe, de Bitolas com Aurora), ainda que sejam, na peça, «relegados para um momento posterior» a que já não assistimos.
            É de norma terminar a apreciação de um espectáculo, quando dele se gostou e se considera válido, incitando o leitor a ir ver. Creio, porém, que facilmente se depreenderá do que escrevi que posso perfeitamente dispensar tal incitamento, pois, na verdade, esta interpretação do Como Vos Aprouver ficará nos anais do Teatro nacional e, por isso, não se pode mesmo perder!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 15-04-2018.

 

domingo, 15 de abril de 2018

Dois concertos memoráveis

             Corro o risco, consciente, de usar um adjectivo passível de ser interpretado como lugar-comum. De facto, porém, tanto o concerto de Luísa Sobral, no Salão Preto e Prata do Casino Estoril, no passado dia 13, como o de Camané no dia seguinte no mesmo local merecem, de pleno direito, cada um no seu campo, tal adjectivação.
            Primou o de Luísa Sobral pelo intimismo, num palco onde o desenho de luzes jogou, na verdade, um papel de excelência, a sublinhar a envolvência suave e – ouso dizê-lo! – doce que a cantora quis imprimir à sua actuação. Foi o de Camané o de um ambiente de fado, invulgar no grande salão, habitualmente desprovido dessas características.

Luísa Sobral
            Entraram os músicos um a um e cumprimentaram o seu instrumento com uns acordes, num clima de jaze: foi João Salcedo para os teclados; pegou Mário Delgado na guitarra; sentou-se Carlos Miguel Antunes à bateria; e abraçou João Hasselberg o contrabaixo. Um foco para cada um, o resto do palco às escuras. Pausa para a entrada da artista. Veio, gravidíssima e descontraída, e entrou na música.
            Esse, o clima que perdurou: o da simplicidade, o da voz bem timbrada, o do virtuosismo dos executantes, o da conversa quase informal, com histórias de vida («Quando eu dancei esta e disse à minha mãe que tivera três contracções, ela entrou em pânico; desta vez só foram duas!...»). Encanta Luísa Sobral por este à-vontade com que está em palco, como, supomos, estará em sua casa. E os músicos deliciam-se, eles também, a acompanhá-la nesse jeito de quase confidência.
            Chamou o irmão (era inevitável!) e interpretaram («Achas que eles sabem o que a gente vai cantar?...» a canção com que arrecadaram o prémio do Eurofestival. Nada de bazófias ou de ares de pompa… «Olhem, tanto o João como o Carlos foram pais no mesmo dia e ambos de uma Maria. Eu, se este for rapariga será Maria também, se rapaz vamos chamar-lhe José. Não sei se terá a profissão que o João Monge deu a um José do seu «Jardim Roma»: carteirista!...». «Jardim Roma», um texto ímpar que é apresentado como «dedicado a todos os piratas e as princesas que brincam e que sempre brincaram nos jardins desse mundo a sonhar com o que seriam no futuro». Divertimo-nos. Com esse e com o «paspalhão», também de João Monge, a história da menina que se faz ao piso a um paspalhão, porque… «Já bebi pelo teu copo / Deixei os lábios marcados / Não entendeste o piropo / Que é coisa de namorados»… Assim. Uma delícia. Memorável. «E agora eu faço aquela cena de me ir embora e vocês continuam a bater palmas, a bater, e eu sou forçada a voltar». Voltou. Com o irmão, que imitou, com a voz, um trombone.
            Ah! Não poderia esquecer de assinalar que o atrás referido «clima de jaze» se manteve, porque, de quando em vez, um dos músicos saltava para a ribalta a solo, mostrando quanto sabia. E brilhava. E era saborosamente aplaudido.

Camané

            Deliciou-me também o concerto de Camané, pretexto para – além de nos cantar os êxitos maiores do seu repertório («Sei de um rio / Rio onde a própria mentira / Tem o sabor da verdade […] Meu amor, dá-me os teus lábios! Dá-me os lábios desse rio / Que nasceu na minha sede!») – nos encaminhar para o mundo antigo e venerando do Marceneiro, tema maior do seu último disco.
            Casa Camané, pelo timbre grave da sua voz e pela suavidade que empresta ao seu cantar, o fado doutras eras, clássico sem nunca cheirar a bafio (será sempre eterna a Casa da Mariquinhas!...), com as novas ressonâncias de agora.
            Sim, Camané trouxe fado genuíno. ¿ Mas quem ousaria falar deste concerto sem realçar o virtuosismo (cá está outra palavra delida, mas não tenho outra, caramba!) do José Manuel Neto a tratar por tu, extraordinariamente, a guitarra portuguesa, bem acompanhada sempre, nos seus desvarios deliciosamente excêntricos, pela viola de Pedro Castro e pela bem compassada sonoridade grave do contrabaixo de Paulo Vaz.
            Depois da tal cena da saída, com os fartos aplausos, de pé, a postularem encores (que é como quem diz, assim mais um ou dois fados para o deleite…), Camané voltou e quis homenagear João Ferreira-Rosa (que, aos 80 anos, em Setembro passado nos deixou), «chamando» de novo, a terminar, Alfredo Marceneiro e o seu «sonho dourado», o de qualquer fadista de raça: «Sonho que minha alma quer / Que é morrer cantando o fado / Nos braços de uma mulher»!
            E lá vai mais um lugar-comum a que não resisto: na noite do dia 14, sábado, o Fado morou no Estoril!
Agradecimento: fotografias gentilmente cedidas pelo Gabinete de Comunicação do Casino Estoril.
 
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 15-04-2018.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Balas e Purpurinas

            «Balas» a gente sabe o que são: atiram-se com intenção de magoar e, até, de matar. «Purpurinas» já é mais complicado e há que ir ao dicionário. Lá diz que é um «insecticida extraído da raiz da ruiva» ou, ainda, «bronze moído, misturado com óleo, e que forma uma espécie de verniz». Insecticida e bronze moído… que irá sair daí? Coisa boa não será, decerto! Venenosa há-de ser!

            Pois «Balas e Purpurinas» foi o título dado pela ArtFeist (a companhia que tem como ícones os irmãos Feist, Henrique e Duarte) ao espectáculo que estreou, a 29 de Março, no auditório do Casino Estoril e que aí vai manter-se até ao próximo dia 29, de quinta a sábado, às 21h30, e ao domingo às 17h00. Em subtítulo se explicita o conteúdo: «O Lado B da Eurovisão».

            Compreende-se: uma viagem pelos bastidores, por aquilo que pode suspeitar-se, se suspeitou, mas não se viu. Uma hora de bem divertida panorâmica disso mesmo, da influência das políticas nos insondáveis pormenores de um espectáculo que move milhares, encanta milhões e, por isso mesmo, os poderes têm o olho nele, não vão os actores pôr o pé em ramo verde e daí venham maus tratos para os interesses instituídos e em jogo.

            Rimo-nos, pomos a mão na consciência, ficamos esclarecidos e, sobretudo, encantados com o dinamismo sequencial do espectáculo e as brilhantes actuações de vozes bem modeladas, versáteis, capazes de se adaptar aos mais diversos estilos musicais. Dora, Catarina Pereira, o próprio Henrique Feist (o irmão, o Nuno assina a direcção musical), Valter Mira e Augusto Gonçalves deliciam-nos com o seu virtuosismo vocal, servido pela ajustada coreografia de Marco Mercier.

            Por conseguinte, como é natural, um espectáculo que vivamente se recomenda.


                                                                       José d’Encarnação


Publicado em Cyberjornal, 2018-04-12:

http://www.cyberjornal.net/cultura/cultura/teatro/balas-e-purpurinas

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Distracções…

Era graciosa hortinha, que dava gosto ver. Um projecto camarário
ainda por concretizar obrigou ao seu imediato abandono.
Cresce a erva, suspira a estrelícia e... mais de dez anos passaram!
            Para aproveitar o abrigado logradouro do prédio, um dos vizinhos, ancião, decidiu utilizá-lo para pequena horta e, até, para algumas flores. A sua entretenha. O recanto, um mimo! Passaram os senhores da Câmara e ordenaram a imediata destruição de couves, alfaces, cebolas… que nesse espaço, por detrás dos prédios, ia ser feito um jardim. E o ancião, de lágrimas nos olhos, destruiu. Há dez anos. No lugar da inocente hortinha cresce agora a erva, há um pé de salsa aqui e ali, uma estrelícia tenta sobreviver… Do jardim camarário… nem o cheiro!...
            Distracções.
            Tinha a equipa de obras 5 pessoas. Uma sofreu um acidente, está de baixa; outra tem um reumático danado; as três restantes optaram por ir ao médico de família, que andavam mal da cabeça. Coisas da psiquiatria. O médico de família não podia passar baixa por essas coisas da cabeça, mas passou. Baixa prolongada. Distraiu-se. E os 5, uma pechincha a não desaproveitar, porque, pela ADSE, ganham mais de baixa que ao serviço! Não há equipa para obras? Que se danem!
            Excelente oportunidade, aquele espectáculo de lotação esgotada, 200 pessoas. Oferece-se cocktail de boas-vindas e, assim, dão-se a conhecer os nossos vinhos: tinto, branco, rosé. Distraíram-se, porém, os promotores. Para 200 pessoas, uma senhora só, por mais eficiente que seja, é pouco. Formaram-se filas. Rosé tem de ser bem fresco – e esqueceram-se de mais recipientes com gelo.
            No recanto do átrio espalharam-se três mesas de pé alto para os pratinhos dos salgados. Olha, é óptima para nos encostarmos à conversa! E as duas senhoras plantaram-se ao redor da mesa, acompanhadas por um cavalheiro que puxou do telemóvel e o pôs ao lado dos pratinhos, tranquilamente a ver as mensagens… As senhoras na conversa. E os convidados pediam licença para tirar um salgado. E as senhoras, concentradas na conversa e distraídas do cocktail para 200 pessoas, não arredaram pé, até que a porta do teatro abriu.
            Entre as mensagens que me pedem para divulgar há os call for papers. As revistas ou os organizadores de reuniões científicas utilizam a Internet para publicitarem as edições ou os temas das reuniões e a sua calendarização. Apelam, por isso, a quem se disponibilize com um artigo ou comunicação, o que, em inglês, se diz paper, «papel» – que é, aliás, cada vez menos papel e mais escritas no mundo digital.
            Já sei que, embora me dê ao trabalho de pôr no «assunto» o título certo e mude para português de gente tudo o que é «flyer», «call», «info sheet», «newsletter», «abstract», «website» and so on (que quer dizer: etc.), já sei que tenho de estar muito atento, pois é assaz frequente que amigos meus aproveitem a boleia do título e, até, mantendo o que lhes enviei, me escrevam a tratar de um assunto pessoal que nada tem a ver com o «subject» (leia-se «assunto») em epígrafe. Distracções! Ou será preguiça? Ou um viver bem apressado, não tenho tempo para nada, isto é um horror!...
            Confesso, porém, que pasmei outro dia. Já não tenho idade para pasmar; mas desta vez pasmei mesmo e até perguntei ao meu amigo se fora ele que escrevera. É que eu anunciara (também em título) um desses call for papers (claro, pus «chamada de colaborações»…); ¿ e não é que esse amigo, que até é licenciado há um ror de anos e ocupa cargo de responsabilidade, me respondeu assim:
            “José, agradeço .houve este ano enviar .conta comigo.um abraço”
            Tal e qual. Com os pontos onde estão e este «houve» que deve ser algo como «eu vou» disléxico!...
            Uma linha só e sem qualquer sentido. E para mim que nada tenho a ver com a revista anunciada!... Fiquei altamente preocupado, confesso.
            E distracções destas eu presencio às dezenas todos os dias.
            Onde é que vamos parar?
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 229, 2018-04-11, p. 6.