Foram as obras de ampliação do Metropolitano que proporcionaram
a descoberta da spina do hipódromo
romano, ou seja, da «espinha» mediana, em torno da qual se processavam as
corridas de cavalos. Olisipo, a Lisboa
romana, guindava-se, assim, ao escol das cidades que dispunham de um
equipamento singular. A fazer jus ao que a tradição contava das éguas da Lusitânia,
fecundadas pelo Vento, dizia-se, tal era a velocidade que logravam atingir. A
fazer jus também ao muito célebre auriga lusitano, Caius Appuleius Diocles, que, tendo falecido com 32 anos, 7 meses e 23 dias, conquistou nas corridas de cavalos em Roma, conforme reza o seu epitáfio (CIL VI 10 048), 1462 vitórias, 861 segundos lugares, 576 vezes o 3º, uma vez o 4º e não ficou classificado em 1351,
do total das 4251 competições em que participou. Que palmarés!
Assinale-se,
porém, que – ao contrário do que se supõe ter acontecido em épocas transactas –
neste caso e nos que vão ser assinalados a seguir, foi possível contar com uma
mudança de mentalidade por parte das entidades promotoras dos empreendimentos e
por parte também do organismo oficial que tutela essas riquezas patrimoniais.
Houve cedências de parte a parte, tendo em vista a preservação e a valorização
de um património de memória que se compreendeu ser importante, até do ponto de
vista económico.
O núcleo da Rua dos
Correeiros
Estava
tentado a falar deste caso por palavras minhas. Creio, porém, que valerá a pena
verificar como ele é abordado na respectiva página da Internet, porque – em
palavras singelas – aí se dá conta do que, até para leigos, pode significar o
subsolo desse edifício do Millennium bcp, situado «próximo do Arco da Rua
Augusta, a ocupar quase por inteiro um quarteirão pombalino da baixa de
Lisboa».
Explicita-se:
«Entre
1991 e 1995, no decorrer das obras de remodelação aí efectuadas, a perfuração
do pavimento pôs a descoberto estruturas arqueológicas de civilizações que, ao
longo dos tempos, habitaram Lisboa.
Pelas
suas características únicas – aí se podem percorrer 2500 anos da História de
Lisboa – este espaço, agora designado Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros
(NARC), sendo um espaço do Millennium bcp, é também património da Cidade e
mesmo do País, entendendo-se que, como tal, deve ser acessível ao público em
geral».
E
informa-se que foi preocupação da Fundação Millennium bcp, responsável pela
gestão do NARC e pela organização das visitas guiadas, editar um catálogo, em português
e em inglês, e uma brochura, assim como apoiar a «edição de um estudo de
carácter técnico e cientifico sobre o NARC, da autoria da Dra. Jacinta
Bugalhão, responsável pela equipa de escavações arqueológicas».
A Casa Sommer
Chamamos «Casa Sommer» ao Palácio do
Conde de Coculim – edifício do século XVI, localizado no nº 40 da Rua Cais de
Santarém, bem perto de Santa Apolónia, onde hoje se encontra o Hotel Eurostars
Museum. E já vamos saber porque se chama Museum a um hotel. «Casa Sommer»,
porque, já no século XX, o palácio serviu de armazém de ferro, que viria a ser
depois adquirido pela família Sommer para os escritórios da Cimentos de Leiria,
comprado por António Champalimaud, na sequência do seu interesse pela indústria
cimenteira.
Desde 2004 que se sabia da
existência de vestígios antigos no seu subsolo. Por isso, numa atitude que
nunca será de mais realçar, os responsáveis pelo grupo hoteleiro espanhol
Hotusa houveram por bem sentar-se à mesa das negociações com os seus arquitectos
e com os arqueólogo, a fim de que o negócio «hotel» tivesse uma vertente
«museu» incontestável, mantendo nas estruturas novas as antigas que nelas bem
se pudessem enquadrar. E o resultado é excelente.
Tive ocasião
de visitar o Eurostars Museum no dia 14 de Março, guiado por Nuno Neto, da
empresa Neoépica, responsável pelos trabalhos arqueológicos e consequente musealização
do sítio. Ele e os seus mais directos colaboradores – Ricardo Ávila Ribeiro,
Paulo Rebelo, Miguel Rocha – já haviam apresentado ao I Encontro de Arqueologia
de Lisboa (Novembro de 2015) a comunicação «Dados preliminares de uma
intervenção arqueológica nos antigos armazéns Sommer, Lisboa (2014-2015) – Três
mil anos de história da cidade de Lisboa», que viria a ser publicada nas
respectivas actas (p. 222-245); mas uma coisa é o que se ouve ou lê e outra o
que nos é dado contemplar!
Pasmei!
Logo a um plano acima do nível da
recepção, do lado direito, uma casa romana, de paredes com cerca de três metros
de altura conservados, pintadas a fresco; no pavimento, um mosaico cujo motivo
central é a deusa Vénus a descalçar a sandália (Fig. 1). Recuamos assim dois
milénios e entramos de corpo inteiro no que é de mais vistoso e eloquente da
época romana!
O mosaico, apresentado na I Bienal
de Arqueologia e História de Alter do Chão em Julho de 2016, foi publicado, na
Turquia, nas respectivas actas: Ricardo Ávila Ribeiro, Vasco Noronha Vieira, Paulo
Rebelo e Nuno Neto, «A Roman Mosaic
Unearthed in Armazéns Sommer (Lisbon). Archaeology and Iconography», Journal of Mosaic Research, 10, 2017, p. 335-346. Aí se conclui que ele «reflecte fortes intercâmbios
cosmopolitas e estilísticos entre a cidade de Olisipo e o resto do Império
Romano», sendo assinaláveis «o seu elevado grau de conservação e a riqueza da
sua decoração».
Também se publicou (Ficheiro Epigráfico 164, 2018, inscrição nº 642 [acessível em: http://hdl.handle.net/10316/48110])
uma estela funerária romana, datável da 2ª metade do século I da nossa era, que
se refere a uma menina de dois anos, cujo nome é etimologicamente grego; foi o
pai que lhe preparou o sepulcro.
As remodelações por que o espaço
passou cortaram, por exemplo, a muralha do século IV, e esta cortara, por sua vez,
casas romanas, tal como acontecera na cidade romana de Conimbriga, com o pormenor de, aqui, as paredes estarem pintadas a fresco
de ambos os lados (Fig. 2)! Maravilha!
Um museu
A zona central, de estar, do hotel,
proporciona a observação, a nível do solo, dessas estruturas romanas, algumas datáveis
do século I.
Em plano superior, donde pode
ver-se, em panorâmica, o conjunto arquitectónico (Fig. 3), foi colocada uma
longa vitrina com os achados mais significativos (Fig. 4), a documentar o que
foi a ocupação humana do sítio desde os tempos da Pré-história e, nomeadamente,
da Idade do Bronze até ao século XIX e aos nossos dias: «Três mil anos
de história», como atrás se assinalava.
Localizado junto ao rio Tejo, numa
área que desde sempre (ousaríamos dizer) servira para o comércio ligado à
navegação, o edifício sofreu, naturalmente, com o terramoto de 1755 e desse
momento há um testemunho que se me afigura notável. Notável em si e notável por
se ter logrado encontrar. É que um dos comerciantes guardava as suas moedas num
saco e esse montinho de numismas constitui, sem dúvida, um dos achados mais
curiosos, porque, meio derretido pelo calor do incêndio que o tremor de terra
provocou, ali se mostram as moedas agarradinhas umas às outras!... (Fig. 5).
Depois, há uma sugestiva colecção de
cachimbos de caulino, moedas, medalhas, crucifixos e anéis… A História
esparramada em fragmentos pejados de eloquência...
A estela fenícia (Fig. 6)
A estela, de 73 centímetros de
altura, que ostenta uma inscrição em escrita fenícia, é unanimemente considerada
uma das peças mais valiosas do espólio recolhido, por se tratar, de acordo com
os investigadores que a estudaram, «a manifestação escrita mais antiga
recuperada na Europa Ocidental». Datável do século VII a. C., é «a inscrição
funerária de um indivíduo com possível nome local», como pode ler-se no artigo
que os descobridores publicaram no volume 19, de 2016, p. 123-128, da Revista Portuguesa de Arqueologia, onde
se afirma:
«A
existência de conhecedores da escrita fenícia e dos seus costumes epigráficos
vem trazer luz sobre a introdução e desenvolvimento da própria escrita e os
seus usos (especialmente os epigráficos) tanto na fachada atlântica peninsular como em toda a Península Ibérica
(pois não estamos apenas perante a mais antiga amostra de escrita na zona, como
também na presença de um dos mais antigos testemunhos de epigrafia monumental
lapidar no Ocidente)».
A
importância do achado – que, apesar de já publicado numa revista de referência,
não terá tido ainda a repercussão científica que merece – justifica a sessão
que se programou para o próximo dia 5 de Maio deste ano de 2018, nas instalações
do próprio Hotel Eurostars Museum, porque se lhe seguirá uma visita à colecção.
Do programa constam,
sob o título genérico «Um dos mais antigos testemunhos de escrita no Ocidente»:
a notícia do achamento, por Nuno Neto e Paulo Rebelo; a contextualização paleográfica
da estela e sua relevância no Ocidente europeu, pelo Professor José Angel
Zamora López (da Escuela Española de Historia y Arqueología,
de Roma); a contribuição do estudo da estela para o conhecimento da ocupação fenícia
de Lisboa, pela Professora Elisa de Sousa (Faculdade de Letras de Lisboa).
Os
merecidos aplausos
Comecei por frisar que, finalmente, as entidades que
têm por missão superintender na preservação da memória lograram entender-se,
mercê de muito combate persistentemente levado a cabo pelos ‘chatos’ dos
arqueólogos – para usar a terminologia recentemente adoptada por um deputado do
CDS na Assembleia Regional dos Açores. Na verdade, «segundo o líder do CDS-PP na Assembleia
Legislativa Regional, há arqueólogos a mais “para chatear o povo”». Na cidade
Património Mundial, disse ainda, os arqueólogos só servem «para impedir
as pessoas de construírem as suas casas». «Não precisamos desse tipo de gente
que só coloca problemas» (Diário Insular,
19-4-2018, p. 7). Felizmente que os centristas do Continente não perfilharão
tal ideologia.
Também
por isso me apraz divulgar, com louvor, a informação de que se teve conhecimento
em meados deste mês de Abril: procedeu-se, em Lisboa, a uma escavação na Rua de São Julião nº 80 (a nascente da Rua da Prata),
para que se pudesse verificar, de uma vez por todas, se o criptopórtico romano
sempre se prolongava até aí, como se deduzia dos levantamentos antigos. E, sim,
prolonga-se e até foi possível saber-se o que ele sustentava à superfície em
época romana.
E acrescentava quem me facultou esta
notícia:
Foi fantástico! E tão fantástico
como essas descobertas foi o facto de esta intervenção ter existido graças à
conciliação de muitas boas vontades, muitas colaborações e empenhos (dono de
obra, empreiteiro, encarregado de obra, o director do Departamento de Cultura
da Câmara Municipal de Lisboa, a directora da Unidade de Intervenção do Centro
Histórico, o chefe da Divisão de Saneamento, a Empresa de Arqueologia que
escavou até à cota de obra e depois associou a ela arqueólogos para que se pudesse
prosseguir a escavação em profundidade com objectivos meramente científicos, a técnica
que, na Direcção Geral do Património Cultural «foi abrindo portas e janelas»,
«todos concertados para que, de um dia para o outro, pudéssemos estar lá».
Quando assim é – tal como ocorrera
no caso dos Armazéns Sommer – afigura-se-me legítimo congratular-me vivamente!
Congratulo-me!
José
d’Encarnação
Fotografias gentilmente cedidas pela Neoépica.
Publicado em Cyberjornal, edição de 29-04-2018:
Fig. 1 - A casa romana, de paredes com frescos. No mosaico, Vénus a descalçar a sandália. |
Fig. 2 - A muralha do séc. IV, que cortou a parede de uma casa. Assinalo a vermelho os vestígios dos frescos. |
Fig. 3 - Panorâmica sobre os vestígios romanos, vista do piso superior. |
Fig. 4 - Em segundo plano, a extensa vitrina onde cronologicamente se expõem os objectos mais significativos |
Fig. 5 - As moedas do mercador, que o incêndio subsequente ao terramoto de 1755 parcialmente derreteu. |
Fig. 6 - A estela fenícia, o mais antigo vestígio da escrita encontrado. |