Celestino
Costa, por exemplo, plasmou nos seus livros A
Minha Terra e Eu (1992 e 1995) e Filosofia
Saloia (1998) o que ora bem se recorda dos costumes vividos na freguesia de
S. Domingos de Rana, em meados do século passado, quando era jovem e começava a
ser adulto. Não admira, por isso, que Maria Micaela Soares, ao traçar as
características da vida dessa Cascais de outrora, no seu inigualável livro Saloios de Cascais – Etnografia e Linguagem (Cascais,
Abril de 2013) cite, por exemplo, versos do Celestino, a propósito do ciclo do pão
e dos arreigados hábitos que pelas aldeias o rodeavam.
Júlio
Conrado tem outro olhar. Não o alicia
a História como ciência nem os costumes do prisma do etnólogo ou do
historiador. Nesta 3ª versão (Junho de 2017) de As Pessoas de Minha Casa – e «casa» são os ambientes por onde
passou, desde a infância até agora – tudo escalpeliza sem dó nem piedade,
cruamente, embrenhando-nos por caminhos que foram de muitos de nós, mas de que,
por prudência, por medo ou por eventual pudor, até nem sonhamos querer recordar,
quanto mais esmiuçá-los tintim por tintim, sem rodeios, por escrito.
Sim,
temos aí o ambiente vivido por pessoas na sequência de Revolução de Abril. Por pessoas. Com tudo o que a revolução trouxe de novo a nível íntimo, de convicções, de
liberdade. Mas Júlio Conrado acabou por querer mostrar também o que fora o
círculo dos seus relacionamentos desde a infância. Não insistirei em que se
trata, esse, de um romance autobiográfico, classificação
que, mui logicamente, o autor desde logo abju ra;
pode não estar ele retratado no protagonista, mas podia estar. E, para nós, os
que, até por deformação
profissional, procuramos reconstituir o que foi a vida desta Cascais desde Carcavelos
ao Guincho em meados do século passado, isso pesa pouco na balança do
historiador.
Não
se põem, contudo, as mãos no fogo se pensarmos em excluir esse jovem do número
daqueles que, na praia de Carcavelos, estavam à espera do assobio do Tó Zé banheiro
para irem ver «gajas nuas na cabina do chuveiro delas que merecem uma espreitadela
pelo buraco que o Tó cuidadosamente descerrava, afastando a bóia, dependurada,
que o cobria» (p. 180).
Como
o não excluímos das cenas da Instrução
Primária, em que pontificava um «xenhor profexor», «beirão que elegera a
expressão sê burro como invectiva favorita», «dois tostões para a caixa
escolar. Datar, enumerar, carradas de pleitos contra sarracenos e negros», e que
não hesitava em «malhar, cego, na tenra carne ao alcance da sua chibata» (p.
159).
Descrição realista de um mundo que era assim, bem no
sabemos.
Duas
outras descrições não resisto eu a partilhar, porque observadas de fora, num
sarcasmo. De caminho, uma referência: «O emprego na Câmara, doze notas de cem
de ordenado, catita para a época e para um chavaleco solteiro. O homem da situação que me arranjara trabalho na secretaria
municipal agarrar-se-á a essa bóia depois do 25 para se sacudir de respons abilidades, argumentando que até dera dinheiro a
ganhar a tipos do contra» (p. 58). E isso é preâmbulo para a refinada descrição da tradicional procissão cascalense da
sexta-feira santa:
«As
autoridades descem a Marginal, integradas na procissão. O presidente da Câmara,
o chefe da polícia, o tesoureiro da Fazenda, o comandante da Unidade, e talvez
o representante local da secreta, marc ham
sob o pálio sem nenhum remorso. Chefia o desfila o pároco de anafados atributos
gerindo a presença de Cristo entre aqueles senhores tão bem-postos e com uma compunção muito cangalheira nas fisionomias mas finórios
como raposas na luta pela sobrevivência» (p. 58).
Relata-se,
mais adiante, o que poderia ter sido – e, se calhar, foi – a reacção perante os novos ritmos introduzidos nos bailes
do Gil:
«Quadrilheiras
indignadas imprecam forte e feio desde os lugares reservados da sala. O baile
deu neste circo, Senhor meu que já estais no céu a esta hora, mesmo de aí olhai
como se vai perdendo a fé nesta santa terra, é vê-las largar as pernas pelas
ancas deles, é vê-los pegar nelas como sacas de batatas, aluga a gente um camarote
por um dinheirão para lhe sair na rifa uma bandalheira assim» (p. 59).
Falas
passadas a escrito, sem papas na língua. A certeira agulha da eficaz vacinação .
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 223, 2018-02-28, p. 6.