quarta-feira, 29 de julho de 2015

Peer Gynt - uma representação que dá que pensar!

             Escreve Miguel Graça, na folhinha distribuída em cada sessão, que a peça «Peer Gynt», do norueguês Henrik Ibsen, datada de 1867, nos põe questões: «O que é viver?», «Quem somos nós?».
            Na verdade, ao vermos as peripécias imensas por que passa o protagonista, altos e baixos, anjo e demónio, acabamos por sentir que, amiúde, cenas dessas também fizeram parte da nossa vida. Aliás, o próprio Carlos Avilez, o encenador, diz mesmo que «Peer Gynt é uma viagem extraordinária que fizemos primeiro ao longo de 50 anos e agora nestas últimas oito semanas».
            Merece o texto, na – sempre de elogiar! – versão e dramaturgia de Miguel Graça, uma análise profunda. E cada um dos espectadores, por mais vezes que veja o espectáculo (em cena no Teatro Municipal Mirita Casimiro, até 9 de Agosto), há-de reter inúmeros motivos de reflexão, inclusive porque – embora escrita em meados do século XIX, eivada, pois, dos ‘fantasmas’ de então, que não serão, afinal, mui diferentes dos nossos – a peça detém uma riqueza extrema. Não cabe, pois, nesta leve crónica um esmiuçar das filosofias de vida aí apresentadas. Mas não passarão despercebidos, mesmo ao espectador menos atento, alguns bem sugestivos apontamentos, a que o trajar ou o simples tom de voz e pronúncia emprestam uma actualidade pungente, que – estou certo disso! – toda a companhia bem se divertiu em caricaturar. As bailarinas de… burka! Ou aquela espécie de conferência de líderes europeus, de tiques bem nossos conhecidos e teorias também…

Uma prova de finalistas
            Recorde-se que, ao lado dos actores da companhia, entram em cena, para a sua prova de aptidão profissional, os estudantes finalistas das Escola Profissional de Teatro de Cascais, assim como alguns dos alunos do 2º ano, para desde já se habituarem a pisar o palco.
            Há, por isso, quatro elencos, uma vez que a intenção de Carlos Avilez, em sintonia com o corpo docente da Escola, é fazer com que cada um dos estudantes vista a pele de mais do que uma personagem. Primeiro, para ser avaliado; depois, para que se auto-avalie e verifique em que papel melhor se sente; e, finalmente, para que saiba ser a versatilidade uma das características mais importantes do actor: hoje, senhora, amanhã, criada; depois, bailarina ou bruxa ou doida varrida, cheia de tiques…
            Uma peça como esta – que é, no fundo, o imaginário retrato da vida, uma espécie de odisseia dos tempos modernos, também ela pejada de fantasias, sonhos e loucuras… – presta-se bem a pôr à prova os dotes do estudante que sonha ser actor. E não se pense que há aqui «papéis pequeninos», sem valor e sem necessidade de treino ou atenção. Nada disso! Veja-se, a título de exemplo, a cena do manicómio: cada um representa a seu modo, tudo estudado ao pormenor, para que seja eloquente o conjunto. Recordo que, tendo ido à zona dos camarins para cumprimentar alguns dos intervenientes, olhei para o palco e vi como os rapazes encarregados de, a determinado momento, retirarem um palanque metálico, estavam a treinar, para que, na representação seguinte, tudo corresse a contento. Porque, senhores, as mudanças de cenário, feitas num ápice, requerem treino adequado e sobretudo se, como no caso vertente, esse mobiliário é retirado mesmo em cena e, ainda por cima, em movimentos quase de bailado, que necessitam de notável sincronia. E, nesta acção, como em toda a peça, a coreografia de Natasha Tchitcherova desempenhou papel fundamental.
            Carlos Avilez – sempre com o apoio incansável da sua equipa técnica, que se desdobra – pensou numa cenografia singela, mais de evocação de ambientes do que da sua efectiva recriação (que, aliás, bem se dispensa). Fernando Alvarez teve, também aqui e nos figurinos, acção relevante, com a ímpar experiência que se lhe reconhece. É singela, sim; mas exige, por isso mesmo, rápida e bem sincronizada movimentação de actores.
Maria Vieira e Pedro Condessa, mãe e filho
            São quase quatro horas de espectáculo, contando com os dois intervalos. O protagonista (José Condessa e André Leitão) está em cena o tempo todo. Maria Vieira, a actriz convidada, que faz o papel de mãe do protagonista, ocupa parte importante do primeiro acto e, pelas declarações que já lhe ouvimos, considera esta uma das bem importantes experiências da sua carreira, nomeadamente – como tem acentuado – por poder partilhar o palco com estes jovens e promissores actores.
            Enfim, com mais esta prova de aptidão profissional, que reúne em palco 51 actores mais 22 alunos do 2º ano, o Teatro Experimental de Cascais demonstra a validade do teatro como forma de fazer Cultura e Intervenção e documenta, por outro lado, o excelente trabalho educativo que, através da arte de bem representar, se está a desenvolver na Escola Profissional de Teatro de Cascais.
            Não há senão uma atitude a tomar: aplaudir. De pé!
                                                                      José d’Encarnação
 
Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 103, 29-07-2015, p. 6.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Do Pinhão, um dia, parti…

           Que fazem os poetas? Adoptam, com maior frequência, a atitude ideal: tomam consciência da realidade, assumem-na e partem dela para uma reflexão.
            Recostado na espreguiçadeira da piscina, as ondas pequenas a espreguiçarem-se, também elas, na praia alia em baixo, vejo quatro cargueiros parados na linha do horizonte. Situação corrente. Já ali estão há três dias. O técnico dirá: esperam vaga no porto de Lisboa; o Poeta, porém, é capaz de os pôr a ganhar fôlego para novas viagens, impregná-los de tédio pela bem escusada espera ou descobrir-lhes inveja da agilidade branca dos barquitos à vela que lhes fazem negaças perto, manobrados por aprendizes…
            Confesso-me incapaz de escrever versos e tenho dificuldade em classificar de ‘poema’ um texto só porque formalmente se apresenta estruturado em versos, designadamente se desprovido de rima. Aceito, todavia, essa opção – pois, amiúde, dessa forma sintética a mensagem resulta mais eficaz que prolixo e mui erudito tratado.
            Tenho presente o livro Cintilações, de Ana T. Freitas, edição de Apenas Livros (Abril de 2015, ISBN: 978-989-618-505-3, 116 páginas). No texto com se apresenta, fala dos livros que leu na infância e juventude; evoca os tempos da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian (uma das iniciativas de Branquinho da Fonseca que nunca será de mais enaltecer). E suspeitamos que seguiu a carreira docente.
            A partir de 2009, mercê do convívio com Jorge Castro – também ele acordado para estas lides poéticas passada a meia-idade e autor do prefácio do livro que se comentará a seguir –, reencontrou esse modo de se expressar. Tal como Jorge Castro fazia em Cascais as Noites com Poemas, iniciou Ana Freitas, com o maior êxito, a série mensal Um Poema na Vila, em Coruche, tertúlia donde saíram já os livros A Minha Rua e O Montado – Um Lugar Poético, cujas edições coordenou.
            Significativa, a capa de Cintilações: a foto da estação ferroviária do Pinhão, da sempre magnífica Linha do Douro, em pleno Outono, quando essas encostas se vestem de dourados e castanhos: «… neste comboio, serpenteando montes, parti um dia para o mundo que se abria…». E pelo livro é, de facto, todo um mundo que se nos abre, frequentemente a verberá-lo, porque se desejaria bem melhor:
 
                         «assim vão as nossas vidas
                         flutuando em mares de números
                         poluídos
                         suportados pela palavra».

            Essa, a observação; e vem depois o voto:

            «a vida só pode ser vivida de braço dado
            com a grandeza dos números e a humanidade das letras» (p. 43).

            Palavras soltas, por vezes, como salpicos de água refrescantes: «vozes sons entoações expressões» (p. 60) – e imagina-se a ternura mágica da mãe a embalar o filhote…. Salpicos mesmo!
            A noite de S. João no Porto, natural ensejo para saborosas quadras populares; mas lá vem o final atento, como nas fábulas de Esopo, numa desculpa ao santinho por não ser viável a esmola e no lamento:

                               «A crise serve para tudo
                               Sem um futuro em que invistas
                               Injustiça é mais injusta
                               Mas, amigo, não desistas!»  (p. 41).

            Os votos, aliás, sucedem-se, diante de um panorama que voluntariamente se oculta porque se auspicia bem diferente: «eu queria a minha escola no agora poético / que cada um corresse para ela na certeza do prazer» (p. 38).
            Agrupados em duas partes («… aqui», «e além…»), estão datados os poemas: o mais antigo de 14.03.09 e de 24.04.2014, o mais recente. Trazem, por vezes, a indicação expressa do que os motivou: as ânsias da intervenção oftalmológica, o «1º mês de corte de salários na função pública», a D. Alice, de 81 anos, louletana que encontrou no Hospital de Santa Maria e que sabia falar em rima…
            Só mui raramente há pontuação. As palavras (des)alinhadas obrigam a pausas inesperadas – que fazem pensar. E essa é, afinal, a nobre missão do Poeta!
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 28-07-2015:

O fantasmagórico sonho de um rei romântico

           Gostei de ver. Acompanhava, mais uma vez, familiares na visita ao Palácio da Pena, a 9 de Junho, e muito me congratulei com a multidão de visitantes, quer portugueses, quer, sobretudo, estrangeiros, que me apercebi serem de vários continentes.
            Estava, de facto, um dia magnifico e o palácio vive, sem dúvida, do seu ímpar recheio e da invulgar majestade da sua construção altaneira, mas, de modo bem especial, do seu enquadramento.
            Bem andou o rei D. Fernando II quando, em 1838, resolveu adquirir o vetusto e então devoluto convento dos Monges Jerónimos de Nossa Senhora da Pena, mandado erguer no topo da serra por um dos seus antecessores, el-rei Manuel I, em 1511. Recuperou-o em parte e, por volta de 1843, encarregou o arquitecto alemão Barão de Eschwege de proceder às ampliações que elevaram o edifício às proporções que hoje ostenta e nos maravilham. De resto, o facto de, aquando das obras de restauro levadas a efeito em 1994, se ter verificado que eram o rosa-velho e o ocre as cores originais, a opção foi a de essas cores se reporem, o que veio acrescentar relevo à já de per si fantasmagoria do conjunto.
            Bem andou o rei D. Fernando II em dar asas ao sonho. Encastraram-se as paredes nas concavidades das rochas, como que a desafiar as poderosas muralhas do Castelo dos Mouros, vigilantes na colina fronteiriça.
            Dir-se-ia que, ali, o tempo era outro, digno de ser saboreado longe das intrigas da Corte, alheio às cumplicidades da governação. Ali, o importante era viver, em contacto com a Natureza: o parque repleto dos verdes mais exóticos, ao mar ao fundo e, até, o Tejo e a Arrábida a perder de vista…
            Passeamo-nos devagar pelos corredores. Aqui, um quarto de dormir; mais além, a grande sala de lustres pendentes, cenário ideal para mui pomposa recepção… Imaginamos o que seria a vida, então, por entre aquelas paredes, que beijos, que olhares, que preocupações também… Como, ao atentarmos nas expressões dos visitantes de agora, nos apeteceria adivinhar que sentimentos todo o cenário desperta, por exemplo, neste magote de japoneses, tão longe dos seus estão os modelos artísticos aqui patentes, a vida de que quotidianamente estes interiores foram palco e testemunhas.
            A pausa na esplanada, as fotografias («Só mais este ângulo!...») constituem final imprescindível antes da hesitação da partida: retoma-se o pequeno autocarro ou desce-se a pé para melhor saborear a paisagem?
            Sempre novo, sempre recheado de surpresas este Palácio da Pena!                                      

                                                       José d’Encarnação

O palácio visto da Quinta da Regaleira

A entrar para o palácio

Claustro interior

A sinfonia das cores...

Uma cozinha bem apetrechada

A esplanada

A vista a alongar-se pelos verdes até ao mar, com o Guincho ao fundo...
Publicado em Cyberjornal, edição de 2015-07-28:

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Rabitesa!

              Um encanto haver tempo para ouvir conversas de velhos. Primeiro, porque eles têm necessidade absoluta de alguém para os ouvir; depois, porque adoram contar histórias vividas; e saem-nos sempre com cada expressão que não só enriquece o nosso vocabulário habitualmente já tão parco e contaminado por bem escusados estrangeirismos, como revela arguta observação da realidade.
            Vê vocêa! O filho saiu um bicho-do-mato, sempre metido no seu canto, não fala com ninguém. E ela, já pra mais de 90 anos, toda rabitesa! Faz toda a lida da casa, até se empoleira na escada para caiar e a gente grita-lhe: «Ti Ausenda, vossemecêa inda cai daí e nem a alma se lh’aprovêta!». Qual quê! Ainda é capaz de fazer pouco da gente, que já não prestamos pra nada!... Outro dia, deu-lhe um ginete e foi pra cima do telhado a ver como estava a chaminé, que as letras lá do nome do avô não se viam bem nem a data da casa…
            «Vê vocêa», por «veja, você» (às vezes, até vai mais um i para abrandar: vocêi…). E gostei do «rabitesa», que é como quem diz «de carnes rijas, nada de flacidezes!», entende-se... Depois, o ginete, a lembrar «ginete», cavalo ágil, «gineta», o gato selvagem, ou a gineta, espécie de furão – tudo animais que, num ápice, se nos fogem…
            Os nossos falares, esses, é que não podemos deixar fugir!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 198/199, Julho/Agosto de 2015, p. 10.

 

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Licor d'alfarroba!

             Os que tivemos a dita de viver as comemorações do centenário da criação do concelho de S. Brás de Alportel guardaremos vida afora, não há dúvida, inúmeras decorações de momentos únicos vividos, mormente nos três últimos dias.
            Trajar-se à moda de 1914, ir à «taberna» e ver os preços em vinténs, observar a séria animação do casal da caixa de música… constituirão seguramente imagens inolvidáveis.
            Poderia imaginar-se, à partida, que tudo não passaria dum carnaval. Envergavam-se esses trajos, tinham-se aqueles gestos e era tudo uma palhaçada. Não, não foi assim. Cada um sentia – e mostrava! – que não era um “palhaço”, era uma “figura” d’outrora – e essa memória fazia reviver como elo duma cadeia histórica que não conviria olvidar.
            Claro que há cenas a recordar mais do que outras. Impagável, a velhota de negro a incarnar aquele subconsciente mágico e perturbador; eloquente, o enterro com as carpideiras… Mas, claro, aqueles olhos muito azuis da enfermeira seriam mezinha segura para todas as maleitas e até apetecia sentir-se mal para ter os seus cuidados!... Olhos muito azuis que duas coisas mostravam: primeiro, quanto os algarvios do Barrocal resultam de antigos ‘cruzamentos’ – do Norte de África e do Norte europeu e sabe-se lá donde!... Depois, que no acudir aos doentes é precisa a técnica, sim, o saber, mas a beleza do sorriso se guinda, afinal, a remédio que eu ousaria chamar «santo».
            Na verdade, e essa é também uma lição das comemorações: o mais importante são as pessoas.
            E quando, quase no final da sua actuação, Ana Moura nos confidenciou que iria deliciar-se com um cálice do licor d’alfarroba que o Presidente lhe dera… a alma são-brasense rejubilou!

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz nº 224, 20-07-2015, p. 21.

domingo, 19 de julho de 2015

A lição do sismo

              Sentiu-se em Cascais, passavam 26 minutos da meia-noite, ou seja, já hoje, 19 de Julho de 2015, leve abalo sísmico. Os vizinhos vieram à varanda, a indagar se teria sido carro descontrolado que batera contra o muro. Não fora. Ligámos aos bombeiros:
            Estamos a tentar saber o que foi. Sentiu-se em toda a Cascais.
            Fomos ao facebook e, de imediato, surgiram os testemunhos, as perguntas e logo também o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, sem saber ainda se fora sentido pela população, divulgou comunicado a informar que se tratara de sismo de magnitude 3,2 na escala de Richter, com epicentro a 8 km a oés-sudoeste de Sintra, ou seja, na zona de Alcabideche. As notícias que foram surgindo no facebook, designadamente na página Novidades de Cascais, apontavam, de facto, para que fora por essas bandas que o abalo mais se fizera sentir.
            E hoje, de manhã, foram, sem dúvida, muitos os telefonemas de familiares e amigos doutras zonas do País, na preocupação de saberem se, na verdade, estava tudo bem e não passara de um susto. O próprio presidente da autarquia, logo minutos depois do abalo, pôs mensagem no facebook, a serenar os munícipes.
            Claro, os que somos mais velhos recordámos os pavores do sismo de 28 de Fevereiro de 1969, pelas 2h 40 m, esse de magnitude 7,3 na escala de Richter, que, embora o seu hipocentro tivesse sido localizado a sudoeste do Cabo de S. Vicente e a uma profundidade de 22 km (o de hoje foi a 40 km de profundidade), bem se sentiu em Cascais.
            Duas reflexões me ocorrem e peço licença para partilhar:
            A 1ª, a mais óbvia: nada somos e, de um momento para o outro, todas as ‘vaidades’ podem ser reduzidas a pó.
            A 2ª: o (ora) indispensável papel que detêm as redes sociais, porque, ainda mais do que o telefone, rapidamente podem cimentar comunidade e veicular informação. Um papel relevante, que muito importa seja, cada vez mais, usado em benefício de todos.
            Mas estas duas reflexões implicam uma terceira: somos pequeninos e conseguimos esta ‘onda’, porque há electricidade e, sobretudo, porque nos é possível aceder de imediato à Internet. Temos Internet. Somos, pois, uns privilegiados! Um privilégio que cumpre consciencializar!

                                                                                    José d’Encarnação
Oportuna imagem de Guilherme Cardoso, a mostrar
vestígios de mui antiga falha vulcânica visíveis no Arneiro
(junto à Malveira da Serra) 

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Museu Território de Xisto

             Programas para reabilitar o chamado «Interior» do País não faltam por i. Projectos exequíveis para lhe injectar uma seiva fertilizante também não. Até, por vezes, acontece que desses programas e projectos se lança a primeira pedra. Com pompa e circunstância, como convém. Nomeadamente em tempo de eleições e suas promessas. No entanto, amiúde os prometidos apoios tardam ou mesmo cedo se dissolvem, aninhados no suave conforto de uma secretária qualquer, em acolhedor gabinete com vista pró Tejo, quiçá!...
            Fracassos, porém, não podem ser como as águas tormentosas, que não enchem abismos. Prefiro compará-los às folhas amarelecidas que atapetam o chão, lhe mantêm frescura e, paulatinamente, lhe injectam (elas sim!) bem precioso fecundante.
            No passado dia 22 de Junho, defendeu João Orlindo Marques, na solenidade da Sala dos Capelos da vetusta Universidade de Coimbra, a tese de doutoramento (em Letras, área de História, especialidade de Museologia e Património Cultural) intitulada Pelos Meandros do Xisto: o Património Rural na Freguesia de Vide.
Capa do I volume da publicação
            Ali miudamente se caracteriza o que foi e o que é esta freguesia do concelho de Seia, os valores patrimoniais – físicos e imateriais – que detém e que importa preservar. No fundo, um território cujas características populacionais e económicas não serão muito diferentes das dos que lhe são vizinhos, nesta zona em que as vidas se passam na agricultura e na criação de gado, na montanha e nos vales e onde um olhar mais arguto determinou migrações para as cidades, para franças e araganças, em vista do eldorado gostoso. E pelas terras outrora produtivas deu em crescer o que calhava e o vento trazia… E pelas chaminés das casas típicas já não se esgueira o fumo quente de uma ancestral lareira.
            Que fazer? Cruzar braços, saudar apenas num dar-de-vaia os velhotes sentados à porta, a contarem quantos dias faltam pró Natal?
            João Orlindo propõe que não. E se o aliciar os novos para reocuparem habitações desertas até poderá ser solução perante as crescentes dificuldades citadinas (e o Povo sabe dar a volta por cima, oh se sabe!...), a criação polinucleada de um Museu Território de Xisto poderá servir de bom repositório de memórias, de reencontro de gerações e de costumes, de recriação de uma comunidade que urge cimentar.
            Irrealizável utopia? Vamos acreditar que não!
                                                                                                          José d’Encarnação

Publicado no quinzenário Renascimento (Mangualde), nº 666, 15-07-2015, p. 12.
Reproduzido em Porta da Estrela (Seia), ano XXXVIII, nº 1017, 15-09-2015, p. 14.

A ingenuidade vai ser rainha na galeria do Casino Estoril

             É o Dr. Nuno Lima de Carvalho, director da Galeria de Arte do Casino Estoril, um dos maiores entusiastas portugueses pela pintura a que se convencionou chamar naïf, adjectivo francês que significa «ingénuo»; mas, como, em larga percentagem da Europa, a língua francesa deixou de ser, como dantes era, a língua da intelectualidade, continuou a chamar-se «ingénuo» a uma pintura que deveria ser naïve, ‘ingénua’, porque não lhe apeteceria muito deixar os seus credos sexistas por mãos alheias… Enfim, crismou-se de naïf, no masculino – e não há volta a dar-lhe, pronto!
            Mas, género à parte, o certo é que se trata de um tipo de pintura que prima pela curiosidade, entendendo por curioso aquilo que, de facto, prende a atenção. São muito sui generis os pintores naïfs: distorcem a realidade como lhes apraz; são capazes de pôr um pássaro maior que um homem (vamos lá nós saber porquê!...); e, sem mais aquela, pintam uma árvore de cor-de-rosa velho!… Não, não é surrealismo, terra de sonhos e fantasmagorias: é o retrato de um mundo visto à maneira deles, bem multicolorido.
            De um modo geral, o naïf não estudou; não sabe lá muito bem o que é isso de perspectiva, a perspectiva é a que ele vê e bota a casa aquela num equilíbrio que só Deus sabe como é que os muros não caem!... Isso nos delicia!
            Por isso, Lima de Carvalho se deixou encantar e luta, há 35 anos, por manter bem acesa a chama do apoio da sua galeria a esses pintores, alguns dos quais já consagrados internacionalmente. Por isso, abre, no próximo dia 25 (de sábado a oito dias), a partir das 17 horas, mais um Salão Internacional de Pintura Naïf, o XXXV. Estará patente até 5 de Setembro!
            E aqui vai, por ordem alfabética, o rol dos artistas cujos trabalhos nela figurarão: A. Barbosa, Albino José Moreira, António Charrinho, A. Réu, Arménio Ferreira, Augusto Pinheiro, Bento Sargento, Cecília, Conceição Lopes, Edna de Araraquara, Elza Filipa, Emil Pavelescu, Feliciana, Fernanda Azevedo, Ivone Carvalho, José Maria, Juan Guerra, Leonel Pereira, Luiza Caetano, Manuel Carvalho, Manuel Castro, Maria Vilaça, Nell, Rocha Maia, Silvana e Zé Cordeiro.
António Poteiro
            Acrescente-se que se aproveitará o ensejo para homenagear António Poteiro, que, nascido em Barcelos, foi, ainda criança, para o Brasil, com seus pais, artesãos oleiros. Junto deles aprendeu a trabalhar o barro, encaminhando-se depois para a pintura dentro da linguagem naïve. Depressa se notabilizou e «se transformou num génio da Arte Popular, convidado das Bienais de São Paulo, premiado em grandes eventos culturais e artísticos no Brasil e no estrangeiro, e uma referência mundial no campo da Arte Naïf», afirma Lima de Carvalho.
            Fica, pois, o convite para uma demorada visita!

                                                                                              José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 16-07-2015:

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Solidariedade vence contrafacção

             O Inspector-geral da ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), Pedro Portugal Gaspar, entregou na passada terça-feira, 7 de Julho, ao Centro de Apoio Social do Pisão, em Alcabideche (Cascais), 428 pólos que haviam sido apreendidos, por resultarem de uma contrafacção da marca La Martina. No protocolo assinado com a Santa Casa de Misericórdia de Cascais, instituição que tem a seu cargo a gestão do Centro, determina-se que a Misericórdia retirará dos pólos, antes de os pôr a uso, a respectiva etiqueta, como salvaguarda dos interesses comerciais e, naturalmente, para dar completo cumprimento ao objectivo da apreensão.
            Poderá o leitor admirar-se de, sem receio, ter indicado o nome da marca. A razão é simples: a de louvar! Na verdade, conforme Portugal Gaspar teve oportunidade de salientar, nem sempre uma atitude destas é possível, porque boa parte das firmas que viram os seus produtos alvo de contrafacção preferem que eles sejam queimados, em vez de, com as referidas precauções, serem entregues a instituições de solidariedade. Uma atitude que, por conseguinte, facilmente poderia modificar-se, para benefício de todos, uma vez que, da parte da ASAE, há o cuidado expresso de evitar qualquer hipótese de os produtos apreendidos voltarem a ser indevidamente comercializados.

As cores e os clubes
            O facto de os pólos serem de mui variadas cores proporcionou à Dra. Isabel Miguens, provedora da Santa Casa, a oportunidade de explicitar uma das preocupações presentes na instituição: a de se evitar o uniforme, a igualdade no trajar. São 340 os actuais utentes do Centro, todos eles com deficiências múltiplas, dependendo, por vezes, não de uma mas até de quatro pessoas; vêm de todo o país, enviados pela Segurança Social («As pessoas mais improváveis vêm aqui parar», sublinhou). Estes 428 pólos, na variedade das suas cores, vão também ajudar numa das prioridades que se procura ter: a higiene. Acima de tudo! Quando vão ao hospital ou quando se deslocam a repartições públicas, os utentes vão bem apresentados – e esse é um dos propósitos a, invariavelmente, cumprir.
            – Levámos 27 anos para individualizar as roupas! – afirmou a Provedora. E, neste caso, a disputa, a haver, situar-se-á fundamentalmente numa lógica clubista: Benfica / Sporting / Porto…
            Em resposta, Pedro Portugal Gaspar, fez questão em garantir que, para a ASAE, após a luta pela defesa dos legítimos interesses dos cidadãos, o segundo passo que procura dar é o da solidariedade, consubstanciado em gestos como este, que particularmente lhe agradou, pois a entrega permite dar um pólo a cada utente e até sobejam!

Uma visita sempre com surpresas!
            Após a cerimonia protocolar, que mui significativamente se realizou numa das salas do espaço museológico do Centro, a Senhora Provedora – que transborda de entusiasmo perante as melhorias que paulatinamente aí se vão introduzindo – fez questão em mostrar boa parte das instalações a Portugal Gaspar e à sua comitiva, a fim de poderem observar concretamente o funcionamento da instituição.
            E não há dúvida que temos sempre surpresas, mesmo aqueles que estão «por dentro» dos milagres que ali se operam, no quadro de uma população com tantos problemas, mormente de saúde mental.
            Na realidade, o objectivo diário não é apenas o de gerir o presente: procura-se incessantemente melhorar e, inclusive, desenvolver as capacidades dos utentes. E é um encanto passar, por exemplo, pelas salas de formação, onde com entusiasmo e dedicação se faz carpintaria, se costura, se confeccionam saborosos bolos…
            Mantendo-se activos e verificando que o resultado da sua actividade é apreciado e tem real utilização, os utentes mais facilmente se transformam, menos dificilmente encaram o seu dia-a-dia, que, assim, está muito longe de ser monótono. E ainda bem, inclusive para os mui devotados trabalhadores, cujo labor está, obviamente, muito longe de ser… «pêra doce»! Mas todos eles querem que… hoje seja um bom dia para sorrir!...

                                                                       José d’Encarnação
 
Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 101, 15-07-2015, p. 6.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Cerveja, pretexto para história e para museu

            A inauguração, a 27 de Junho, das novas instalações, em Coimbra, de Praxis – Fábrica e Museu da Cerveja, constituiu excelente pretexto para apresentar substancial opúsculo de 8 páginas bem ilustradas, que aliciam não apenas a apreciar refrescante copo mas também a deixar-se seduzir por uma história eventualmente não muito conhecida.
            É que, para além de se explicar o processo de fabrico, aí traça em pormenor o Doutor José Maria Amado Mendes, com o saber e maestria que lhe reconhecemos, breve história da cerveja, desde as mais remotas eras até aos nossos dias. Em geral, no mundo; e, em particular, na cidade de Coimbra, de que muitos recordarão ainda a Topázio ou mesmo a Onyx.
            Trata-se, na verdade, de uma história singular (cuja cronologia também aqui se desvenda), uma vez que, pelos vistos, é bebida que – a par do vinho (este preferido, de facto, pelos Romanos) – percorre todas as épocas da história universal, nos mais diversos quadrantes geográficos. Aí se explica, por exemplo, que foram os monges da Idade Média que introduziram o lúpulo como matéria-prima, porque, aromático como é, «fornece à cerveja um amargo e aroma característicos», e há documento datado de 822 que o atesta. No nosso país, só no século XIX é que a produção cervejeira «atinge a escala empresarial», havendo referência a mais de uma dezena de empresas, em Lisboa, Porto, Coimbra e Ponte da Barca.
            No que se refere à produção cervejeira em Coimbra, determinam-se cinco períodos na sua evolução, desde meados do século XIX à actualidade, em que, sublinha-se, a produção passou a assumir, de novo, típico carácter artesanal. É nesse âmbito que se insere a Praxis, mercê da experiência adquirida pelos seus técnicos com reconhecidos mestres cervejeiros em Berlim e na América do Norte.
            O Doutor Amado Mendes iniciou, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, há mais de duas décadas já, a leccionação da cadeira de Arqueologia Industrial e tem, por isso mesmo, acompanhado a história e proposto a possível musealização de antigos edifícios fabris abandonados. Por conseguinte, chamado a colaborar neste projecto, não deixou de sugerir, também aqui, a organização de um espaço museológico, para sobejamente se patentearem, nesta cervejaria artesanal, as «preocupações de valorizar o património industrial e gastronómico da cidade».

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 10-07-2015:
 
 
 

domingo, 5 de julho de 2015

Os tiques e as manias dos grandes

            Passava os dias no silêncio dos mármores e das cruzes, perpetuando – ou julgando perpetuar!... – na pedra os nomes de quem já partira. ETERNA SAUDADE DE SUA ESPOSA, FILHOS E NETOS
            Fechava às cinco da tarde o cemitério e abalava para casa. Meditaria, quiçá, nos nomes que gravara, nos mármores que assentara sobre as campas e perguntar-se-ia das vidas. Daí o seu apreço pelas biografias dos homens que, ao longo dos séculos, se haviam notabilizado:
            «Não se deve falar do género humano com desprezo, quando se pensa em semelhantes exemplos.
            É agradável admirá-los e é bom e salutar, como disse um mestre, alimentarmos sempre em nós o culto dos grandes homens e das grandes coisas» – escreve Celestino Costa no final.
            Miguel Ângelo, por exemplo, é o seu ídolo:
            «Possuía, em supremo grau, o amor sincero e activo do Belo, da Verdade e do Bem. É, com certeza, um dos homens que mais honraram a vida».
            E, ao ler as biografias, achou piada aos tiques, às manias, aos casos do dia-a-dia, que foi minuciosamente anotando, a lápis, em letras capitais, para melhor se entender.
            Contos Recontados é, pois, o resultado dessa recolha, serenamente feita, anos afora, por Celestino Costa, o poeta de S. Domingos de Rana, o canteiro do cemitério da Guia, em Cascais. Um livrinho singelo, que num ápice se lê, mas que, de facto, diverte e, nalguns casos, até é capaz de fazer pensar.
            Numa edição de Apenas Livros (ISBN: 978-989-618-501-5) em colaboração com a Associação Cultural de Cascais, o livro foi apresentado no sábado, 20 de Junho, na Biblioteca Municipal de S. Domingos de Rana, em sessão presidida pela Profª Maria Fernanda Gonçalves, uma vez que a iniciativa mereceu amplo apoio da Junta de Freguesia.
            Celestino Costa aproveitou a oportunidade para – numa pequena mas bem significativa exposição – mostrar também alguns dos seus trabalhos de canteiro em vários tipos de pedra, tipos de que teve o cuidado de identificar alguns com legenda gravada, para que tal identificação se não perca com o tempo. Apresentou, por exemplo, o baixo-relevo que se reproduzira na capa do seu livro A Minha Terra e Eu (2ª edição, da Associação Cultural de Cascais, em 1995) e que representa uma oficina de canteiro. A Presidente da Junta foi obsequiada com uma fotografia emoldurada desse trabalho.
                                                              José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 05-07-2015:
 
 
 
 

 

Uma Luta que… lutou até ao fim!

            Será seguramente uma história a contar, no quadro da economia cascalense. Uma vista de olhos pela imprensa local dos anos 60 e seguintes dará, sem dúvida, uma panorâmica exacta do que foi a luta dos comerciantes cascalenses, numa época em que o aparecimento ou a previsão de virem a aparecer as chamadas «grandes superfícies» ameaçavam pôr em causa negócios que, até aí, se situavam predominantemente ao nível familiar.
            Primeiro, foi o Pão de Açúcar (hoje, Jumbo, do grupo Auchan), que veio instalar-se mesmo no coração da vila, dir-se-ia, e que, por isso mesmo, na medida em que iria comprar por atacado e, logicamente, a menor custo, acabaria por aliciar a clientela, com os apregoados preços baixos. Já nessa altura os diversos padeiros do concelho se haviam juntado na União Panificadora de Cascais e construído, em Alvide, uma fábrica que visava satisfazer todas as necessidades da população em termos de abastecimento. Praticamente todas as pequenas padarias encerraram, para unir esforços, ou as que se mantiveram – como foi o caso da chamada do «Paulino», na Rua Afonso Sanches – começaram a ter funções complementares à fábrica de Alvide.
            O exemplo tanto da Panificadora como a apregoada circunstância de uma grande superfície poder comprar por atacado levaram os principais comerciantes da vila a encetar negociações no sentido de se reunirem numa cooperativa que lhes permitisse minorar os efeitos seguramente deletérios dessa concorrência que não tinham podido evitar. Recorde-se que, anos antes do 25 de Abril, ganhara o movimento cooperativo grande incremento, não apenas no domínio económico mas também no educativo e cultural.
            E, se bem o pensaram, melhor o fizeram, mau grado todas as desconfianças e dificuldades. Assim surgiu a Luta, como cooperativa de abastecimento nomeadamente no âmbito alimentar. Foi um dos seus principais mentores António Bernardino de Almeida, que tinha loja de electrodomésticos na Rua do Regimento 19. A sua acção pioneira seria justamente reconhecida pelo Município, que lhe atribuiu nome de rotunda, à entrada da vila, junto ao Bairro da Assunção.
            Para além da manutenção das suas lojas, os comerciantes acabaram também por optar pela criação de um supermercado, como forma de lutarem com os mesmos meios contra a concorrência crescente. Assim se criou o supermercado na Quinta da Carreira e, em Alcoitão, à saída para Manique, nasceram os armazéns aonde diariamente o movimento foi cada vez maior e inclusive havia bomba de gasolina com desconto para os associados. Esse edifício passou a estar, naturalmente, no quotidiano das gentes do concelho e daí que a rotunda - hoje decorada com tubagens num ‘hino’ às pequenas indústrias que paulatinamente se instalaram nessa estrada de Manique - passou a ser vulgarmente conhecida por ‘rotunda da Luta’.
            Qual não foi, pois, o nosso espanto quando, há dias, o letreiro LUTA deu lugar a um gigantesco CASA CHINA.
            Compreendemos. A Luta lutara até ao fim; mas… sucumbiu perante os poderes maiores.
            Compreendemos, sim; mas lá que temos muita pena isso é que temos!

                                                    José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal¸5-07-2015:

sábado, 4 de julho de 2015

Grande Gala de Fado evocou Carlos Zel

            Depois de, na noite de 7 de Junho, das janelas dos Paços do Concelho de Cascais se terem ouvido fados a relembrar as décadas de 60 e 70, o período em que o fado por aqui morava «fora de portas», foi a vez de o Casino Estoril realizar, a 17 de Junho, a 14ª Grande Gala do Fado, numa sempre sentida evocação do fadista cascalense Carlos Zel (1950-2002).
            Pretexto para reencontro de habituais frequentadores das boas noites de espectáculo no Salão Preto e Prata, que, mais uma vez, esteve lotado, a Gala teve acompanhamento de José Manuel Neto à guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença (viola de fado) e Daniel Pinto (Didi) na viola baixo. Foram, aliás, os músicos, que, ainda não eram 23 horas, deram o mote, numa guitarrada que se aplaudiu. Como cenário, uma dúzia de guitarras penduradas, em sedução...
            Começou Ricardo Ribeiro, camisa branca caída, lenço a descansar sobre o peito: «Entrega» (da Amália); o seu «Não rias»; «Bairro Afamado» («Gente boa, gente honrada / Fadistas venham comigo / Ouvir o fado vadio. E cantar ao desafio»); «A Alma do ganhão» (dolente, a ressumar Alentejo…).
            Às 23.15, Gisela João. Minivestido carmesim, longos cabelos lisos, sapatos carmesim também, saltos altos, uma túnica pelas costas. «Meu amigo está longe», um dos seus grandes êxitos, voz dolorida, quente, arrepia!… «Vieste do fim do mundo». «(A casa da) Mariquinhas», como só ela sabe interpretar, quase numa conversa cantada. Depois, em homenagem a Manuel de Almeida, «Fado corrido» (como ainda ecoam pelos pinhais de Birre essa voz rouca do Manuel, e não deixávamos passar uma noite sem que ele nos brindasse com o corrido, como só ele sabia cantar – e Gisela João vai muito bem!...).
            Camané, fato azul, camisa branca, sem gravata, anunciado – como todo o espectáculo, como vem sendo habitual – por Branca Frazão, viúva de Carlos Zel, que evocou os tempos do Kopus Bar. «Sei de um rio… rio onde a própria mentira / tem o sabor da verdade», seguramente um dos seus trabalhos mais significativos e que melhor se ajusta à sua voz; «A correr» (“sem repararmos que a vida passa por nós a correr”… e é verdade, não reparamos!); «Lume» («… e acendeste-me o cigarro»). «Saudades trago comigo» foi o seu 4º fado («… é morrer cantando o fado nos braços de uma mulher»…).
            Carminho. Calças pretas, suspensórios sobre uma blusa branca, sapatos pretos de salto alto. Começou com o seu «Lágrimas do céu» (‘quando eu canto e a chuva cai”…). Evocou as ‘quartas de fado’ de Carlos Zel. «As pedras da minha rua». «Malva Rosa». A terminar, «Meu amor marinheiro»… tinha que ser! (Já reparáramos que o som estava demasiadamente alto, e o fado quer-se discreto e Carminho poderia ter cantado com menor volume, gostaríamos mais…).
            João Ferreira Rosa. Mãos nos bolsos, de negro a camisa. «Ando na vida à procura duma noite menos escura…» – o fado ‘Triste sorte’, de Alfredo Marceneiro. «Fragata» – o segundo fado, um êxito consolidado. «Arraial», que ora outros fadistas também incluem no seu repertório, mas ninguém o canta como o seu autor. Finalmente, não podia deixar de ser, o «Embuçado», inimitável!...
            Maria da Fé. Vestido preto comprido, longo colar branco e brilhante, túnica breve em vez de xaile. «É daqui da minha terra». Recorda que pisou este palco em 1971 e agrada-lhe voltar. «Valeu a pena» – a sua declaração de vida! «Divino fado», um fado corrido, minha mãe eu sou do tempo da força que a água tem!... E um final bonito: «Cantarei até que a voz me doa!».
            Ovação. Meia-noite e 26 minutos. O agradecimento sentido de Branca Frazão a quantos estiveram presentes nesta noite e, de modo muito especial, aos fadistas.
            E saímos. Carentes de algum aconchego, quiçá. No «Lounge D» (antigo jardim de inverno), havia fado também…

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 2015-07-02:

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Do teatro há cem anos… em Évora!

            Está patente no bem restaurado Palácio de D. Manuel, em Évora, a exposição «O Paço Real e a cidade», evocativa do que foi, ao longo dos séculos, a relação deste magnífico edifício pleno de história com a vida da cidade.
            Nele funcionou, por exemplo, a partir da 2ª metade do século XIX, o Theatro Eborense e, por isso, na exposição se mostram cartazes dessa altura. Respigo duas informações que reputo de interesse, porque correspondem no fundo, a iniciativas que noutros lugares na mesma época se levavam a efeito.
            Assim, anunciam-se bailes de máscaras para os dias 12, 16, 19, 20 e 21 de Fevereiro de 1882, a «preços e condições do costume». Achei curiosa esta anotação.
            Recordo que, ainda nas décadas de 50 e 60, se faziam «bailes de benefício», cujos proventos angariados eram entregues a quem, por inesperada desgraça, necessitava de ajuda, numa altura em que não havia Segurança Social e também já não estavam activas as confrarias medievais que amealhavam para auxílio dos seu membros necessitados. Chamou-me, por isso, a atenção, o anúncio de uma «récita extraordinária e de caridade», a realizar a 8 de Dezembro de 1913. Valerá a pena atentar no teor do anúncio, inclusive para se ver qual o sentir do Povo nessa época.
            A organização partiu de «um grupo de amigos e admiradores do distinto amador dramático o operário marceneiro Francisco Manuel de Andrade que há meses vem sofrendo duma doença na vista que o impossibilita de trabalhar, lançando-o em precárias circunstâncias». Por conseguinte, a récita será «em benefício do desditoso operário cego, e de sua desolada esposa». Repare-se na imensa carga afectiva que se desprende dos três adjectivos usados: desditoso, cego, desolada…
            Anuncia-se depois que «obsequiosamente» na récita «tomam parte as distintas amadoras» cujos nomes se indicam a seguir. E explicita-se que os preços a praticar serão os seguintes:
            Balcão: 31 centavos (310 réis)
            Plateia: 21 centavos (210 réis).
            Não deixa de ser, também esta, uma nota interessante, porque – situando-se num período de transição do valor da moeda (do real para o escudo) – houve o cuidado de assinalar a respectiva correspondência. Aliás, muitos de nós se lembrarão ainda de ter na mão uma nota de vinte mil réis, perdão, de vinte escudos; mas, na linguagem quotidiana, vinte mil réis ouvia-se com frequência…

                                                                         José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 02-07-2015: