O abandono
Custa-me passar ali e ter de
atravessar carris quase enterrados. É à entrada de Montoito, uma aldeia do
concelho do Redondo, distrito de Évora. Era uma linha férrea que morreu,
porque, um dia, uns senhores de Lisboa acharam que não merecia a pena manter
essa ligação ferroviária para servir umas quantas aldeias dispersas pelo
interior do País.
Custa-me ir
de Coimbra à Lousã, circuito até há uns anos servido por linha-férrea (o «ramal
da Lousã») que, a mando dos senhores de Lisboa, rapidamente se levantou, sem
que houvesse alternativa do transporte para tantas localidades dos arredores da
cidade.
Custa-me ir
pela autoestrada do Sul e passar por cima da linha que ligava Beja ao Algarve e
que também foi desactivada.
Hoje, os
governos «torcem a orelha e não deita sangue» – como se diz em gíria , porque,
asneira feita, não sabem como a hão-de emendar. Ou melhor, já viram que têm de
voltar ao tempo antigo, pois, se outrora o comboio era o meio de transporte
mais barato, agora, com todas as restrições energéticas, ainda o será mais!
2.
Evocações
Como moro
em Cascais, sempre me habituei a ir de comboio para Lisboa. De resto, esta
linha – que já chegou a ser terminal do Sud-Express! – reúne as condições
ideais e muitos guias turísticos a recomendam. Sou, porém, natural do Algarve e
desde pequeno que ouvia falar do «comboio-correio», a carvão. Era o comboio
mais usado de Lisboa para lá. Viajava-se a noite toda, para, no dia seguinte, o
correio chegar às estações.
A palavra
«estações» lembra-me a necessidade de explicar que, neste caso, não se tratava
das estações de caminho-de-ferro (as gares…), mas das estações de correio. As
estações requeriam, pela sua importância, que todos os comboios lá parassem, ao
contrário dos apeadeiros, simples plataformas onde só paravam os comboios que
assim possibilitavam a ligação entre aldeias. Hoje, com o desprezo a que se vem
votando o comboio, até há estações que mais parecem apeadeiros, pois não têm
bilheteira, não têm telefone, não têm pessoal, não têm café, não dispõem de
serviço de táxis…
Falei do Algarve.
É lá possível que se não privilegie a ligação ferroviária (ainda em via única e
não electrificada!) paralela à costa, para servir as praias algarvias? É lá
possível que uma cidade da importância de Silves – ela que já chegou, em tempos
idos, a ser a sede episcopal algarvia! – não ter serviço de ligação ao centro
urbano, uma vez que a estação fica a distância considerável?
E, a
propósito de estações e dos comboios e suas categorias conforme a velocidade
para que foram pensados – na actualidade, há o alfa, o intercidades, o
regional, o urbano, o comboio de mercadorias (qual recoveiro)… –, há a história
que compara a vida do Homem a um comboio. Pelos vinte anos, é um comboio
urbano: pára em todas as estações; dos 30 aos 40, é regional, pára nos
aglomerados mais movimentados; dos 40 aos 50, é intercidades, porque só pára
nas estações principais; dos 60 aos 70/75, é alfa, está cheio de pressa e só pára
uma ou duas vezes no percurso; dos 75 em diante, não circula, vai para o
estaleiro!...
3.
De Lisboa para Coimbra
De Lisboa
para Coimbra, onde trabalhei a partir de 1976, sempre privilegiei o comboio. Não
havia já a 3ª classe, de bancos de madeira, que ainda apanhei na linha de
Cascais, e de bilhetes bem acessíveis; mas eu só muito tarde comecei a ter
posses para viajar em 1ª e no foguete, nome por que era conhecido o antecessor
do alfa. Viajava em 2ª, em compartimentos de 8 passageiros. Ouvia, por isso,
habitualmente, as conversas mesmo entre pessoas que acabavam de travar
conhecimento e a quem uma viagem sem conversa, sem possibilidade de contar de
vidas e de doenças não tinha graça nenhuma! Tinha dificuldade, eu, em entabular
conversação. Preferia preparar as aulas, ler um livro, escrever o rascunho dum
artigo; nem sempre, todavia, me escapava e lá tinha de ouvir e de trocar
impressões.
Sempre me agradou muito essa
viagem, pelo tempo de que dispunha – primeiro, mais de três horas, agora duas horinhas
bem rápidas – para me encontrar comigo mesmo, para observar os outros, para me deliciar
com a paisagem. Um dos meus recentes livros de crónicas tem mesmo um título
baseado na observação da lezíria ribatejana assim ao romper da manhã, quando o
Sol acabara de nascer: sob as árvores, um manto branco, a geada que só mais
tarde o astro-rei lograria derreter – e daí o título Geada na Sombra!
4.
Os ferroviários
Uma
das estações – essa de paragem obrigatória – o Entroncamento. Nasceu logo na 1ª
metade do século XX, quando aí se fez o entroncamento da linha que daí seguia
para a cidade da Guarda (a Linha da Beira Baixa) com a Linha do Norte, que liga
Lisboa ao Porto. A maior parte da sua população original está, pois, ligada aos
mais variados ofícios que o comboio alimenta, os ferroviários, desde
funcionários da companhia (hoje chamada CP - Comboios de Portugal) até ao mais
modesto dos operários: maquinistas, revisores, fiscais, agulheiros...
Por falar em operários, importa não esquecer
que é inglesa a invenção do comboio; por isso, os comboios circulam pela
esquerda, à moda inglesa, e o nome deriva de ‘convoy’, que também designa a
força armada que protege, por terra ou por mar, pessoas ou mercadorias.
E porque é que eu relacionei
operários com ingleses? Porque me apareceu, há anos, a palavra ‘chulipas’ para
identificar as travessas de madeira de pinheiro (agora são de cimento) que
uniam os carris. Palavra estranha, essa, se não a relacionarmos com a sua
função de sobre elas, as chulipas, repousarem (dormirem…) os carris. Eram os… sleepers
(de sleep, sono, dormir)! Os dormentes!
E carris
faz-me lembrar «bitola», que é a distância entre um carril e outro. Usa-se em
Portugal e em Espanha a bitola ibérica, de 1668 milímetros de espaçamento, como
ficou convencionado a partir de 1955, diferente da europeia, a bitola-padrão,
que é de 1435 milímetros. Diz-se que era também uma forma de os dois países
estarem mais alheios a possíveis invasões europeias; na verdade, ir, por
exemplo, de Lisboa a Paris no Sud-Express implicava, até não há muito
tempo, fazer com que as carruagens-cama tivessem, de mudar de bitola, em
Hendaya...
5.
As estações floridas
Não quero
terminar sem uma palavra ao período áureo – a meu ver – do caminho-de-ferro em
Portugal, aí pelas décadas de 40/50 do século passado.
O tempo dos concursos das estações
floridas, instituídos em 1941 pelos servilços de turismo e propaganda do Estado
Novo, com o objetivo de «estimular o bom gosto na ornamentação floral das
estações dos nossos caminhos de ferro e revelar aos turistas estrangeiros um
aspeto bem caraterístico do nosso temperamento artístico e do nosso proverbial
bom gosto»!
O tempo em que se primou pelo embelezamento
das fachadas com magníficos azulejos, que despertam ainda hoje a admiração de
quantos não andam com pressa e podem deter-se momentos diante deles. A estação
de S. Bento, no Porto, vem em todos os guias turísticos. E não poucos mostrarão
também os azulejos da estação do Pinhão, na Linha do Douro.
Ah! a Linha do Douro, ao longo do
rio, na soberba contemplação dos vinhedos em socalco, verdes no Verão, de um
quente castanho-amarelado no Outono!... Ah! A Linha da Beira Baixa, também ela
ao longo do curso doutro grande rio, o Tejo, a permitir o suave deslumbre da lezíria
ribatejana e a passar lá mais adiante, pela altaneira imponência das Portas de
Ródão, ninho de grifos, águias e cegonhas!... Paisagens que só da janela do
comboio se podem longamente apreciar!
José
d’Encarnação
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Ponte ferroviária no Douro
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Locomotiva na Linha do Douro
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Pormenor da estação do Pinhão
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Comboio na Linha do Douro
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Chegada de comboio à estação do Pinhão
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Azulejos na estação de S. Bento (Porto) |
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Texto bilingue (em português e alemão) publicado em Portugal-Post
(Correio Luso-Hanseático) [Hamburgo], 71, 05/2022, p. 34-43.