Acaba
de ser publicado por Edições Saída de Emergência o romance
Desculpe Sr. Nobel, de Maria Helena Ventura (302 pág., ISBN
978-989-637-629-1), em que, a pretexto da investiga
ção
a
cerca do homicídio de um provável
candidato ao Nobel da Literatura, se procura retratar o que poderia ser o ‘clima’
da cidade de Estocolmo, por ocasião das grandes decisões da Academia.
Tive
ocasião de fazer a sua apresentação,
a 29 de Setembro, na Casa de Santa Maria, em Cascais, e do que então se disse
aqui se procurará apresentar uma súmula.
Quem é a Autora?
A
resposta à questão mui simplificada está, porque uma síntese do seu currículo
se encontra na badana do livro, sob a foto da escritora, natural de Coimbra:
uma licenciatura em Comunicação Social,
na vertente Jornalismo, um mestrado em Sociologia da Cultura. Na outra badana,
reproduções das capas de alguns dos seus romances históricos mais recentes: A Musa de Camões [2006]; Afonso, o Conquistador [já em 6ª edição, de 2007 a 2014]; Onde vais, Isabel? [Março de 2008]; Um Homem Só (em torno da figura de Jesus Cristo) [Maio de 2010]; Cidadão Orson Welles [Março de 2011].
Não
será, porventura, mera coincidência que a protagonista de Desculpe Sr. Nobel se apresente como jornalista de investigação e, ainda por cima, é palinóloga, uma
especialidade que tem toda a razão de ser: relacionável com o estudo dos
pólenes, quando está em causa uma investigação
criminal ocorrida em ambiente vegetal – e este é um dos aliciantes
do romance.
A
protagonista – Joana Sobral Cid – é também amiúde a narradora e esse o motivo
que me leva a suspeitar se, aqui e além, a autobiografia não estará latente.
Uma luz sobre o conteúdo
Na
quarta capa do livro apenas se levanta um pouco do véu, aliás, em palavras
assaz enigmáticas, ainda que, na verdade, a maior parte do romance nos leve
para um emaranhado de situações, assim em jeito de instantâneos passados em
locais diferentes, simultaneamente ou não, com personagens com as quais nós
vamos começar a conviver sem sabermos bem quem é que elas são, afinal.
E,
aqui, urge uma recomendação. É que
só nas últimas páginas – já o enredo acabado e descansada a nossa mente – a
Autora nos explica as «figuras mais importantes»:
«O
trabalho (escreve na p. 298) envolve um número considerável de personagens com
nomes que podem confundir o leitor. Aqui ficam as mais relevantes no
desenvolvimento da trama» e identifica as nove mais importantes e as onze que
considera «personagens efémeras, pelo tempo que vivem no enredo, mas duradouras
na lembrança, importantes para a sobrevivência do conjunto».
Confundir
o leitor? Oh! se confundem! Nomeadamente quando – quase no mesmo parágrafo,
temos um Stefano Gotirelli que também é chamado de «italiano», «latino»,
Gotirelli, Got… Ou um Alex Gustafson, que é Alex, Gus, Gustafson!...
Recomendação primeira, portanto: pôr um marcador na pág. 298 para lá ir, pelo menos nos
primeiros tempos, a fim de melhor saber de quem se está a falar, porque a Autora,
embora o negue, acaba mesmo por nos enredar na trama de um romance policial.
Mas que, a princípio, não sabemos onde é que estão os bons e quais são os maus,
isso não sabemos – e é aliciante! E
coitada da Joana, que, também ela, não sabe exactamente para onde é que se
há-de virar!...
Permita-se-me,
porém, um parêntesis: como é que Maria Helena Ventura diz? Este trabalho não pretende ser… «Trabalho»!?
Não deixará de ser curioso o uso deste vocábulo – decerto espontâneo, que saiu
ao correr da pena. A Autora tem-se por uma trabalhadora
da escrita. «Trabalhadora» em risco de despedimento ou de falta de emprego,
como é praga quotidiana? Talvez, no
íntimo, assim pense. Eu creio, que, no caso vertente, despedimento não haverá e
falta de emprego também não, ainda que bem sedutora, enigmática e imprevisível
e incompreensível se nos vá a vida…
Não
serão muitos os escritores que vivem – sobrevivem… – do trabalho da escrita: são muitíssimos, porém, os que não vêem na
escrita um trabalho, aparentemente não há suor nem lágrimas, nem deveria haver,
por conseguinte, recompensa pecuniária. Retomo, pois, a pág. 300, onde vem a
tal palavra trabalho, uma vez que, já o disse, à maneira
dos livros em árabe, também este Desculpe
Sr. Nobel, precisa de uma leitura primeiro das últimas páginas, pois o importa dizer… das pp. 300 e 301 há-de
ler-se também logo a princípio. Explica aí Maria Helena Ventura que procurou
retratar uma «realidade ficcionada» e resume depois a vida de Nobel, de certo
modo para justificar o título do romance, que não é, como à primeira vista
poderia parecer, a biografia do benemérito que, há quase dois séculos, nasceu
em Estocolmo (mais propriamente a 12-10-1833) e que, como uma das personagens
do romance, morrerá às duas da madrugada de 10-12-1896, «incompreendido,
desacreditado, traído, sozinho na sua casa de San Remo», quando hoje, pela
herança que deixou, é «amado por milhões de pessoas na medida certa» (p. 301) e
Maria Helena Ventura desabafa: «Um rico sem afecto é tão pobre como a mais
pobre das criaturas».
Porque,
na verdade, Desculpe Sr. Nobel constitui
– por entre o quase inconcebível emaranhado da sua trama – um verdadeiro hino
aos afectos.
Acentuarei,
pois, os aspectos que mais me seduziram.
A estrutura formal
Em
53 pequenos capítulos, identificados por numeração
romana e sem título. Estamos agora aqui; no seguinte, estamos noutro lado com
outras personagens cuja ligação com
as anteriores se não compreende (se urgentemente se não for às tais páginas 298
e 299, para descodificação cabal); e
o capítulo sucessivo pode levar-nos para outro espaço e outro tempo. Estamos em
Estocolmo, daqui a pouco em Uppsala ou em Aljezur ou em S. Pedro do Estoril.
Acho que dava bem para guião de filme ou telenovela…
Recordo
como foram pedradas no charco O Dia dos
Prodígios, de Lídia Jorge, ou O Memorial do Convento, de Saramago. O
primeiro com uma pontuação oral
(pôs-se o ponto onde a personagem fez a pausa na fala); o segundo sem pontuação nenhuma e cada qual que se atavie como melhor
lhe der na gana.
Hoje
em dia, parece-me que isso de pontuação
à antiga, discurso directo ou indirecto ou directo à maneira de indirecto, foi
chão que deu uvas e a gente entende-se bem sem essas manigâncias que os
clássicos inventaram.
Maria
Helena Ventura usa a pontuação. Há
travessões de quando em vez. Pontos de exclamação
acho que não – a capacidade de nos
admirarmos anda cada vez mais arredia de nossas vidas!... O mais interessante,
porém, é a distinção entre as falas
e as descrições. Está tudo misturado, sem aquela ‘história’ dos dois pontos
parágrafo travessão. Vai tudo a eito, que na vida não há tempo para essas
pausas obrigatórias.
Por
isso, o estratagema – que muito me agrada – é itálico para o discurso directo e
redondo para o indirecto. Tudo seguido, pois então! Economiza-se e dá-se uma
ideia mais exacta da realidade contada.
Gostei.
Um retrato da Suécia
Outro
aspecto que não poderia deixar de sublinhar: o livro é um retrato da Suécia.
Digo bem, da Suécia. Não apenas da capital, Estocolmo, em que a maior parte da
acção se passa, a propósito da
cerimónia da atribuição dos prémios
Nobel – no antes, no durante e no depois; mas também da intelectual Uppsala,
com a sua universidade, a mais antiga da Escandinávia, fundada em 1477, natural
alfobre de Prémios Nobel (8 dos seus docentes foram galardoados já e há mais
quinze que tiveram com Uppsala íntimo elo de ligação).
Recordo que foi das primeiras universidades a integrar o chamado Grupo de
Coimbra, logo nos primórdios da criação
do Programa ERASMUS, na década de 80, e
muitos dos nossos estudantes para lá têm ido estudar e sorver a longos haustos
os ares que respiraram Celsius (1729) e o botânico Lineu. O campus de Uppsala com os seus edifícios
históricos tinha, por conseguinte, que estar presente nas páginas do Desculpe Sr. Nobel.
No
caderno Ípsilon do Público de 26-09-2014, vem nas páginas
12-14 extensa reportagem sobre «O ‘caso’ Donna Tartt». Trata-se de uma
romancista norte-americana nascida a 23-12-1963, de ascendência italiana. O
artigo, assinado por Isabel Lucas, justifica-se, a propósito do seu mais
recente livro, O Pintassilgo¸ publicado em 2013 e galardoado com o
Prémio Pullitzer. Em ‘caixa’ (estou a referir-me ao texto de Isabel Lucas),
assinala-se que Donna Stratt «continua a escrever à mão em blocos e diz que usa
a Internet apenas para consultas, como endereços de restaurantes ou, no caso de O Pintassilgo,
para consultar o Google Earth, auxiliar
para construir melhor ambientes das cidades onde a acção
decorre».
E
porquê este parêntesis? Porque, neste aspecto, Maria Helena Ventura é muito
clara, na pág. 302:
«Cabe
aqui um agradecimento especial ao Ricardo Santa Clara Matos, residente em
Estocolmo, donde me enviou dados importantes para compor o trabalho com menos
desvios. Apesar de minha estada na Suécia ter sido uma inspiração, não foi tão duradoira quanto desejaria. Muito
ficou por descobrir, inventariar e admirar na sua plenitude».
Na
verdade, o que mui agradavelmente nos surpreende nos livros de Maria Helena
Ventura é a minuciosa descrição dos
ambientes – as ruas, os parques, as casas, as cores, o movimento, a gastronomia
típica (“A gastronomia é um dos espelhos de um povo”, proclama na p. 36), os
hábitos… Quando li o seu Orson Welles, acabei
por a acompanhar pelas ruelas de Roma; aqui, passeamo-nos, de facto, por
Estocolmo e deixamo-nos enlevar pela cidade e suas gentes. E se não logramos
pronunciar bem os topónimos nem os nomes das iguarias (têm uns bolinhos de
canela, os kanelbulle, e há o bufet smorgasbord ‒ p. 73), o certo é que estamos perante um
ambiente exótico explorado e a explorar. E vê-se que Estocolmo e Uppsala,
nomeadamente, lhe ficaram no coração.
Creio bem que os suecos que vivem em Portugal hão-de gostar de o reviver.
Confesso
uma fraqueza: quando vi a referência ao restaurante panorâmico Erik’s Gondolen,
não resisti e fui ao Google – e lá
estava tudo: os elogios à vista panorâmica sobre Slussen e Gamla Stan, sobre o
porto, a cidade velha… «É como se entrassem num barco suspenso atravessado por feixes
de luz», escreve Maria Helena Ventura (p. 153). A comida, excelente; o local,
apropriado para aniversários de casamento, romanticamente celebrados a dois.
Claro, Joana preferiria, no momento, um daqueles nossos à beira-mar, com o
«marulhar das ondas, o cheiro da maresia…». Mas… Joana, não se pode ter
tudo!...
Pronto,
estamos mesmo no âmago dos ambientes suecos e o livro constitui – também por
isso – aliciante para uma visita.
Ah!
Nem falta a referência a um dos mais célebres monumentos funerários pré-históricos
da Suécia, o Anundshögen, datável de entre a Idade do Bronze e os primórdios da
Idade do Ferro, assim ao jeito do nosso cromeleque dos Almendres (perto de
Évora), mas muito mais imponentes: os esteios estendem-se por uma área de 60 m de diâmetro e têm,
alguns, 9 m
de altura. A inscrição, em
caracteres rúnicos, dá conta, segundo uma interpretação,
da homenagem feita a Heden, irmão do lendário rei Anund – daí o nome.
Nada
escapou, portanto! E se uma tese de mestrado houvéramos de fazer acerca de Desculpe
Sr. Nobel, muitos seriam, por consequência, os fios a pegar nesta imensa
meada com que Maria Helena Ventura nos quis brindar. E, já agora, diga-se que o
título vem no discurso de uma candidata ao prémio que, ao verificar as manobras
de bastidores que, necessária e obviamente, precedem a escolha dos nomeados e,
depois, dos laureados, lhe pede desculpa por, no meio de tudo isso, mui
frequentemente se esquecer a enorme importância do seu legado: «Desculpe, Sr.
Nobel, pelos que semeiam abismos de ingratidão!» (p. 262).
Perdoar-me-ão,
no entanto, se foco mais dois aspectos que (entre tantos!) me deliciaram.
1º – Uma escrita poética
Prende-se
o primeiro com o poético rigor da escrita.
Dir-se-á
que nada há de mais antagónico: o rigor e a poesia! Creio que não. E, nesse
aspecto, colho exemplos de algo que a mim muito me seduz – cá está a
«Universidade da Vida»!... – e que à Autora não deixou indiferente: o dia nas
suas contínuas mutações; o dia, reflexo de nós; o dia-sentimento; o dia que,
momento a momento, nos cumpre saborear:
- «O dia amanhece sereno, com o sol a beijar
francamente a ramagem humedecida» (p. 100);
- Acordam abraçados, «a soletrar o silêncio da manhã»
(p. 210);
- «O dia amanhece com a cadência da chuva a
lacrimejar nas vidraças» (p. 232);
- «[…] Uma manhã com gotas de chuva para dissolver
rugosidades na melodia do percurso» (p. 297 – é a última frase do livro);
- «Mergulhando nos braços da tarde há muito anoitecida» (p. 82);
- «A noite acaba de fechar a Terra à chave» (p. 88);
- «Como se a água da chuva, lá fora, fosse
dissolvendo […] as borras do afecto antigo» (p. 96).
- Escondia-se o sol «no horizonte como um dístico
raiado de vermelho – uma porta
encantada para outro mundo que um dia hás-de explorar – dizia ele» (p.
261).
2º – As frases lapidares
E
se a Autora polvilha, aqui e além, o seu texto de frases lapidares de autores
célebres que a enlevaram, também semeou no seu livro algumas outras que poderão
vir a ser incluídas num álbum de citações:
- «Quem não perdoa a competência alheia, arranja
sempre forma de a macular» (p. 38);
- «Sorriso que não é franco não passa de um esgar»
(p. 63);
- «Há fracções de tempo em que o olhar agarra fios de
luz vividos e os entrelaça com outros por viver, a cabeça ocupada a tecer relatórios de ontem, de amanhã. Hoje, agora,
esta porção de existência ao
alcance da mão, fica a planar na linha do horizonte, mais longe do que
passado e futuro. Porque não alimentamos a vontade de a vestir de cores
alegres? Só a cor sépia do que foi e o matiz do que será têm magia?» (p.
72);
- «Vinte minutos numa espera ansiosa podem parecer um
ano ou mais» (p. 72);
- «As amizades bem construídas têm paciência mítica» (p. 77);
- «O ruído é um bom pano de fundo para a partilha de
um segredo» (p. 88);
- «Com o rosto pálido como uma folha de papel reciclado»
(p. 91);
- «A magia da vida é o inesperado» (p. 107);
- «O Presente, a única estação
que amanhã já é Passado, que hoje já é Futuro» (p. 132);
- «Há tantas coisas, tantas pessoas, que existem
durante anos no mesmo espaço e permanecem invisíveis…» (p. 252);
- «O acto de dar liberta,
o de receber constrange» (p. 268).
A magia do amor
Proclama
Maria Helena Ventura que escreveu um romance de amor. E não há dúvida que é na
descrição dos momentos prenhes de
lirismo que a Autora se aprimora, na recriação
imagética dos sentimentos.
Das
muitas passagens relativas à ternura crescente entre Joana e Anderson
Bengtsson, transcrevo a descrição do
primeiro encontro, quando ainda nada se sabe do que poderá vir a acontecer:
«(…)
desde a ideia imemorial da metade que buscavam. Os seus olhos castanhos nos
dele azuis-escuros descobrem o princípio do tempo, o fim da busca, o graal.»
(p. 103).
E,
pouco depois:
«[…]
Um beijo demorado como a pressão de um carimbo, um selo de pertença. Enquanto
uma corrente tépida lhe percorre o corpo, retém o até sempre, no orvalho do sorriso. […] Há muito tempo que não
sentia aquele íntimo dedilhar de cordas – fogo, afago, palpitações
intermitentes de aguaceiro. Sempre desejara que um olhar bastasse para
encontrar a fonte… um olhar que ousa, que logo se retrai e que volta a ousar
num chamamento mudo. Teria sido agora?» (p. 109).
Foi
– digo eu.
«[…]
O toque de magia que vibra uma vez, na vida.
Há
um dedilhar de guitarras longe, num barco ou numa cabana, acompanhado pelo
chilreio da Natureza» (p. 221).
E
assim nos apetece ficar!
Publicado em Cyberjornal, edição
de 11-10-2014: