quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O alma-do-diabo

              ‒ Deixa lá, o moço pequeno não é tão traquinas assim. E, depois, moços pequenos querem-se vivos, não moscas-mortas, que se desenvencilhem bem, mesmo nas situações mais inesperadas.
            Isso dizes tu, que o não tens de aturar! Quando quer uma coisa, não me deixa da mão, mói-me o juízo!
            Olha, o meu apareceu-me em casa com o joelho todo escafelado, assim como eu já tenho as paredes lá da cozinha. E ficou-se deitado no sofá, assim como que a dormir caçando ratos, com medo que eu, ainda por cima, lhe desse uma coça por, decerto, ter indrovinado alguma!
            Mas aquilo é de extremos, mulher! Outro dia, tinha uma porqueirazinha na vista. E ficou todo arrabiado, o alma-do-diabo, não me deixava ver e tirar-lha com a ponta de uma mortalha de papel. Qual quê? Foi o cabo dos trabalhos!
            Ouvi mui quietinho, na sala de espera do Centro de Saúde, atafulhado de gente que ali estava há horas e assim ia matando o tempo, a contar, no seu falar bem nosso, as peripécias de um quotidiano que é de todos mas nem todos o narram assim – que as expressões d’outrora estão a dar lugar a bem escusados estrangeirismos…

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 190, Novembro de 2014, p. 10.

 

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Homenagem a José Júlio de Carvalho

            Vai ser descerrada, no próximo dia 15, na Areia, a placa toponímica que perpetua o nome de José Júlio de Carvalho, «homem bom cascalense».
            Concretiza-se, assim, por parte da Junta de Freguesia de Cascais e Estoril, com o apoio camarário, a proposta veiculada por dois dos assíduos colaboradores do nosso jornal: Rui Rama da Silva, na sua qualidade de presidente da direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais, e eu próprio, como membro que fui da equipa de Jornal da Costa do Sol.
            «Homem bom cascalense». Optou-se por esta designação – aparentemente insípida e, porventura, tida como de mínimo significado – porque, em nosso entender, ela sintetiza o que, na vida de José Júlio de Carvalho, foi mais relevante.
            Assumiu-se, primeiro, como cascalense de gema, aqui nado e criado, residindo sempre no coração da vila (02.04.1913 – 08.09.2008). Só as contingências das ‘vagas’ toponímicas determinaram, pois, que a «sua» rua ficasse nos confins da freguesia, bem perto do marulhar das vagas do Guincho, o que também não deixa de ser uma coincidência feliz, pois José Júlio de Carvalho, quer como dirigente associativo quer como responsável de jornais locais – primeiro A Nossa Terra e, depois, o Jornal da Costa do Sol –, sempre pugnou por uma visão abrangente do concelho. Tanta atenção lhe mereciam os problemas a resolver na vila como os do mais remoto lugar.
            E é também por esse motivo que lhe quadra à perfeição a outra qualificação que propusemos: a de homem bom. Pretendeu-se, desde logo, uma relacionação explícita com o passado: não longe da casa onde viveu, há, à porta do castelo, uma placa que explica: «À porta deste castelo se reuniam os juízes, vereadores, o alcaide e outros homens bons do concelho de Cascais», no século XIV. Eram os homens bons, na Idade Média, aqueles que superintendiam, de certo modo, à vida de uma localidade. A eles se recorria em caso de emergência ou na busca das melhores soluções para as controvérsias quotidianas. E José Júlio de Carvalho seria, em tempos medievais, um desse homens bons, como o foi no seu tempo. Inquebrantável nas suas convicções, que mui ponderadamente defendia, ainda que no respeito total por quem diversamente pensava, José Júlio de Carvalho pode, por conseguinte, apontar-se como exemplo do cidadão atento e empenhado.

Amizade e competência
            Quando, no Outono de 1964, entrei para a redacção do jornal A Nossa Terra, já não estava lá a equipa que, durante largos anos, mantivera o jornal como activa tribuna – a única então no concelho. Um diferendo insanável com a direcção do Dramático (de que A Nossa Terra era propriedade) levara a que João Martinho de Freitas e seus mais directos colaboradores pedissem a demissão. Contudo, a reconhecida dedicação em prol da melhoria da vida local fez com que os empresários locais se cotizassem e rapidamente se compraram as acções necessárias para se construir o capital necessário para a criação de Jornal da Costa do Sol, cujo primeiro número viria a sair a 25 de Abril de 1964. Nunca, porém, enquanto mantive colaboração em A Nossa Terra, ouvi uma palavra sequer de crítica a José Júlio de Carvalho, cuja personalidade se situava, de facto, bem acima dessas quezílias ‘domésticas’. E quando, em Outubro de 1967, ingressei na redacção do Jornal da Costa do Sol, José Júlio de Carvalho (o «senhor José Júlio»!) acolheu-me de braços abertos e logo ali nasceu uma indefectível e sólida Amizade – e até cumplicidade, porque não? – que só a morte veio quebrar.
            Embora já com alguma prática, dava eu, como se imagina, os primeiros passos na bem espinhosa missão de ser jornalista local em tempo de censura. E tive o bom senso de adoptar o procedimento seguinte: escrevia os textos, dactilografava-os ou não, e ficava com o rascunho. Era o tempo (e aí começou um hábito que mantenho) em que se aproveitava para esse efeito o verso em branco dos comunicados e noticiários que nos chegavam!... Quando o jornal saía, eu confrontava o que escrevera com o que saíra: a pontuação, as palavras, as maiúsculas, os hífenes e os travessões, o título… Não compreendia a razão dalguma diferença? Ia ter com o «senhor José Júlio» para a explicação – que nunca regateou!
            Trabalhava ele, então, como revisor de Publicações Europa América, depois de se haver aposentado da Imprensa Nacional. Esse era, por conseguinte, o trabalho imprescindível – a revisão – que não se negou a fazer. Mesmo antes de ir para casa, passava pela redacção e lá ficava, diligentemente, a catar gralhas, tarefa tanto mais importante e aborrecida se nos lembrarmos que era na imprensa local que se faziam as «publicações legais», que deviam sair sem mácula: um dos nós lia em voz alta e José Júlio de Carvalho… catava!
            Mesmo já professor catedrático, não deixei amiúde de o consultar acerca de questões da língua em que, de facto, o Catedrático era ele!

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 67, 29-10-2014, p. 6.

 

 

 

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Homenagem a José Júlio de Carvalho

             O arruamento a que vai ser dado o nome de José Júlio de Carvalho (1913 –2008), homem bom cascalense, que foi dirigente associativo e um dos incansáveis redactores de Jornal da Costa do Sol, entronca com a Rua das Codornizes, a grande artéria que liga à Areia a Quinta da Bicuda, ladeando a Marinha. É o primeiro arruamento à esquerda para quem vem da Areia, a nascente do hipódromo e antes, portanto, da entrada para o ginásio aí existente.
            Trata-se, sem dúvida, de uma zona em mui moderada e cautelosa expansão urbanística, onde o verde dos pinheirais não está a ser engolido por desordenadas urbanizações maciças: privilegia-se a moradia, na sequência, aliás, do que se preconiza para essa zona compreendida no triângulo Bicuda, Birre e Areia.
            Não tendo sido possível – por nenhum existir ‘anónimo’ – a atribuição do seu nome a um arruamento mais para o centro da vila em que José Júlio de Carvalho sempre viveu, a sua memória em tão remansoso local constituirá doravante mais um apelo, na sequência de tantos que no jornal nunca desdenhou fazer, a um cada vez mais equilibrado ambiente vivencial.
            A cerimónia, presidida pelo presidente da autarquia em companhia do presidente da freguesia, e em que marcarão presença, além de representantes da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais, familiares e amigos, está marcada para as 11.30 horas do dia 15 de Novembro (um sábado).

Publicado no Cyberjornal, edição de 28-10-2014:

sábado, 18 de outubro de 2014

A poesia que era em folhetos visados pela Comissão de Censura!

            Teve o nosso amigo e camarada destas lides da escrita Vítor Barros a enorme gentileza de me fazer chegar cópia de duas folhas de versos, que achara meio perdidas em casa da mãe.
            Mantém o nosso director o – quanto a mim – assaz saudável hábito de aceitar as rimas, mesmo que por vezes desajeitadas, que pontualmente lhe enviam seus fiéis colaboradores. Não me canso de as ler, porque elas representam, à boa maneira dos jograis de outrora, aquela forma esbelta, amiúde bem sarcástica e ‘venenosa’, de escalpelizarem os acontecimentos, as atitudes, as… políticas! Sempre a poesia dita popular teve esse condão de acompanhar e, por isso, criticamente retratar o nosso quotidiano. E há no Noticias de S. Braz, invariavelmente, uma página para os ‘nossos poetas’, independentemente de outras rimas se espalharem por aqui e por ali, por vezes também ao sabor das necessidades de paginação.
            E para que se sinta quão importante é essa forma de encarar a realidade, leia-se apenas a primeira sextilha de um dos folhetos que Vítor Barros me enviou:
 
                        No dia dezassete de Agosto
                        Fez causar algum desgosto
                        De lutou vestiu São Brás,
                        Conhecido na freguesia
                        Toda a gente o conhecia
                        Aquele humilde rapaz.

            Ficamos a saber, pelos versos adiante, que o ferreiro João Adriano Passos Pinto morreu atropelado, perto de Portimão, quando seguia na sua motorizada. Tinha 38 anos e deixou uma filhinha. A letra é de António Gonçalves Dias (Cèguinho) e a publicação – lá vem escarrapachado no fim – foi ‘visada pela Comissão de Censura»!
            Bom será que, inclusive no âmbito do Centenário, se lance uma campanha de angariação de folhinhas dessas (devem existir por aí, perdidas nas gavetas, como coisa sem préstimo…) e se crie, na biblioteca municipal, uma pasta que as conserve, acompanhadas de elementos complementares. No caso vertente, toda a gente sabia; mas nós, agora, como vamos descobrir em que ano morreu o João Adriano? Vai-se ao Registo, claro; mas, se houver logo o cuidado de se fazerem essas averiguações, a ‘pasta’ vai ficando enriquecida e a nossa ‘memória’ também!

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 215, 20-10-2014, p. 21.

Adufe - O palpitar do património

              Nunca será de mais sublinhar o interesse de que se reveste a existência e regular publicação de uma revista cultural municipal. Aí se pode dar conta do que de mais significativo as terras do município contêm em todos os seus aspectos: na paisagem, nas gentes, costumes e tradições.
            Adufe, revista cultural de Idanha-a-Nova, 15 000 exemplares, é uma dessas revistas a coleccionar, tão rico é o seu conteúdo.
            Acabo de receber o nº 22, relativo a 2014. 136 páginas, ricamente ilustradas, agora bilingue (com textos em português e em inglês). As cavalhadas do Rosmaninhal, portefólio, com mui sugestivas fotografias a preto e branco, de Valter Vinagre. Augusto Mateus, ex-ministro da Economia, faz, a partir de Idanha, um diagnóstico do mundo rural português e aponta como se devem conjugar as visões e as práticas tradicionalistas com um regresso à terra qualificado e jovem. A aposta na agricultura inovadora: figo da índia (motivo da capa), mirtilo, melancia, marmelo, dióspiros… Um álbum com as pontes, uma marca no concelho. E os aromas silvestres? – A esteva, a giesta, a murta, a roseira brava, o poejo, o rosmaninho – uma sedução em pinturas (de João Fazenda) assaz eloquentes. E não podia faltar um hino aos sons invulgares proporcionados pelos instrumentos típicos, nossos: a harmónica, a bandurra, a zamburra, a guitarra portuguesa (claro!), a rabeca, o acordeão, o bandolim, a palheta, o cântaro, o bombo – tudo explicado e com foto (assinada por Valter Vinagre) do seu principal tocador. A Ti Chitas, a exímia tocadora de adufe que Michel Giacometti imortalizou. «Uma tarde na Aldeia de Santa Margarida», mero pretexto para, em desenho a tinta-da-china (de Paulo Longo), se mostrarem os seus recantos típicos. 18 meninos e meninas, de adufe, na mão, são apontados como… o futuro! E dá gosto vê-los sorrir! E o texto de Tito Lopes sobre o tira-olhos, tão bem ilustrado por Bernardo Carvalho (do Planeta Tangerina)? Um mimo! E há ainda a rota da Estrela integrada nos Caminhos de Santiago (proposta de passeio pedestre). E as informações úteis para quem chega, profundamente humanizadas, porque por detrás de cada uma, poderíamos dizer, há sempre alguém que sorri!
            Peço desculpa por não ter feito parágrafos; mas é que este Adufe é mesmo para ler de carreirinha, a encher-nos a alma! O exemplo sábio que vem do interior do País!

Publicado em Cyberjornal, 17-10-2014:

Quintandona - E a aldeia ressuscitou!

            Multiplicam-se, felizmente, as iniciativas tendentes a evitar a desertificação do interior, tão facilitada ela está pelas medidas irracionais que, comandadas pelos interesses económicos estranhos aos países, os governos estão a ser obrigados a tomar. Iniciativas que se torna urgente serem conhecidas e aludidas.
            É o caso de Quintandona, na freguesia de Lagares, Penafiel. Belmiro Barbosa foi presidente da freguesia durante mais de 30 anos e teve como uma das principais preocupações manter a identidade local, nomeadamente não permitindo novas construções e facilitando a reconstrução das casas existentes, mantendo a antiga traça e utilizando os materiais tradicionais (a pedra à vista, por exemplo).
            O resultado está patente, por exemplo, em Quintandona, uma aldeia hoje ressuscitada com tudo o que lá era tradicional e onde apetece viver!
            Tive ocasião de lá jantar, na Casa da Viúva, num ambiente deveras familiar, no passado dia 26 de Setembro, no âmbito do II Encontro de História e Património do Museu Municipal de Penafiel.
            Saboreei a ‘sopa da avó’, acompanhada de broa de milho, pão de trigo e azeitonas miúdas bem temperadas. Deliciei-me com um divinal bacalhau com broa na travessa em que fora ao forno, e um arroz de carqueja de comer e chorar por mais. À sobremesa, sopa seca, a «sobremesa» dos pobres, porque servia para aproveitar o pão duro, que é assim como que uma espécie de rabanadas, mas feita com o pão de cacete com, pelo menos, dois dias (o «pão dormido»…), cortado às ‘rodelas’… É de ver a receita na Internet, para se compreender melhor! No final, um cafezinho de cevada, como há muito não bebia e, a ‘rebater’, um cálice de… «mijo do jebo», que é como quem diz, um bagacinho com virtudes mui específicas! O jebo, diga-se desde já, é personagem principal da anual ‘Festa do Caldo’. A forma correcta de escrever é gebo; recorde-se a obra O Gebo e a Sombra, de Raul Brandão, de 1923, que o génio imparável de Manoel de Oliveira verteu para filme, estreado no Festival de Veneza de 2012.
            Bem andaram, pois, as autarquias penafidelenses (a freguesia de Lagares, com o apoio da Câmara Municipal de Penafiel) em nos mimosearem com tão feliz promoção.
            Quintandona vai ser um pólo do galardoado Museu de Penafiel e a Doutora Teresa Soeiro compendiou as linhas mestras do projecto no livro Quintandona – as muitas vidas de uma aldeia (1ª edição, Dezembro de 2013, ISBN: 978-989-95308-6-7).
            Em 80 páginas, profusamente ilustradas, conta como «uma aldeia como as de antes» (o lugar, a casa de habitação, os anexos e os equipamentos, os campos, a gente), aceitou «despertar para o novo milénio» (a Festa do Caldo e da Música Tradicional de Quintandona, a Associação CasaXiné e Centro Cultural, alojamento e restauração).
            Não fiquei com os dados da Festa do Caldo deste ano. Faz-se em Setembro e começou em 2007. Contou-me Belmiro Barbosa que, por exemplo, todo o espaço disponível foi ocupado por tendas de campismo. Mas Teresa Soeiro dá conta (p. 71) da estatística de 2012: 14 000 visitantes, 120 voluntários, 52 expositores (artesanato e produtos locais), 33 espectáculos, 6000 tigelas de papas e caldos, 700 doses de sopa seca, 15000 doses de feijoada, 11 porcos no espeto, 190 quilos de broa!…
            É obra! A mui calorosamente aplaudir e… a ir ver!
 
 



Publicado em Cyberjornal, 16-10-2014:

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Na prateleira 33

Estava mesmo na prateleira: a torre e o mastro!
            Quando, em Agosto, houve o propósito de se levantar polémica acerca do mastro Endeavour, decerto terá passado pela cabeça de alguns (dos que ainda têm cabeça susceptível de armazenar dados…) que houvera, em tempos, a intenção de também plantar por ali qualquer ‘coisa’ gigantesca. A opinião pública alvoroçou-se e o projecto não foi por diante.
            Confesso que fiquei a remoer nessa associação de ideias e vasculhei os meus arquivos. Não, não se tratava nada de mastro enorme, mas sim de um hotel. O caso passou-se em Novembro de 2006 e (passo a transcrever) “em declarações à agência Lusa, António Capucho (PSD) sublinhou que a decisão [da reprovação] se deveu ao facto de o anteprojecto da construção de uma torre na marina de Cascais ter colhido «várias reacções negativas por parte de vários sectores da sociedade civil local»”. Era um hotel do tipo gigantesco foguetão, daqueles que a gente conhece lá das Arábias, e ficava na ponta da marina, aí com uns 100 metros de altura.
            Claro: associámos o mastro à torre e um nada tinha a ver com a outra. Diga-se, aliás, em abono da verdade, que o mastrozinho, com os seus escassos 40 metros, até nem fica nada mal por ali. Ou melhor: o que fica mesmo bem é a bandeira vermelhinha cá da terra, lá no topo, a dançar ao sabor da aragem…
 
«Aqui há revista!»
            Merece, sem dúvida, apontamento maior a revista «Aqui há revista» que o Grupo Cénico da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais está a levar à cena, aos sábados, desde o passado dia 4.
            A estreia, na sexta-feira anterior, foi só para convidados, que encheram por completo o vetusto teatro e não regatearam aplausos aos dinâmicos e incansáveis actores que teimam em manter uma tradição. Aliás, esse é logo o mote do primeiro quadro – que constitui também saudosa evocação do Luiz de Barros (que em Outubro nos deixou) e emotiva homenagem a Ermelinda da Assunção – a chamar a atenção para a importância sociocultural que o teatro de revista representa na sociedade portuguesa, pela sua enorme versatilidade e capacidade de fazer rir, fazer chorar e, sobretudo, de fazer pensar!...
            Haveria que louvar o desempenho de todos e cada um – nas marcações, na voz, nas coreografias… num trabalho gigantesco que Luís Lourenço tão bem soube ensaiar, secundado, por exemplo, pelos originais figurinos da inspirada lavra de Joaquim Carvalho (que também pontificou na coreografia), pelos cenários de Fernando Rebelo, pela enorme versatilidade de David Carronha (um ‘menino’ que enche o palco e tem sempre a ‘bucha’ certa para meter e salvar o momento incerto e imprevisível), pela graciosidade de todo o elenco feminino (sem excepção!), pela saborosa oportunidade dos textos… sei lá! É de ver e de rever! E basta ir ao facebook, por exemplo, na página de Joaquim Carvalho, para saber muito mais e imaginar o que está por detrás de cada fotografia!
            Acima de tudo, porém, a enorme disponibilidade e sacrificada vontade de manter o Gil Vicente como a sala de todos nós, do nosso reencontro com uma Cascais, vila de 650 anos mas povoação de muitos séculos mais! Memória e tradição!

A Casa das Histórias
            Temeu-se pelo futuro da Casa das Histórias Paula Rego, quando o governo de Lisboa deu em acabar a eito com as fundações e houve desinteligências no seio da Fundação que tem o nome da artista.
            Na recente reestruturação camarária, aboliu-se, como se sabe, a Cultura como ‘entidade’ (digamos assim), a figura de vereador da Cultura deixou de existir a se e transitou estrategicamente para a Fundação D. Luís I a função de (em colaboração com o Executivo camarário, bem entendido), superintendência e organização das realizações culturais da mais variada índole.
            Nesse âmbito, para além do já de si enorme Centro Cultural, Salvato Teles de Menezes, administrador-delegado da Fundação, passou a ter a seu cargo a dinamização, por exemplo, da Casa de Santa Maria e da Casa das Histórias. Assim – e só para recordar uma das mais recentes – ali se evocou a passagem dos 450 anos do nascimento do dramaturgo inglês William Shakespeare, com a projecção de filmes, a leitura de poemas, a apresentação de conferências…
            Enfim, a Casa das Histórias deixou de ser apenas o repositório dos quadros dramaticamente expressivos de Paula Rego para ser também o palco de igualmente expressivas manifestações culturais. Parabéns!

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 65, 15-10-2014, p. 6.

 

 

Reformados, uma praga a abater!

             Ainda não estava refeito do mal-estar provocado pelo gesto de alguém – devida e conscientemente sancionado pelas mais altas esferas da Nação (lei 11/2014) – que retirou do art.º 78º do Estatuto da Aposentação a palavra ‘remuneradas’, quando um antigo aluno meu, a fim de mostrar como também um penedo com letras podia servir de argumento, na actualidade, para manter os rendeiros da Herdade dos Machados, em Moura, na posse das terras que vêm agricultando, me enviou o vídeo dessa luta: http://videos.sapo.pt/ql1s8VzeGWAutKOH7j94 (que já não está disponível). E houve aí uma palavra que me chamou a atenção. Pesquisei e fiquei a saber. Em apoio da atitude de retirarem dali os rendeiros, invocaram os governantes o artigo 5º do Decreto-lei nº 158/91, que diz:
            “Não podem ser beneficiários de entrega para exploração quaisquer funcionários ou agentes do Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação, nem reformados, nem detentores de dívidas ao Estado."
            No entender do mui digno ‘revisor’ do Estatuto da Aposentação, reformado deve é estar quietinho, não fazer ondas, a fim de não gastar calorias nem absorver muito oxigénio. Está a mais. Nessa tal lei 158 – que, afinal, já vem de 1991!... – a táctica é a mesma: nada de reformados, ouviram?
            Estava a conformar-me com a minha sorte. Tinha, porém, uma secreta esperança de que haveria excepções, pelo menos por parte do escol pensante do País. Eis senão quando, vejo, em reportagem televisiva, que tinha havido abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra. Pasmei. A sério? Fui pesquisar e… era verdade! Houvera abertura solene das aulas!
            E fiquei a perceber: também os cérebros dirigentes da vetusta Universidade se deixaram contaminar. Esqueceram os seus aposentados, reformados e jubilados. Muitos deles continuam em centros de investigação e, de acordo com o Estatuto da Carreira Docente Universitária em vigor, até integram júris da sua especialidade. Este ano, porém, decerto o primeiro de muitos outros, não houve da equipa reitoral quem se lembrasse: «Eh! Não se esqueçam de enviar um e-mail aos senhores professores aposentados, jubilados e reformados. Há sempre quem queira incorporar-se no cortejo e será para nós uma honra». Não foi. Não houve e-mail.
            Fiquei, pois, a compreender melhor a razão da tal emenda e a do caso da Herdade dos Machados. Trabalhar, mesmo que sejam as terras com as forças que ainda lhes restam e a experiência adquirida? Nem por sombras! Não são árvores para ficar de pé!

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 648, 15-10-2014, p. 11.

 

domingo, 12 de outubro de 2014

Estocolmo em clima de Nobel

             Acaba de ser publicado por Edições Saída de Emergência o romance Desculpe Sr. Nobel, de Maria Helena Ventura (302 pág., ISBN 978-989-637-629-1), em que, a pretexto da investigação acerca do homicídio de um provável candidato ao Nobel da Literatura, se procura retratar o que poderia ser o ‘clima’ da cidade de Estocolmo, por ocasião das grandes decisões da Academia.
            Tive ocasião de fazer a sua apresentação, a 29 de Setembro, na Casa de Santa Maria, em Cascais, e do que então se disse aqui se procurará apresentar uma súmula.

Quem é a Autora?
            A resposta à questão mui simplificada está, porque uma síntese do seu currículo se encontra na badana do livro, sob a foto da escritora, natural de Coimbra: uma licenciatura em Comunicação Social, na vertente Jornalismo, um mestrado em Sociologia da Cultura. Na outra badana, reproduções das capas de alguns dos seus romances históricos mais recentes: A Musa de Camões [2006]; Afonso, o Conquistador [já em 6ª edição, de 2007 a 2014]; Onde vais, Isabel? [Março de 2008]; Um Homem Só (em torno da figura de Jesus Cristo) [Maio de 2010]; Cidadão Orson Welles [Março de 2011].
            Não será, porventura, mera coincidência que a protagonista de Desculpe Sr. Nobel se apresente como jornalista de investigação e, ainda por cima, é palinóloga, uma especialidade que tem toda a razão de ser: relacionável com o estudo dos pólenes, quando está em causa uma investigação criminal ocorrida em ambiente vegetal – e este é um dos aliciantes do romance.
            A protagonista – Joana Sobral Cid – é também amiúde a narradora e esse o motivo que me leva a suspeitar se, aqui e além, a autobiografia não estará latente.

Uma luz sobre o conteúdo
            Na quarta capa do livro apenas se levanta um pouco do véu, aliás, em palavras assaz enigmáticas, ainda que, na verdade, a maior parte do romance nos leve para um emaranhado de situações, assim em jeito de instantâneos passados em locais diferentes, simultaneamente ou não, com personagens com as quais nós vamos começar a conviver sem sabermos bem quem é que elas são, afinal.
            E, aqui, urge uma recomendação. É que só nas últimas páginas – já o enredo acabado e descansada a nossa mente – a Autora nos explica as «figuras mais importantes»:
            «O trabalho (escreve na p. 298) envolve um número considerável de personagens com nomes que podem confundir o leitor. Aqui ficam as mais relevantes no desenvolvimento da trama» e identifica as nove mais importantes e as onze que considera «personagens efémeras, pelo tempo que vivem no enredo, mas duradouras na lembrança, importantes para a sobrevivência do conjunto».
            Confundir o leitor? Oh! se confundem! Nomeadamente quando – quase no mesmo parágrafo, temos um Stefano Gotirelli que também é chamado de «italiano», «latino», Gotirelli, Got… Ou um Alex Gustafson, que é Alex, Gus, Gustafson!...
            Recomendação primeira, portanto: pôr um marcador na pág. 298 para lá ir, pelo menos nos primeiros tempos, a fim de melhor saber de quem se está a falar, porque a Autora, embora o negue, acaba mesmo por nos enredar na trama de um romance policial. Mas que, a princípio, não sabemos onde é que estão os bons e quais são os maus, isso não sabemos – e é aliciante! E coitada da Joana, que, também ela, não sabe exactamente para onde é que se há-de virar!...
            Permita-se-me, porém, um parêntesis: como é que Maria Helena Ventura diz? Este trabalho não pretende ser… «Trabalho»!? Não deixará de ser curioso o uso deste vocábulo – decerto espontâneo, que saiu ao correr da pena. A Autora tem-se por uma trabalhadora da escrita. «Trabalhadora» em risco de despedimento ou de falta de emprego, como é praga quotidiana? Talvez, no íntimo, assim pense. Eu creio, que, no caso vertente, despedimento não haverá e falta de emprego também não, ainda que bem sedutora, enigmática e imprevisível e incompreensível se nos vá a vida…
            Não serão muitos os escritores que vivem – sobrevivem… – do trabalho da escrita: são muitíssimos, porém, os que não vêem na escrita um trabalho, aparentemente não há suor nem lágrimas, nem deveria haver, por conseguinte, recompensa pecuniária. Retomo, pois, a pág. 300, onde vem a tal palavra trabalho, uma vez que, já o disse, à maneira dos livros em árabe, também este Desculpe Sr. Nobel, precisa de uma leitura primeiro das últimas páginas, pois o importa dizer… das pp. 300 e 301 há-de ler-se também logo a princípio. Explica aí Maria Helena Ventura que procurou retratar uma «realidade ficcionada» e resume depois a vida de Nobel, de certo modo para justificar o título do romance, que não é, como à primeira vista poderia parecer, a biografia do benemérito que, há quase dois séculos, nasceu em Estocolmo (mais propriamente a 12-10-1833) e que, como uma das personagens do romance, morrerá às duas da madrugada de 10-12-1896, «incompreendido, desacreditado, traído, sozinho na sua casa de San Remo», quando hoje, pela herança que deixou, é «amado por milhões de pessoas na medida certa» (p. 301) e Maria Helena Ventura desabafa: «Um rico sem afecto é tão pobre como a mais pobre das criaturas».
            Porque, na verdade, Desculpe Sr. Nobel constitui – por entre o quase inconcebível emaranhado da sua trama – um verdadeiro hino aos afectos.
            Acentuarei, pois, os aspectos que mais me seduziram.

A estrutura formal
            Em 53 pequenos capítulos, identificados por numeração romana e sem título. Estamos agora aqui; no seguinte, estamos noutro lado com outras personagens cuja ligação com as anteriores se não compreende (se urgentemente se não for às tais páginas 298 e 299, para descodificação cabal); e o capítulo sucessivo pode levar-nos para outro espaço e outro tempo. Estamos em Estocolmo, daqui a pouco em Uppsala ou em Aljezur ou em S. Pedro do Estoril. Acho que dava bem para guião de filme ou telenovela…
            Recordo como foram pedradas no charco O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge, ou O Memorial do Convento, de Saramago. O primeiro com uma pontuação oral (pôs-se o ponto onde a personagem fez a pausa na fala); o segundo sem pontuação nenhuma e cada qual que se atavie como melhor lhe der na gana.
            Hoje em dia, parece-me que isso de pontuação à antiga, discurso directo ou indirecto ou directo à maneira de indirecto, foi chão que deu uvas e a gente entende-se bem sem essas manigâncias que os clássicos inventaram.
            Maria Helena Ventura usa a pontuação. Há travessões de quando em vez. Pontos de exclamação acho que não – a capacidade de nos admirarmos anda cada vez mais arredia de nossas vidas!... O mais interessante, porém, é a distinção entre as falas e as descrições. Está tudo misturado, sem aquela ‘história’ dos dois pontos parágrafo travessão. Vai tudo a eito, que na vida não há tempo para essas pausas obrigatórias.
            Por isso, o estratagema – que muito me agrada – é itálico para o discurso directo e redondo para o indirecto. Tudo seguido, pois então! Economiza-se e dá-se uma ideia mais exacta da realidade contada.
            Gostei.

Um retrato da Suécia
            Outro aspecto que não poderia deixar de sublinhar: o livro é um retrato da Suécia. Digo bem, da Suécia. Não apenas da capital, Estocolmo, em que a maior parte da acção se passa, a propósito da cerimónia da atribuição dos prémios Nobel – no antes, no durante e no depois; mas também da intelectual Uppsala, com a sua universidade, a mais antiga da Escandinávia, fundada em 1477, natural alfobre de Prémios Nobel (8 dos seus docentes foram galardoados já e há mais quinze que tiveram com Uppsala íntimo elo de ligação). Recordo que foi das primeiras universidades a integrar o chamado Grupo de Coimbra, logo nos primórdios da criação do Programa ERASMUS, na década de 80, e muitos dos nossos estudantes para lá têm ido estudar e sorver a longos haustos os ares que respiraram Celsius (1729) e o botânico Lineu. O campus de Uppsala com os seus edifícios históricos tinha, por conseguinte, que estar presente nas páginas do Desculpe Sr. Nobel.
            No caderno Ípsilon do Público de 26-09-2014, vem nas páginas 12-14 extensa reportagem sobre «O ‘caso’ Donna Tartt». Trata-se de uma romancista norte-americana nascida a 23-12-1963, de ascendência italiana. O artigo, assinado por Isabel Lucas, justifica-se, a propósito do seu mais recente livro, O Pintassilgo¸ publicado em 2013 e galardoado com o Prémio Pullitzer. Em ‘caixa’ (estou a referir-me ao texto de Isabel Lucas), assinala-se que Donna Stratt «continua a escrever à mão em blocos e diz que usa a Internet apenas para consultas, como endereços de restaurantes ou, no caso de O Pintassilgo, para consultar o Google Earth, auxiliar para construir melhor ambientes das cidades onde a acção decorre».
            E porquê este parêntesis? Porque, neste aspecto, Maria Helena Ventura é muito clara, na pág. 302:
            «Cabe aqui um agradecimento especial ao Ricardo Santa Clara Matos, residente em Estocolmo, donde me enviou dados importantes para compor o trabalho com menos desvios. Apesar de minha estada na Suécia ter sido uma inspiração, não foi tão duradoira quanto desejaria. Muito ficou por descobrir, inventariar e admirar na sua plenitude».
            Na verdade, o que mui agradavelmente nos surpreende nos livros de Maria Helena Ventura é a minuciosa descrição dos ambientes – as ruas, os parques, as casas, as cores, o movimento, a gastronomia típica (“A gastronomia é um dos espelhos de um povo”, proclama na p. 36), os hábitos… Quando li o seu Orson Welles, acabei por a acompanhar pelas ruelas de Roma; aqui, passeamo-nos, de facto, por Estocolmo e deixamo-nos enlevar pela cidade e suas gentes. E se não logramos pronunciar bem os topónimos nem os nomes das iguarias (têm uns bolinhos de canela, os kanelbulle, e há o bufet smorgasbord p. 73), o certo é que estamos perante um ambiente exótico explorado e a explorar. E vê-se que Estocolmo e Uppsala, nomeadamente, lhe ficaram no coração. Creio bem que os suecos que vivem em Portugal hão-de gostar de o reviver.
            Confesso uma fraqueza: quando vi a referência ao restaurante panorâmico Erik’s Gondolen, não resisti e fui ao Google – e lá estava tudo: os elogios à vista panorâmica sobre Slussen e Gamla Stan, sobre o porto, a cidade velha… «É como se entrassem num barco suspenso atravessado por feixes de luz», escreve Maria Helena Ventura (p. 153). A comida, excelente; o local, apropriado para aniversários de casamento, romanticamente celebrados a dois. Claro, Joana preferiria, no momento, um daqueles nossos à beira-mar, com o «marulhar das ondas, o cheiro da maresia…». Mas… Joana, não se pode ter tudo!...
            Pronto, estamos mesmo no âmago dos ambientes suecos e o livro constitui – também por isso – aliciante para uma visita.
            Ah! Nem falta a referência a um dos mais célebres monumentos funerários pré-históricos da Suécia, o Anundshögen, datável de entre a Idade do Bronze e os primórdios da Idade do Ferro, assim ao jeito do nosso cromeleque dos Almendres (perto de Évora), mas muito mais imponentes: os esteios estendem-se por uma área de 60 m de diâmetro e têm, alguns, 9 m de altura. A inscrição, em caracteres rúnicos, dá conta, segundo uma interpretação, da homenagem feita a Heden, irmão do lendário rei Anund – daí o nome.
            Nada escapou, portanto! E se uma tese de mestrado houvéramos de fazer acerca de Desculpe Sr. Nobel, muitos seriam, por consequência, os fios a pegar nesta imensa meada com que Maria Helena Ventura nos quis brindar. E, já agora, diga-se que o título vem no discurso de uma candidata ao prémio que, ao verificar as manobras de bastidores que, necessária e obviamente, precedem a escolha dos nomeados e, depois, dos laureados, lhe pede desculpa por, no meio de tudo isso, mui frequentemente se esquecer a enorme importância do seu legado: «Desculpe, Sr. Nobel, pelos que semeiam abismos de ingratidão!» (p. 262).
            Perdoar-me-ão, no entanto, se foco mais dois aspectos que (entre tantos!) me deliciaram.
 
Uma escrita poética
            Prende-se o primeiro com o poético rigor da escrita.
            Dir-se-á que nada há de mais antagónico: o rigor e a poesia! Creio que não. E, nesse aspecto, colho exemplos de algo que a mim muito me seduz – cá está a «Universidade da Vida»!... – e que à Autora não deixou indiferente: o dia nas suas contínuas mutações; o dia, reflexo de nós; o dia-sentimento; o dia que, momento a momento, nos cumpre saborear:
  • «O dia amanhece sereno, com o sol a beijar francamente a ramagem humedecida» (p. 100);
  • Acordam abraçados, «a soletrar o silêncio da manhã» (p. 210);
  • «O dia amanhece com a cadência da chuva a lacrimejar nas vidraças» (p. 232);
  • «[…] Uma manhã com gotas de chuva para dissolver rugosidades na melodia do percurso» (p. 297 – é a última frase do livro);
  • «Mergulhando nos braços da tarde há muito anoitecida» (p. 82);
  • «A noite acaba de fechar a Terra à chave» (p. 88);
  • «Como se a água da chuva, lá fora, fosse dissolvendo […] as borras do afecto antigo» (p. 96).
  • Escondia-se o sol «no horizonte como um dístico raiado de vermelho – uma porta encantada para outro mundo que um dia hás-de explorar – dizia ele» (p. 261).
As frases lapidares
            E se a Autora polvilha, aqui e além, o seu texto de frases lapidares de autores célebres que a enlevaram, também semeou no seu livro algumas outras que poderão vir a ser incluídas num álbum de citações:
  • «Quem não perdoa a competência alheia, arranja sempre forma de a macular» (p. 38);
  • «Sorriso que não é franco não passa de um esgar» (p. 63);
  • «Há fracções de tempo em que o olhar agarra fios de luz vividos e os entrelaça com outros por viver, a cabeça ocupada a tecer relatórios de ontem, de amanhã. Hoje, agora, esta porção de existência ao alcance da mão, fica a planar na linha do horizonte, mais longe do que passado e futuro. Porque não alimentamos a vontade de a vestir de cores alegres? Só a cor sépia do que foi e o matiz do que será têm magia?» (p. 72);
  • «Vinte minutos numa espera ansiosa podem parecer um ano ou mais» (p. 72);
  • «As amizades bem construídas têm paciência mítica» (p. 77);
  • «O ruído é um bom pano de fundo para a partilha de um segredo» (p. 88);
  • «Com o rosto pálido como uma folha de papel reciclado» (p. 91);
  • «A magia da vida é o inesperado» (p. 107);
  • «O Presente, a única estação que amanhã já é Passado, que hoje já é Futuro» (p. 132);
  • «Há tantas coisas, tantas pessoas, que existem durante anos no mesmo espaço e permanecem invisíveis…» (p. 252);
  • «O acto de dar liberta, o de receber constrange» (p. 268).
A magia do amor
            Proclama Maria Helena Ventura que escreveu um romance de amor. E não há dúvida que é na descrição dos momentos prenhes de lirismo que a Autora se aprimora, na recriação imagética dos sentimentos.
            Das muitas passagens relativas à ternura crescente entre Joana e Anderson Bengtsson, transcrevo a descrição do primeiro encontro, quando ainda nada se sabe do que poderá vir a acontecer:
            «(…) desde a ideia imemorial da metade que buscavam. Os seus olhos castanhos nos dele azuis-escuros descobrem o princípio do tempo, o fim da busca, o graal.» (p. 103).
            E, pouco depois:
            «[…] Um beijo demorado como a pressão de um carimbo, um selo de pertença. Enquanto uma corrente tépida lhe percorre o corpo, retém o até sempre, no orvalho do sorriso. […] Há muito tempo que não sentia aquele íntimo dedilhar de cordas – fogo, afago, palpitações intermitentes de aguaceiro. Sempre desejara que um olhar bastasse para encontrar a fonte… um olhar que ousa, que logo se retrai e que volta a ousar num chamamento mudo. Teria sido agora?» (p. 109).
           Foi – digo eu.
            «[…] O toque de magia que vibra uma vez, na vida.
            Há um dedilhar de guitarras longe, num barco ou numa cabana, acompanhado pelo chilreio da Natureza» (p. 221).

            E assim nos apetece ficar!

Publicado em Cyberjornal, edição de 11-10-2014:

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Relançamento do Jornal da Região

             Após ter estado um ano em versão digital, o nosso prezado colega Jornal da Região foi relançado, em Sintra, no passado dia 9, em papel, com a edição nº 0 da série IV.
            A cerimónia ocorreu no final da tarde, num hotel de Sintra, que serviu bem agradável coquetes, na presença de uma centena de convidados, entre os quais se contou o presidente da Câmara local, Dr. Basílio Horta, e alguns dos vereadores, um vereador da Câmara de Oeiras, figuras das empresas, do turismo e da Comunicação Social. A Câmara de Cascais não se fez representar.
            Adriano Lourenço, administrador da Monde Visionnaire – Comunicação Social, S. A., ora proprietária do título, saudou as entidades presentes e deu conta dos objectivos a atingir pela publicação ora reaparecida, depois de ter sido, de facto, há 18 anos, o primeiro jornal de distribuição gratuita na área da Grande Lisboa. Pretende-se continuar a dar uma informação de proximidade, aberta à participação de todos, disse, uma «janela aberta» sobre as populações de Cascais, Sintra e Oeiras – que disporão de edições semanais autónomas. Sublinhou que o ‘anterior’ Jornal da Região ‘sucumbira’ devido a problema de gestão e não de pessoal; por isso, foi ‘recuperada’ a equipa de profissionais, apostando-se na qualidade, na independência, uma ‘voz activa’ na divulgação das iniciativas.
            Paulo Parracho, que já era Director do jornal há vários anos, salientaria, por seu turno, que se pretende fazer um «jornal metropolitano» virado para as pessoas, independentemente de credos ou opções políticas, onde vão reflectir-se as figuras típicas de cada região, tudo o que é força viva, uma tribuna dos leitores para também prontamente acolher as suas opiniões. A tiragem será de 60 000 exemplares, abrangendo um total estimado de 750 000 leitores. Terminou agradecendo à equipa e aos respectivos familiares.
            A finalizar, Basílio Horta garantiu que toda a crítica será bem-vinda e respeitada, os mandatos servem para nos irmos aperfeiçoando e, aliás, frisou, há aspectos da vida e das necessidades das populações que só a nível local se enxergam e não quando estamos no Governo ou na Assembleia da República. E, no que concerne a Sintra, tantos são os projectos em curso que Jornal da Região terá muitas notícias para dar!
            Ainda que não tenha havido por parte de nenhum dos oradores qualquer referência aos seus colegas locais (recorde-se, por exemplo, que Jornal de Sintra comemorou 80 anos em Janeiro…), cumpre-nos, da nossa parte, saudar este relançamento, com que nos congratulamos. Todos não seremos de mais para ajudar a população a tomar consciência do que lhe compete fazer para melhorar as suas condições de vida e para chamar a atenção dos autarcas no sentido de mais ajustadamente servirem os legítimos interesses do Povo que os elegeu. A informação constitui, de facto, como também sublinhou Basílio Horta, uma necessidade vital! Sem repercussão pública, uma iniciativa, por mais relevante que seja, corre sério risco de bem depressa ser olvidada! E esse é o papel imprescindível da Comunicação Social local!

Publicado em Cyberjornal, edição de 10-10-2014:

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Citius, mídia & Cia. Ilimitada

             Anda por aí tudo em bolandas, porque trasladaram processos judiciais de uns tribunais para outros, física e digitalmente, e, afinal, chegou-se à conclusão que muito se fizera atabalhoadamente e o sistema citius não funcionara a contento.
            Virá, pois, a propósito, uma divagação sobre o significado da palavra, que, de quando em vez, vem acompanhada de outras duas: altius e fortius, trilogia que desde há muito se adoptou como mote para os Jogos Olímpicos, onde cada atleta procura ser mais rápido, chegar mais alto e ser mais forte. Citius é, na verdade, um advérbio de modo, latino, no grau comparativo, e significa «mais velozmente». Ao que parece, nessa história dos tribunais, o tiro saiu pela culatra e foi tudo mais devagarinho, parado…
            Folgo, pois, como docente de uma disciplina, a Epigrafia Latina, em que o Latim é, para mim, quotidiano, que se haja buscado um significativo advérbio latino para identificar um programa informático – que se espera venha rapidamente a cumprir os seus objectivos.
            Escrevi «objectivos» com c, porque me declaro contrário ao chamado «novo acordo ortográfico», o qual, ao invés do Ministério da Justiça, atirou o latim às urtigas. Objectivo é com c porque assim o determina a sua etimologia. Os senhores que gizaram o tal de acordo é que nem se importaram muito com isso, parece.
            Claro, toda esta discussão do citius tem enchido páginas e páginas dos meios de comunicação social e virá, por isso, a propósito, referir que a palavra genérica e simples que identifica os meios de Comunicação Social é ‘media’. Pese muito embora o chamado Dicionário da Academia declarar que a palavra vem do inglês, o certo é que ela é mesmo muito latina: ‘media’, em latim, significa ‘meios’, no sentido de ‘instrumentos’, ‘objectos com determinada finalidade’. Portanto, deve escrever-se ‘media’ (em itálico ou com vírgulas altas) e nunca ler mídia, à inglesa. A não ser que se opte – como os nossos irmãos brasileiros, sempre tão práticos e pressurosos nestas coisas… – por escrever mesmo mídia, que é a forma do português do Brasil. Não nos vão cair os parentes na lama; contudo, vergamo-nos perante uma moda que não respeita a história da língua e que, em certa medida, a desvirtua.

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 647, 01-10-2014, p. 11.

Secção da PSP de Cascais em edifício degradado

            Fiquei estupefacto.
            Legítimos os aplausos para a mudança de instalações da esquadra da PSP do velhinho edifício da Afonso Sanches, em pleno centro histórico da vila de Cascais, para parte do devoluto imóvel da lota. Lá estive e regozijei-me com o aspecto airoso do conjunto e até os senhores agentes tinham melhor cara, por estarem a trabalhar em condições humanas.
            Qual não é, porém, o meu espanto quando – convocado para uma diligência no foro da investigação criminal, fui, a 8 de Setembro, ao nº 150 da Av. Piemonte, ali na raia do Monte Estoril com a Amoreira. Instalações antigas de uma dependência camarária, já não recordo qual, mas com todo o aspecto de armazéns, arrecadações ou quejandos. Logo o aspecto exterior, sem letreiros identificativos (o que se compreende, quer para não dar nas vistas quer para não aumentar a vergonha), era assaz desagradável.
            Chovera na noite anterior e felizmente que os processos conseguem estar a bom recato, porque correu água das largas fissuras do tecto e veio escada abaixo. A senhora da limpeza (passava das 10 horas) ainda andava com os baldes a esvaziar as poças e a pôr outros onde ainda pingava.
            De soslaio, dei uma vista de olhos aos «gabinetes» onde os agentes inquiriam as testemunhas. Condições? Nenhumas! Trabalhar ali, um acto de heroísmo, de abnegação, de amor a uma causa! Louvei a serenidade de todos.
            E dei comigo a pensar que esta é a Cascais das grandes festas. Dos lumina, da orgulhosa bandeira desfraldada no topo do alto mastro… e da PSP que tem esquadra «nova» em casa emprestada (?), onde agora alguns serviços funcionam, que outros continuam na Afonso Sanches: «perdidos e achados», os calabouços…
            Portanto, no centro da vila: dois edifícios; a Esquadra de Investigação Criminal na Av. Piemonte; a secção de trânsito lá para as bandas de S. Domingos de Rana… Lamentava-se-me, outro dia, um amigo: «Eh, pá! Primeiro que a polícia chegasse para tomar conta da ocorrência!...».
            ‒ E, se calhar, bem depressa veio ela até aqui perto da vila. Já viste que vem lá de S. Domingos de Rana e porventura nem pode utilizar a auto-estrada? Os agentes fazem das tripas coração e não admira, pois, que, de vez em quando, até estejam de mau humor, porque não é fácil ser polícia em Cascais!
            ‒ Não?
            ‒ Pois não. Somos muito bons em muitas coisas, até ganhamos prémios e legitimamente embandeiramos em arco; noutras, porém, engonha-se, engonha-se... Já não é do teu tempo, mas vê o caso do tribunal. Tens ideia das andanças que teve até ser onde é, depois de ter sido criada a comarca em 1963? Deixa ver se me lembro: foi, durante anos, numa casa apalaçada da Rua da Bela Vista; depois, passou com malas e bagagens para o Palácio Faial, sobre a Praia da Conceição e o Estado pagava um balúrdio pelo arrendamento. A zona onde hoje se encontra começou a ser pensada aí pela década de 50: queria instalar-se aí o novo Centro Cívico; mas o novo edifício só foi inaugurado não há muito tempo.
            ‒ Espera aí. Voltando à polícia: não há uma nova esquadra quase acabada ali no Alto da Pampilheira, que até prevê quartos para agentes que venham de fora?
            ‒ Há. Empreiteiro faliu. Burocracia emperrou. E, altaneiro, o imóvel lá está, hoje cai um azulejo, amanhã outro. Dizem que vai ser demolido. Obra de prestígio do arquitecto Troufa Real.
            ‒ Mas valha-nos o hospital.
            ‒ Valha-nos. Também foram anos e anos de luta! Contudo, o destino a dar ao antigo imóvel discute-se, discute-se, discute-se!... A concretizar anos depois. Menino, não esqueças: Cascais é para… saborear lentamente!

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 65, 01-10-2014, p. 6.