Estavas, linda
Inês, posta em sossego, de teus milhares antevendo o doce fruito, quando uns
miseráveis queixinhas puseram a boca no trombone, deitaram tudo a perder e foi
o escarcéu que se viu…
Já na Guerra
dos Cem Anos (1337-1415), entre a Inglaterra e a França, uma outra heroína,
Joana d’Arc (1412-1431), os soldados seguiram-na com fervor, até que alguém (sempre
a inveja!...) ciciou que havia bruxaria pelo meio e a pobre acabou por ser queimada
na fogueira.
Do
cavalo-marinho do pai escapou à justa o Toninho, de 9 anos. Combinou com a Maria
encontrarem-se naquele recanto fofo da seara do Ti Alfredo. Encontraram-se,
deve ter sido bonito para a idade, mas logo adregou passar por perto uma vizinha,
que viu os dois enlaçados e correu a meter tudo nas saias da mãe da Maria. O Toninho
jurou a pés juntos que até nem conhecia bem quem era essa Maria e, não senhor,
nada fizera. O pai sentenciou-lhe então, pela primeira vez, «brincar, brincar,
mas na gaita não tocar!». E perdoou-lhe.
Nos tempos da
Inquisição, também era assim. Não de guerras nem de amorezinhos em loiras e
mornas searas, mas de milhares como os de Inês. Aquele marmanjo está a sair-se
demasiado bem nos negócios, o melhor é a gente acusá-lo de ser cristão-novo e
de andar por aí em rezas às escondidas. Se calhar, até alguns dinheirinhos dele
nos podem calhar pela denúncia. Atire-se o homem prá fogueira!
E há também aquele
outro senhor, o da guerra santa – como a dos cruzados da Idade Média – que já o
disse alto e bom som: «Descubram-me os traidores! Digam-me já quem é que anda praí
a murmurar contra a minha guerra! Eu recompenso!».
Enfim, o
estilo de todos os tempos!
Lançou-se
a minha amiga Maria Federica Petraccia, da Universidade de Génova, à descoberta
de como é que esses guisados se cozinhavam na Roma antiga. Daí nasceu o livro Indices
e Delatores nell’Antica Roma. Indices eram, ao que parece, os que, tendo
participado no crime, acabavam por fornecer dados para que o processo chegasse
ao fim e eles ficassem ilibados ou, pelo menos, com penas aliviadas. Delatores,
ao invés, eram os que andavam de fora a farejar, nada os havia prejudicado, mas
decerto lhes caberia algum provento se denunciassem o escravo fugitivo, as
heranças ocultas ou sem pretendentes…
Tem-se
mesmo a ideia, escreve Federica Petraccia, que uma forma de então se andar
protegido era confiar-se a informadores profissionais, esses delatores.
No reinado do primeiro imperador, Augusto, os delatores foram extraordinariamente
eficazes, sobretudo para revelarem tentativas de assassinato do imperador e para
controlarem as multidões. Houve inclusive uma lei, a lex Iulia maiestatis,
que estipulava, no ano 8 antes de Cristo, ser crime contra o Estado a injúria
verbal ou a simples calúnia contra o Príncipe ou, ainda, a difamação dos membros
da sua família. (¿Não se condenava recentemente quem ousasse pronunciar a
palavra «guerra»?).
O
segundo imperador romano foi Tibério, reinou de 14 a 37 da nossa era. No seu tempo,
«as acusações pululavam nos lugares públicos e nas casas particulares e até os
senadores mais respeitáveis se abaixavam às mais vergonhosas delações, alguns
abertamente, muitos às ocultas». Havia uma relação estreita entre o imperador e
os delatores, uma relação somente conhecida e documentada nos segredos da chancelaria
imperial, «uma espécie de do ut des [«dou-te para que tu me dês», ¿onde é
que eu já ouvi isto?...], um instrumento de excepcional pressão política nas
mãos do imperador, uma forma de obter reconhecimentos, promoções e riquezas
para os segundos».
Refere-se
Federica Petraccia a dezenas de casos ocorridos nesse (já longínquo, repita-se…)
tempo dos Romanos. Aludo a três, de índole diversa, só para exemplificar.
Um,
de aspecto agradável, do ano 362, a excepção para confirmar a regra. Dois
emissários imperiais que haviam sido dispensados do serviço prometeram ao imperador
Juliano revelar-lhe o esconderijo de um certo Florêncio, na condição de o imperador
os readmitir. E, aqui, o príncipe não esteve com meias medidas: chamou-lhes
delatores e disse não ser conveniente para um Príncipe deixar-se levar por informações
indirectas para encontrar quem se escondera com medo de ser assassinado.
Um
outro, de contexto singular. O ex-pretor Paulo estava num banquete e tinha no
dedo um camafeu com a efígie de Tibério. A dado momento, já com os copos, pegou
num urinol. O caso foi observado quer por Marão, um dos delatores mais famosos
da época, quer por um dos seus escravos. Este último apressou-se a tirar-lhe o anel
e enfiou-o no dedo, a fim de tornar inconsistente a acusação, que Marão já estava
a preparar, de que Paulo encostara às virilhas a imagem imperial!...
O
terceiro faz lembrar a nossa constante busca de um bode expiatório. Corria o
ano de 472 a. C. Pairava sobre Roma uma pestilência inaudita: as mulheres
grávidas morriam e davam à luz fetos mortos. Quando se haviam esgotado todos os
normais procedimentos de expiação, há um escravo que segreda aos pontífices que
a vestal Orbínia perdera a virgindade a que estava obrigava e continuava a presidir,
assim impura, às celebrações sagradas. Julgada como culpada, vergastaram-na,
arrastaram-na através da cidade até ao sepulcro. Um dos dois cúmplices
suicidou-se, o outro foi punido como era de lei – e a pestilência acabou!
José
d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 02-01.2023:
https://duaslinhas.pt/2023/01/a-inveja-a-cobica-a-delacao/