quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Ora, bora lá ao passeio!...

              Reconheço que estava bem longe de imaginar quão salutares me seriam os passeios diários a que o meu cão me leva!

            Primeiro, espaço para meditação! Pela manhã, ainda não há movimento, pode programar-se o dia, reflectir sobre a melhor forma de resolver esta ou aquela questão, agradecer a brisa fresca e o ar lavado do pinhal vizinho… De tarde, na hora de assistir ao regresso a casa, a reflexão é mais sobre o que se observa, o rosto dos condutores, as conversas que fazem pelo alta-voz, um sobrolho carregado aqui, um raro sorriso além.

            Não se pode, porém, perder de vista a função para que fomos chamados: cuidar do cão, mormente quando há outro por perto e urge segurar bem a trela e na altura de se programar a travessia na passadeira. De um modo geral, os condutores param, atenciosos, e eu agradeço a atenção, num cerimonioso sorriso, habitualmente correspondido.

            Há aspectos de que eu nunca me apercebera. A senhora, porventura na casa dos 70, que sai sozinha para um passeio e vai de olhos no chão, não se apercebendo de quem está perto ou mesmo com ela se cruza. Outro dia, parei a ver o que acontecia; eu estava a escassos quatro metros com o cão; a senhora nem nos viu; puxou da chave de casa e entrou. Pensei: nunca lhe terão dito da necessidade de atenção?

            O mais interessante é ver a reacção quando saúdo. Gosto de dizer “bom dia!” a quem se cruza comigo e nos olha. Sim, boa parte nem nos olha! Se lhe perguntares com quem se cruzou, não terá certamente a menor ideia! Às vezes, respondem à saudação; mais frequentemente não e olham para mim com ar de «que é que este agora quer?». Não quero nada, só desejar os bons dias! E quando o jovem está completamente absorto, mesmo na passadeira, a digitar nervosamente no ecrã do telemóvel? O que vale é que os condutores já contam com isso!

            Custa-me ver os transeuntes sem apreciarem a paisagem, sem olharem – com a natural discrição, claro! – para as pessoas com quem se cruzam. Uma distracção pegada que se pode observar quando interpelas alguém e perguntas pelo nome de uma rua. Pode até ser a rua em que estás! E o interpelado raramente sabe. É capaz de passar por ali todos os dias, mais do que uma vez, mas nunca se perguntou como é que a rua se chamava.

            Há dias, no concurso televisivo Joker, perguntava-se quando se comemorava a Assunção de Nossa Senhora e davam-se quatro datas: 1 de Janeiro, 1 de Maio, 1º de Novembro e 15 de Agosto. O concorrente não acertou – e eu perguntei-me onde é que ele estaria a viver!

            Por isso me custa a desatenção a que diariamente assisto. Não vou já ao extremo daquele jovem que se oferecera para dog walker – passeador de cães – e que deixou o canito ser atropelado, porque passou o tempo todo a olhar para o telemóvel! Também não refiro aquela rua que não tem uma centena de metros e onde há dois dispensadores de sacos para detritos e os passeios «cuidado, Amigo, que há detrito aí!», metro sim, metro sim…

            E as caixas de correio? Quantas rebentadas e atafulhadas, a denunciarem desabitação?! Muitas, são muitas mesmo! E, na actual conjuntura, ainda custa mais ver! Oh! Se custa!

                                                                       J. d’E.

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 326, 2020-09-26, p. 6.

A intenção foi boa: uma rega automática manteria o relvado... 


 

           

 

sábado, 19 de setembro de 2020

Fiquei marfado!

                Não, não foi com o que li no 2º tomo da «Geografia histórica de todos os estados soberanos de Europa...», saído em 1736, da oficina de Joseph Antonio da Sylva, situada na Lisboa Occidental e da autoria de Luís Caetano de Lima.  

            Diz-se lá – e muito bem! – na p. 320, que, nessa 1ª metade do século XVIII, tinha Faro 8 paróquias, a saber: Conceição, Estoy, S. Braz de Alportel, S. João da Venda, Santa Barbara de Nexe, Olhão, Pexão e S. Sebastião de Quelfez.

            Sobre S. Brás de Alportel, informa: «Está a 2 léguas de Faro e 1 de Estoy e tem 704 fogos, com 2552 almas» (p. 320-321).

            Ficamos, assim, com uma ideia dos lugares de maior relevo na altura, pertencendo hoje, alguns deles, a concelhos diferentes, que de Faro se separaram: Olhão e S. Brás.

            Por conseguinte, nada a opor.

            O que me marfou foi um mapa consultável na Biblioteca Nacional Digital que amiga simpática, sabendo-me natural desse reino, fez questão de me remeter. Desencantara-o Andreia Fidalgo, no passado 19 de Agosto: «Um mapa do Reyno do Algarve nos finais do século XVIII». Busque-se «Mappa Geografico do Reyno do Algarve» ou http://purl.pt/29070/2/ e facilmente se acederá a esse mapa, bem minucioso, passível de ser ampliado, datado de 1791 e elaborado pelo Eng.º Baltazar de Azevedo Coutinho.

            E que se lê por lá que me pôs os cabelos em pé? Então não é que marca o «Caminho de Faro para Lisboa» a passar por S. Bárbara e por Loulé em direcção ao Ameixial, este já no limite com o «Campo de Ourique»? Caminho de Faro para S. Brás não há; caminho de S. Brás para norte não há também! A povoação está na planura, guardada pelo Cerro de Guelhim e vigiada pelo Cerro de S. Miguel.

            Pode lá ser? Agora que embandeiramos em arco com a E. N. 2, que estamos encantados com a Calçadinha, vem lá um tal de Baltazar pôr tábua rasa nisso tudo e esquecer-se que a palavra «Alportel» radica em «porta» e que era por aí, por essa «porta», que o povo se aventurava para norte, em demanda da capital!...

            Temos mesmo que ver bem se o Sr. Engenheiro se não desviou de mais!...

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], 20-09-2020, p. 13.

 

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Há que pensar nos cães!...

            Nunca me pusera a questão; quando, porém, se fez a investigação para o livro Para uma História da Água no Concelho de Cascais (Guilherme Cardoso e José d’Encarnação, edição dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento de Cascais,1995), não hesitámos em dar relevo ao artigo que, em Julho de 1917, Ruy d’Athouguia Ferreira Pinto Basto, visconde de Atouguia, publicara no jornal A Nossa Terra acerca da caça em Cascais.

            É que, para a caça, há caçadores e… há cães! E, portanto, há que pensar seriamente neles. Por isso, o visconde traça um completíssimo quadro do que, em relação à água, se poderia encontrar no concelho:

            «Em quase todas as povoações», escreve, «há fontes junto às casas ou a pouca distância delas, sendo todas boas para beber; mas há grandes áreas de terreno onde as não há, sendo necessário levar água ou dar a volta por forma que não falte na ocasião necessária, tanto para nós como para os cães».

            E traça bem sugestivo quadro do que poderia encontrar-se. Por exemplo:

            «Na Marinha, desde a Guia até ao Cabo Raso, só há água no pinhal, onde passa em canos de chumbo, ou na fonte da Areia, que dista do povoado aproximadamente 1 km».

ooo

            Comuniquei, há dias, à Cascais Ambiente a minha preocupação quanto à sobrevivência de um ouriço-cacheiro que vive no meu bairro. Fiquei descansado com a resposta obtida:

            «Os ouriços, entre outros pequenos mamíferos, têm a capacidade de se adaptar e conviver com o ser humano, sendo que, na maioria dos casos, não damos por isso. Neste caso em particular dos ouriços, estes pequenos mamíferos beneficiam dos nossos espaços verdes urbanos, onde conseguem capturar alimento como caracóis e lesmas, mais abundantes em zonas regadas.

            A espécie não é ameaçada e é um bom indicador de qualidade ambiental. O facto de se deixar ver é porque está à vontade e confiante de que não lhe fazem mal, na certeza de que este já identificou os riscos existentes no local.

            Recomenda-se assim que se deixem sempre estes animais nos seus locais onde sempre viveram e estão adaptados, conhecem os abrigos, pontos de água e alimento».

            Não pude deixar de relacionar este caso do ouriço com a história dos cães de caça, porque a preocupação era a mesma: a de haver água.

ooo

            Preocupação bem antiga, essa, se pensarmos nos Romanos. No povoado dos Casais Velhos, entre a Areia e o Guincho, encontramos restos do aqueduto que o abastecia. O mesmo sucede na villa romana do Alto do Cidreira: identificámos complexo sistema de condutas de água. E, em relação à villa romana de Freiria, torna-se mais do que evidente que o sítio foi escolhido por Tito Curiácio Rufino, devido à existência de um permanente manancial de água cristalina a brotar da rocha. Aliás, não se esqueceu ele de mandar gravar agradecimento à divindade Triborunnis, o génio que protegia a nascente. E o amplo tanque das termas acabou por ser construído mesmo no leito do ribeiro, para todos se poderem banhar em… águas correntes!

            Relanceando o olhar por outras paragens, recordar-se-á que o Aqueduto da Águas Livres, erguido ao tempo de D. João V, aproveita no início do seu percurso o que fora o aqueduto romano de Lisboa, a partir da barragem romana de Belas, no vale da ribeira de Carenque. A cidade romana de Conimbriga teve aqueduto que abundantemente a abastecia a partir de Alcabideque (nascente ainda hoje em plena actividade); a capital da Lusitânia romana, Mérida, faz gala do seu Aqueduto de los Milagros, cuja água vem da barragem de Prosérpina, também ela de origem romana. Há, em Évora, o Aqueduto dito de Sertório, que igualmente teve raiz no tempo dos Romanos. Elvas orgulha-se do seu aqueduto da Amoreira e, em Coimbra, há os «Arcos do Jardim», que é o aqueduto de S. Sebastião.

ooo

            Não é, por conseguinte, de admirar que, nas Memórias Paroquiais a que se referência na anterior crónica, a 23ª pergunta tenha sido: «Se há na terra, ou perto dela, alguma fonte ou lagoa célebre, e se as suas águas têm alguma especial virtude».

            Bem circunstanciada se revela a resposta dada pelo prior de Cascais, que começa por afirmar que «toda a terra é mui falta de fontes e de águas» (daí se compreender, voltando ao começo desta crónica, as preocupações do visconde da Atouguia, 150 anos mais tarde…).

            E explicita o reverendo Marçal da Silveira:

            «Tinha, sim, uma copiosa fonte, de que todo o povo bebia; porém, esta, por umas minas que lhe deram na mãe para que melhor brotasse, a deitaram a perder, com que veio a faltar: comummente se seca desde Julho até Novembro e torna, então, a rebentar. E é perda grande, porque a água é a mais célebre que se podia excogitar».

            Como sói dizer-se: quem tudo quer tudo perde!...

            «E em remédio», continua o prior, «tem vários poços e noras; porém, sempre se padece muito com esta grande falta».

            Havia, por conseguinte, que encontrar outros recursos e o rol pormenorizado não se faz esperar:

            «Remedeia a cisterna da Cidadela a uns; a fonte de S. Clara, a outros. E os mais se remedeiam com os poços ou a mandam buscar à Guia e ao forte da Guia, à Torrezela e a outras partes vizinhas, no que padecem mui grandes incómodos».

            Torrezela é a actual Atrozela, sita no vale da Ribeira da Penha Longa que, mais adiante, se junta à Ribeira de Porto Covo e, começando por ser Rio Marmeleiro, é depois a Ribeira das Vinhas, o maior curso de água do concelho de Cascais. Ainda hoje há na Atrozela uma captação de água. E não deixará de ser curioso lembrar que Atrozela está bem pertinho de Alcabideche, topónimo que equivale ao Alcabideque a que atrás se fez referência, fonte de abastecimento de Conímbriga. A etimologia é, na verdade, a mesma: da expressão latina «ad caput aquas», literalmente ‘à do manancial de águas». Há, na Sardenha, uma localidade que ainda mantém esse nome: Cabu d'Aquas ou Caput Aquas, justamente por estar próxima de uma nascente de água potável muito famosa e conhecida desde a época romana. Em Portugal, porventura por influência dos Árabes, deu Alcabideche e Alcabideque.

            Uma nota final, como recorda o Pe. Marçal da Silveira:

            «No convento dos Padres Carmelitas se descobriu de novo uma fonte de água que buscaram na cerca, com que se remedeiam, pois a que tinham, em uma nora antiga, era salobra; e da outra fazem caridade a muita vizinhança».

            Com o abastecimento desse convento – onde está hoje o Centro Cultural de Cascais – se relaciona o aqueduto de que pode observar-se um bom trecho no Parque Urbano da Ribeira dos Mochos.

                                                              José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 06-09-2020: https://duaslinhas.pt/2020/09/ha-que-pensar-nos-caes/

 

A espada de Dâmocles

             Desde sempre o Homem soube exprimir os seus medos, aspirações e dúvidas. E os episódios da mitologia grega, de que tanto somos devedores, mantêm actualidade flagrante.

            Considerei o mito da espada de Dâmocles. Bajulador do poder de Dionísio de Siracusa, foi por este posto no seu lugar, com todas as regalias: boa mesa, luxo abundante, esbeltas e sedutoras garotas… Havia, porém, um senão imposto pelo monarca: presa apenas pela cerda de um rabo de cavalo, ficava pendente sobre a sua cabeça mui afiada espada …

            E Dâmocles depressa saiu de cena, por não se conseguir manter sob essa permanente ameaça de morte!

 
             Abraracourcix, o genial rei gaulês criado por Albert Uderzo († 24.03.2020) e René Goscinny, na saga do Asterix, tinha um pavor danado: que o céu lhe caísse sobre a cabeça! E protegia-se com um escudo! 

            Joana já começara no esquema do teletrabalho antes da pandemia, porque seu filhote pequeno contraíra uma daquelas doenças estranhas que deixam os médicos perplexos, sem saberem que fazer. As plaquetas sanguíneas haviam diminuído assustadoramente e o menino carecia de vigilância permanente. Amiúde, as consultas eram feitas pelo telefone. Uma das vezes, o médico fez o relato habitual, deu as indicações precisas e terminou, em voz enigmática:

            – Depois falamos!

            Passaram já largas semanas. O «depois» é só em Outubro. Até lá, Joana pensa amiúde:

            – Que quererá ele dizer-me? Será que meu filhote não vai ter cura?…

            Era escusada, de facto, esta tormentosa espada de Dâmocles. Assim não, doutor! Se havia algo a dizer, dizia; se não, calava-se e esperava pela oportunidade.

            E dei comigo a pensar nas espadas de Dâmocles que tão amiúde deixamos pendurar sobre as nossas e alheias cabeças!...

                                   José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 783, 15-09-2020, p. 11.

 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Os padres é que sabiam!

              Já não se nota tanto, mas sempre houve a tendência, nos estudos históricos, de seguir o que o filósofo Hegel (1770-1831) defendera: a um período de análise segue-se o de síntese, o qual, por seu turno, gera novas e mais fecundas análises.

            Recorde-se, por exemplo, que, no caso da história de Portugal, Oliveira Marques ousou fazer essa síntese: História de Portugal desde os tempos mais antigos até ao governo do Sr. Marcelo CaetanoManual para uso de estudantes e outros curiosos por assuntos do passado pátrio, 2 volumes, Edições Agora, Lisboa, 1972. Foi o sucesso que se conhece, inclusive devido à inexistência, então, de manuais de síntese e de manifesta intenção didáctico-pedagógica. Na verdade, possuo também a 12ª edição, que teve (pasme-se!) uma tiragem de 10 000 exemplares, de Palas Editores, uma versão já «até à presidência do Sr. General Eanes».

            Seguiu-se-lhe o monumental Dicionário da História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, publicado entre 1963 e 1971, aqui já com a intervenção de especialistas nos vários períodos e temas. Esse esquema voltaria a ser usado, na década de 90, na Nova História de Portugal, da Editorial Presença, também dirigido por Joel Serrão; nos 8 volumes da Editorial Estampa (a partir de 1993), sob direcção de José Mattoso; e nos 15 volumes da História de Portugal: dos tempos pré-históricos aos nossos dias, do Ediclube (1998), dirigidos por João Medina. Ou seja, nestes escassos vinte anos, cinco largas sínteses, o que constitui prova de quanto se investigou logo a seguir aos primeiros anos da liberdade no nosso País!

            O testemunho mais representativo, a nível ocidental, dessa alternância análise / síntese foi, todavia, a Enciclopédia ou Dicionário Racional das Ciências, Artes e Profissões, obra publicada em França no século XVIII, por iniciativa de d’Alembert e Diderot, vasto empreendimento em 35 volumes, a que não foi alheio o terramoto de 1755. E compreende-se porquê: num período em que se preconizava o uso da Razão, de preferência às interpretações de teor religioso herdadas da Idade Média, o facto de – de um momento para o outro – quase no coração do Ocidente, inesperado e gigantesco cataclismo ter destruído uma cidade e, com ela, todo um manancial de memórias acumuladas ao longo de séculos, levou os intelectuais e os governos a porem a mão na consciência: há que salvaguardar a nossa memória!

            Bem apoiado pelos seus conselheiros e eivado, também ele, das ideias iluministas («devemos ser guiados pela luz da Razão»!...), o Marquês de Pombal enviou a todos os bispos, em 1758, um questionário sobre três questões principais a nível local: as povoações (27 perguntas), as serras (13 perguntas) e os rios (20). Subjaz, portanto, a este inquérito uma preocupação de índole histórica (centrada nas povoações) e outra de teor geográfico: as serras e os rios. Em suma, um retrato total do País! De resto, para que nada faltasse, havia, em todos os pontos, a recomendação final de que era importante acrescentar «qualquer outra coisa notável que não vá neste interrogatório». As respostas deveriam ser enviadas à Secretaria de Estado dos Negócios do Reino e caberia ao Padre Luís Cardoso a compilação dos resultados obtidos.

            Questionário enviado aos bispos porquê? – perguntar-se-á. Primeiro, por continuarem a ser autoridade respeitada; depois, porque eles o remeteriam aos seus párocos. E, na verdade, os padres é que sabiam! Eles é que estavam mais em contacto directo com a população, conheciam a palmo o território que lhes fora entregue, haviam estudado e até teriam documentação complementar no seu cartório paroquial.

            E foi assim que surgiram as chamadas Memórias Paroquiais, recolha ímpar do que se sabia até então acerca de cada uma das 4073 freguesias existentes!

            E logo o nome é significativo: memórias! Não se privilegiavam os documentos, que não muitos existiriam sobre o que se pretendia saber: que conventos, hospitais, templos, tradições religiosas, feiras, coisas antigas, personalidades notáveis, que estragos o terramoto provocara… Preferia-se o contacto com testemunhos vivos (Ai, os anciãos, aquela ‘biblioteca’ que tem de ser sempre bem aproveitada!...). E os párocos constituíam, não há dúvida, o veículo mais adequado, fiel e de confiança, para se chegar à fala com todos e se atingirem, assim, esses conhecimentos.

            Em relação ao território cascalense, temos as mui circunstanciadas respostas dadas pelo reitor da igreja matriz de Cascais, Padre Manuel Marçal da Silveira, datadas de 6 de Abril de 1758, depois de se haver informado, como explicita logo no início, «com as pessoas mais nobres, cientes e peritas desta minha freguesia de Nossa Senhora da Assunção, matriz desta antiga vila de Cascais».

            Já o cura da igreja da Ressurreição – a outra paróquia da vila – é muito menos explícito e sucinto que Marçal da Silveira e explica porquê:

            «Estas são as notícias que pude alcançar, conforme as informações que me deram, porque não sou desta terra e há poucos anos assisto nela».

            Transcreve Ferreira de Andrade, no seu Cascais Vila da Corte (p. XXVII-XXX), uma outra «sugestão» de resposta ao questionário por parte da freguesia da Ressurreição, subscrita pelo pároco Leandro dos Santos e Gusmão, que declara, no final, ter recorrido a «pessoas antigas» e a «notícias e individuações que me deram e eu tenho visto». Curioso, o termo ‘individuações’, que significa narrativas minuciosas.

            A freguesia da Ressurreição abrangia também o Estoril e, por isso, temos apenas mais três respostas ao questionário do Marquês:

            – A do cura António Coelho de Avelar, da freguesia de Nª Srª dos Remédios, Carcavelos, verdadeiramente sucinta, como que para despachar, tantos são os itens em que declara «não tenho que dizer». Veja-se, para exemplificar, a resposta à questão dos danos: «Padeceu bastante ruína no terramoto de 1755; porém, vão-se reparando»!

 

            – A do cura Joaquim Coelho da Silva, de S. Domingos de Rana, datada de 8 de Abril de 1758, que também dá a impressão de ter sido feita só por fazer, sem parágrafos. Em três penadas, a resposta ao quesito 15: «Os frutos desta terra e desta freguesia são vinhos e pão de pragana, os maiores lucros deste povo procedem da abundância de pedra de cantaria».

            – O cura de Alcabideche, Fortunato Lopes de Oliveira, também deixou itens por responder e estendeu-se mais na enumeração dos lugares e seus fogos.

            Afinal, nem tudo eles sabiam – ou preferiram não dizer!

            Contudo, quiçá não seja inoportuna uma pergunta, que tem a ver com aquele provérbio «casa roubada, trancas à porta»: o terramoto trouxe destruição em grande, muita gente morreu e o Marquês decidiu pôr trancas, para salvaguardar as memórias ainda vivas; o covid está a fazer os estragos que se conhecem – a que trancas vamos lançar mão?

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas de 2020-08-30: https://duaslinhas.pt/2020/08/os-padres-e-que-sabiam/

 

Não temos Festas do Mar!

             Evocávamos, a propósito dos toques das sirenes e do ronco cavo do Farol da Roca, os perigos a que os mareantes estão sujeitos. O súbito eclodir duma trovoada, ondulação traiçoeira e inesperada, vendaval forte que se levanta… E o pescador eleva as mãos ao Céu! Conta, sim, com os homens, com os seus camaradas de companha, todos por um e um por todos; mas conta também com os santos de sua devoção.

            Não foi, decerto, por acaso que Gregos e Romanos viram no Oceano uma divindade: Poseidon para os primeiros, Neptuno para os segundos. Ambos servidos por uma escolta de mui suaves ninfas, capazes de acarinhar no seu seio o mareante mais desconsolado e receoso. Tinha uma centelha divina essa vastidão de água sempre em movimento, doutra forma não podia ser!

            Proverbial, pois, a devoção dos pescadores.

            Significativo exemplo será a tábua de milagre que se mostra no Museu do Mar D. Carlos I, em Cascais. Chama-se «tábua de milagre» a uma ingénua gravura pintada em madeira, que conta o milagre feito por um ente sobrenatural, numa circunstância trágica cuja narração figura como legenda. A do Museu do Mar reza assim:

ANO DE 1683

Nossa Senhora dos NAVEGANTES ≈ EX-VOTO ≈ DE SIMÕES FARIA

POR SE TER SALVO DE GRANDE TORMENTA ÁS VISTAS DE CASCAES E

COM HOMENS A SALVO. PROSTADO AGRADEÇE Nossa S.dos NAVEGANTES. P.N.A.M. 

            Lá está a Senhora, coroada e aureolada, seu manto protector, na mão esquerda uma caravela e, na direita, a fateixa da esperança e da salvação. O barco, uma nau, que seria, na altura, o símbolo corrente de uma embarcação a que se quer bem e não, decerto, o barco capitaneado pelo pescador Simões Faria.

            Há, na vila cascalense, uma igreja da invocação da Senhora dos Navegantes e uma ermida, votada a Nossa Senhora do Porto Seguro, a que também se dedicaram ex-votos. Recordar-se-á ainda que pertenceu à irmandade dos pescadores a oferta dos notáveis painéis de azulejo azul com cenas das Sagradas Escrituras, que cobrem três das paredes da sacristia da igreja matriz, conforme legenda por sobre a porta que dá para a sala do despacho: ESTA OBRA MANDARAM FAZER À SVA CVSTA OS IRMÃOS PESCADORES NA ERA DE 1720.

            Havia em Cascais duas paróquias: a da Ressurreição e a da Assunção. A matriz da Ressurreição, sita onde hoje está o Largo da Estação, sucumbiu com o terramoto de 1755. Houve intenção de a reedificar, mas a concretização falhou, por falta de apoios. Existe, porém, no Museu do Carmo, da Associação dos Arqueólogos Portugueses, em Lisboa, uma lápide onde foi gravada uma frase em verso que celebra «o zelo e a devoção», o gosto e o «primor cortês» com que os «marítimos praticantes» cascalenses lograram fazer ‘ressuscitar’ o templo que era da Ressurreição. E assim termina a décima:

«Nos templos de Deus maiores / Foram pedra os pescadores / Colunas os navegantes».

            Poderia entender-se que os pescadores haviam contribuído com a pedra e os armadores com as colunas; não passa, porém, de figura poética, a realçar a importância que todos os marítimos tinham nestas obras da religião.

A devoção havia, pois, que publicamente se manifestar. E as Festas do Mar – este ano suspensas devido à pandemia – vêm ao encontro dessa necessidade; eco, sem dúvida, de outra romaria mais antiga, ligada à Senhora da Guia, que se realizou até aos anos 50.

Conta-se que, no século XVI, por ocasião de uma peste, em Lisboa, os vereadores da cidade fizeram a promessa: que, se a Senhora da Guia da peste os livrasse, viriam até ao local onde a Senhora aparecera, para a venerar e lhe trazer oferendas. Assim foi. Todos os anos, primeiro a pé e depois em barcos, ali vinham, em festa, cumprir o prometido.

Em 1965, o capitão-tenente António Cardoso, de mui saudosa memória, promoveu a Festa dos Pescadores: no ano seguinte, foi Festa do Mar, juntando-se à iniciativa da Capitania a Câmara Municipal, a Junta de Turismo e a Casa dos Pescadores. Em 1968, coube ao jornal «A Nossa Terra» a promoção da Festa do Pescador, em Setembro, que viria a repetir em Julho de 1970. Retomar-se-á essa tradição apenas a 5 de Julho de 1992, com as características que hoje assumiu – qual festa principal da vila, como a dos Tabuleiros em Tomar, a Feira da Serra em S. Brás de Alportel, a da Senhora da Agonia em Viana do Castelo, a Feira de S. Mateus em Viseu…

É momento maior a procissão, no último dia dos festejos.

Nela se incorporam todos os andores da vila, aos ombros de personalidades da terra. O ponto alto: o trecho passado no mar. Os andores embarcam na Praia dos Pescadores em traineiras enfeitadas, pescadores e peixeiras envergam seus trajes típicos, e eles aí vão, serenos, em direcção à Guia. Diante do farol e da capela lançam mui devotos ramos de flores ao mar – em demanda de protecção para as fainas piscatórias anuais e em recordação, também, da festa antiga. E regressam. Desembarcados, os santos são, novamente, devolvidos, em procissão, aos respectivos lugares nos templos da vila, onde, ao longo do ano, aguardarão, pacientes, que os fiéis os voltem a invocar!

                                               José d’Encarnação

Publicado, a 20-08-2020 em Duas Linhas: https://duaslinhas.pt/2020/08/nao-temos-festas-do-mar/

 

terça-feira, 1 de setembro de 2020

O que ela estrebuchava!

            Permita-se-me que complemente a crónica anterior, de evocação dos anos 50.

            Hoje, respeito e até acho graça à família de osgas que há anos se domiciliou na minha garagem e por lá tem feito criação. Vejo-as de vez em quando, elas olham para mim com ar entre desconfiado e sereno. Ontem, uma das mais pequenitas teve de se esgueirar à pressa, porque eu a não vi ao regar.

           Anteontem, a Filipa chamou-me de mansinho. Queria mostrar-me, soube-o depois, a sua lagartixa de estimação, que, diariamente, pela manhã, vinha comer o pedacinho de queijo que ela lhe punha num canto da entrada do salão de cabeleireiro.

            Voltámos, pois, a uma convivência normal com estas bichezas, na medida em que cabalmente compreendemos a sua missão no seio da biodiversidade. Até sou capaz de me levantar da secretária para ir abria a janela á mosca atarantada; será, porventura, bom alimento para outro bicho qualquer; esmagando-a, eu nada ganharia!...

            Não era assim nos anos 50. Lagartixa ou osga constituíam desafio de caçador. Colhia-se um pé de palanco. Limpava-se com cuidado a parte mais fina e ajeitava-se em forma de laço corrido. Ficava um laço fininho, a lembrar em miniatura o dos cowboys; aqui, todavia, não era para apanhar potro selvagem, mas, sorrateiramente, a lagartixa adormecida ao sol. Enfiava-se-lho devagarinho pela cabeça e, quando lhe chegava ao pescoço, ou puxávamos ou era a própria lagartixa a querer esquivar-se. Boa caçada, para regozijo nosso de heróis.

            Um pormenor me chamava sempre a atenção e hoje compreendo o seu enorme significado. Ao sentir-se em perigo, a lagartixa soltava, por vezes, a cauda, que ficava a rabear e ela… escapulia-se! O agressor… distraía-se!

            E dei comigo a pensar nas muitas caudas a rabear no dia-a-dia, a fim de o mais importante se poder escapar sem dar nas vistas!...

                                               José d’Encarnação

             Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 782, 01-09-2020, p. 11.