Desde sempre o Homem soube exprimir os seus medos, aspirações e dúvidas. E os episódios da mitologia grega, de que tanto somos devedores, mantêm actualidade flagrante.
Considerei o mito da espada de Dâmocles. Bajulador do poder de Dionísio de Siracusa, foi por este posto no seu lugar, com todas as regalias: boa mesa, luxo abundante, esbeltas e sedutoras garotas… Havia, porém, um senão imposto pelo monarca: presa apenas pela cerda de um rabo de cavalo, ficava pendente sobre a sua cabeça mui afiada espada …
E Dâmocles depressa saiu de cena, por não se conseguir manter sob essa permanente ameaça de morte!
Joana já começara no esquema do teletrabalho antes da pandemia, porque seu filhote pequeno contraíra uma daquelas doenças estranhas que deixam os médicos perplexos, sem saberem que fazer. As plaquetas sanguíneas haviam diminuído assustadoramente e o menino carecia de vigilância permanente. Amiúde, as consultas eram feitas pelo telefone. Uma das vezes, o médico fez o relato habitual, deu as indicações precisas e terminou, em voz enigmática:
– Depois falamos!
Passaram já largas semanas. O «depois» é só em Outubro. Até lá, Joana pensa amiúde:
– Que quererá ele dizer-me? Será que meu filhote não vai ter cura?…
Era escusada, de facto, esta tormentosa espada de Dâmocles. Assim não, doutor! Se havia algo a dizer, dizia; se não, calava-se e esperava pela oportunidade.
E dei comigo a pensar nas espadas de Dâmocles que tão amiúde deixamos pendurar sobre as nossas e alheias cabeças!...
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 783, 15-09-2020, p. 11.
Dâmocles podia renunciar aos privilégios e evitar a espada...Abraracourcix tinha o escudo para se proteger...mas os filhos de Joanas como esta, outras mães iguais e pais atingidos pela doença ou outros azares na vida, não têm como evitar o temor da espada que pende, afiada. Bonito texto que nos faz pensar no privilégio que é ter casa, comida, saúde.
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