quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Ora, bora lá ao passeio!...

              Reconheço que estava bem longe de imaginar quão salutares me seriam os passeios diários a que o meu cão me leva!

            Primeiro, espaço para meditação! Pela manhã, ainda não há movimento, pode programar-se o dia, reflectir sobre a melhor forma de resolver esta ou aquela questão, agradecer a brisa fresca e o ar lavado do pinhal vizinho… De tarde, na hora de assistir ao regresso a casa, a reflexão é mais sobre o que se observa, o rosto dos condutores, as conversas que fazem pelo alta-voz, um sobrolho carregado aqui, um raro sorriso além.

            Não se pode, porém, perder de vista a função para que fomos chamados: cuidar do cão, mormente quando há outro por perto e urge segurar bem a trela e na altura de se programar a travessia na passadeira. De um modo geral, os condutores param, atenciosos, e eu agradeço a atenção, num cerimonioso sorriso, habitualmente correspondido.

            Há aspectos de que eu nunca me apercebera. A senhora, porventura na casa dos 70, que sai sozinha para um passeio e vai de olhos no chão, não se apercebendo de quem está perto ou mesmo com ela se cruza. Outro dia, parei a ver o que acontecia; eu estava a escassos quatro metros com o cão; a senhora nem nos viu; puxou da chave de casa e entrou. Pensei: nunca lhe terão dito da necessidade de atenção?

            O mais interessante é ver a reacção quando saúdo. Gosto de dizer “bom dia!” a quem se cruza comigo e nos olha. Sim, boa parte nem nos olha! Se lhe perguntares com quem se cruzou, não terá certamente a menor ideia! Às vezes, respondem à saudação; mais frequentemente não e olham para mim com ar de «que é que este agora quer?». Não quero nada, só desejar os bons dias! E quando o jovem está completamente absorto, mesmo na passadeira, a digitar nervosamente no ecrã do telemóvel? O que vale é que os condutores já contam com isso!

            Custa-me ver os transeuntes sem apreciarem a paisagem, sem olharem – com a natural discrição, claro! – para as pessoas com quem se cruzam. Uma distracção pegada que se pode observar quando interpelas alguém e perguntas pelo nome de uma rua. Pode até ser a rua em que estás! E o interpelado raramente sabe. É capaz de passar por ali todos os dias, mais do que uma vez, mas nunca se perguntou como é que a rua se chamava.

            Há dias, no concurso televisivo Joker, perguntava-se quando se comemorava a Assunção de Nossa Senhora e davam-se quatro datas: 1 de Janeiro, 1 de Maio, 1º de Novembro e 15 de Agosto. O concorrente não acertou – e eu perguntei-me onde é que ele estaria a viver!

            Por isso me custa a desatenção a que diariamente assisto. Não vou já ao extremo daquele jovem que se oferecera para dog walker – passeador de cães – e que deixou o canito ser atropelado, porque passou o tempo todo a olhar para o telemóvel! Também não refiro aquela rua que não tem uma centena de metros e onde há dois dispensadores de sacos para detritos e os passeios «cuidado, Amigo, que há detrito aí!», metro sim, metro sim…

            E as caixas de correio? Quantas rebentadas e atafulhadas, a denunciarem desabitação?! Muitas, são muitas mesmo! E, na actual conjuntura, ainda custa mais ver! Oh! Se custa!

                                                                       J. d’E.

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 326, 2020-09-26, p. 6.

A intenção foi boa: uma rega automática manteria o relvado... 


 

           

 

2 comentários:

  1. Conheço a simpatia e a facilidade de comunicação do ilustre autor deste bonito texto e estou a imaginá-lo a segurar a trela do canito por causa dos outros cães e dos automóveis, ao mesmo tempo que saúda simpáticos (em menor número)e façanhudos (aos montes). E nem me espantaria que um dia destes "convertesse" os desatentos para que olhassem a paisagem, ou fizesse levantar a cabeça da vizinha para, pelo menos, lhe dizer que é perigoso caminhar de olhos no chão, sem ver o que a rodeia...Diverti-me muito a ler a pequena crónica cheia de colorido. Afinal, também eu alinhei no passeio.

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