quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A paisagem são-brasense – Património a acarinhar!

                Extasiava-me, do pátio de trás da casa de minha avó, no Cerrito, a olhar para a banda dos Vilarinhos e a espraiar a vista desde a Gralheira ao Malhão, quedando-me, em prece, no vulto da igreja de S. Romão.

            Embevecia-me aquele sereno verde imenso, de mui variegadas tonalidades, pontilhado do branco alvacento das casas.
            Pelo final da tarde, os dois moinhos da Fonte da Murta – o de pura farinha e o de rolão – recortavam-se, altaneiros, no céu alaranjado ao sol-pôr, como num conto de fadas. Aí, nesse noroeste, se encontram com S. Brás os concelhos de Loulé e Faro. Um êxtase a qualquer hora do dia.
              E assim via a minha terra.
            E assim a considerava berço de poetas, como os que, nos últimos tempos, eu leio na página inteira que o Notícias de S. Braz lhes dedica, abraço ímpar no quadro dos jornais portugueses. Era nessa paisagem, dizia eu com os meus botões, que se bebia inspiração, que decerto encantara o Aleixo e até obrigava meu pai a falar-me em rimas de vez em quando.
            Por conseguinte, esse era o tema: a paisagem são-brasense como património a salvaguardar.       Eis senão quando abro o Guia de Portugal. Busco as páginas em que se poderia falar de S. Brás. E pasmo. Afinal, sempre fora assim! O que, do alto da casa de minha avó, no Corotelo, sempre fizera os meus encantos, também já outros enfeitiçara também. Senti de novo o olor acre e bom das flores de alfarrobeira, a cativar abelhas; deliciei-me com a beleza do farto candeio cinza numa promessa de boa azeitona arretalhada. E não resisti. Mudei o tema. Vou partilhar emoções.
            No Guia de Portugal, esse primeiro repositório das belezas do País, publicado pela Biblioteca Nacional de Lisboa em 1927, há, no volume II, sobre «O que se ver no Algarve», esta frase, de Raul Proença:

            «É preciso conhecer as vilas, as aldeias, os campos, a serra, o mar (no Barlavento), para sentir e amar o Algarve como ele deve ser sentido e amado – como um dos mais lindos, originais e sugestivos rincões da terra portuguesa. O que há, pois, a ver e admirar nesta província são sobretudo os aspectos inconfundíveis da sua paisagem e os traços pitorescos da sua vida regional» (p. 210).

            Sedutora, a descrição da viagem a partir de Barranco do Velho:

         «A estrada para S. Brás continua com belos pontos de vista para a direita, num solo extremamente movimentado. Aparecem as primeiras figueiras. O caminho coleia. Os outeiros da esquerda lembram jardins em terraços. As ondulações do terreno, as sucessivas quebradas da montanha, os vales cultivados, a vegetação mais exuberante, as massas verdes dos pinheiros tomando as encostas, tornam o panorama encantador. Vê-se já Alportel, mais além o Farrobo sobre um outeiro e, de repente, numa brusca transição, entramos no jardim algarvio, o Chenchir dos Árabes. A mutação não pode ser mais completa. Desaparecem o mar de montanhas, os pinheirais ondeantes, os sobreiros, as colinas doces e boleadas. Deixámos a região do xisto, entramos na dos calcários. É o Algarve propriamente dito que começa, com as suas árvores baixinhas, as suas casas brancas, as suas chaminés mouriscas e os seus pequeninos campos divididos por piteiras. Transpusemos 200 a 300 m., e parece que entramos em outro mundo» (p. 216).

            Depois de se ter falado de Loulé, ruma-se a S. Brás de Alportel «por uma estrada pitoresca, uma das mais animadas do Algarve. Belas vistas à direita para a campina cheia de casais e de arvoredo e para a linha de cerros que nos separa do mar» (p. 230).

            Confesso que tive de ler duas vezes, por não querer acreditar no que, a determinado momento, vi escrito. É que se explica que de S. Brás se pode «regressar a Faro por um caminho mais longo mas mais pitoresco» e, ao chegar a S. Romão de Vilarinha [sic], «começa a trepar-se uma colina até subir a meia encosta o monte do Corotelo, numa deliciosa varanda sobre os outeiros e os campos circundantes. Poucas vezes se tem ocasião de apreciar no Algarve panorama tão colorido e gracioso. Esse panorama ainda aumenta de amplidão se, fazendo uma pequena pagarem no Corotelo, nos tentarmos a subir por uma íngreme vereda à assentada em que se erguem os moinhos da Fonte da Mural [sic]. Para o S. estende-se o mar num circuito de muitas milhas, desde as paragens de Tavira e Albufeira. Para o N. é um verdadeiro rosário de aldeias, que fecha ao longe na massa compacta de S. Brás, enquanto no horizonte se arredondam duas cadeias de cerros dispostos em anfiteatro desenhando um largo quadro de estilo rocaille, que seria inteiramente belo e amável se não tão desnudos de vegetação esses cerros calcinados. Nas alturas dezenas de moinhos, ao vento propício, rodam continuamente a sua cruz de Cristo…» (p. 243).

            Voltei atrás, à página 242, porque aí se destacava, a negro, S. Brás de Alportel. Começa-se por explicar que tem 10 961 habitantes e que era «ainda há pouco tempo a mais populosa aldeia do País». Ora toma! Referem-se as «fábricas de moagem a vapor, rolhas, velas e fogos de artifício; indústria caseira de capachos e golpelhas e outros artigos de palma».
            Assustei-me com o que li a seguir o que se escrevera – «não tem o menor interesse artístico ou monumental» –, mas logo recuperei do susto, pois de imediato se acrescenta que «fica situada numa das mais encantadoras regiões do Algarve, quase na transição do barrocal para a zona montanhosa». Por isso, «de qualquer das açoteias da vilória a vista se perde sobre uma nesga de terra intensamente agricultada, coberta de alfarrobeiras e amendoeiras». «A certas horas do dia», conclui Raul Proença, «isto atinge o deslumbramento».

ooo

            Fechei devagarinho o livro de capa verde com o grande escudo dourado de Portugal ao centro.
            Fiquei a saborear o que lera.
          Sonhei que vão despertar vontades para não se deixarem cair tradicionais telhados de canas, em casas por habitar; para, em comunidade, se acolherem as amêndoas, os figos, as alfarrobas, a azeitona grada e boa que vão ficando nas árvores por não haver quem os acolha; para, em suma, se acarinhar, qual inigualável brinde da Natureza, esta nossa paisagem que urge salvaguardar.

                                                                                   José d’Encarnação

Publicado em SBA Revista de Cultura, 1, Outono de 2020, p. 6-8.

 

 

domingo, 27 de dezembro de 2020

Os são-brasenses e as letras

                Na p. 2 da São Brás Acontece de Novembro, sugere-se a leitura do «livro de poesia “Letras da minha Alma” da autoria da são-brasense Eleutéria Pires» e esclarece-se que «família, saudade e memórias de infância são temas em destaque nesta obra». Memórias que, mês após mês, colaboradores do Notícias de S. Braz não deixam de evocar.

               Na página da autarquia, vejo que, na Gala de Prémios da Juventude («Jovens de Mérito são Valores de Futuro»), a 28 de Novembro, foi premiada Margarida Brito, de  19 anos, que, no concurso “A mais bela carta de Amor”, alcançou o 1º lugar, por três anos seguidos. Uma jovem que «lê os livros antes da sua data de lançamento e manifesta a sua opinião crítica que, depois, é publicada pelas próprias editoras, contribuindo para a promoção dessas obras». «Um dos seus sonhos e projetos de futuro será poder também, um dia, ver um livro seu publicado».

            Acabo de ver no Facebook, na página de Vítor Barros, a reprodução da capa do seu recente livro Viva a Vida e uma síntese do conteúdo:
       «Viva a Vida é uma compilação de textos, divagações, crónicas, memórias e histórias, muitos deles já publicados nos jornais da minha terra e outros e que fui escrevendo ao longo dos anos e que são revelados neste livro pela primeira vez. Muitos desses textos constituem histórias reais…outros pura ficção! Alguns não serão nem uma coisa nem outra. Serão puras divagações, meras alucinações!».
         Conclui que esta «exclamação de alegria» é também um conselho e uma ordem para todos: VIVAM A VIDA… Um eco, porventura, do livro de António Feio, «Aproveitem a Vida!».
          Acolhemos a recomendação, Amigo Vítor! Que é a dos muitos poetas que connosco partilham as páginas do Notícias de S. Braz, todos eles empenhados em que olhemos com olhos de ver a realidade que se vive. E essa, envolta no manto da Poesia e das Letras, fazendo nossas as sugestões de Bernardo de Passos e do Aleixo (ele é de Loulé, mas são-brasense também…). Que, na realidade, a Beleza deve transformar as nossas vidas; e a preservação da nossa identidade constitui dever de todos nós!

                                                           José d’Encarnação

             
Publicado em
Notícias de S. Braz, nº 289, 20-12-2020, p. 17.

 

 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

E as palavras vão sumindo…

             Estava à minha frente, a pagar na Cozinha com Alma, em tempo de pré-pandemia.  Uma daquelas senhoras jovens que a gente dá graças a Deus por as ter criado assim elegantes, que dá gosto ver. Conhecia-a e, por isso, não tive receio em meter conversa. Não correria riscos de ser mal interpretado. É que, nessa manhã de Verão, eu fixei mais atentamente o olhar num dos braços da Sara e não hesitei em perguntar-lhe, enquanto D. Estela lhe fazia a conta:
            – E o que é isso que a menina tem no braço?
            Hesitou em responder-me, recebeu o talão do pagamento e explicou:
            – Uma sentença védica!
           Traduziu-ma em linguagem de gente, já não recordo o que era, mas gostei, achei piada e agradeci.
            Do Oriente, admiro a maneira de eles escreverem. Que diabo é que passou pela cabeça dos seus antepassados para, em vez de terem adoptado o alfabeto inventado pelos Fenícios, continuarem nessa de fazer risquinhos e mais risquinhos que a gente nunca sabe se são letras, se sílabas, se palavras. E eles escrevem cá com uma velocidade!... Os Fenícios deviam ter conquistado o Oriente e imposto o alfabeto, é o que eu digo!
            Alembrei-me logo dos hieróglifos egípcios que o Champollion lá conseguiu decifrar por se ter encontrado a Pedra de Roseta. Aquilo também devia ser cá uma assombração, porque misturavam tudo, figuras e traços geométricos. E dei comigo também, em Maio de 2005, no Pérgamon de Berlim, a sorrateiramente acariciar o dorso de um daqueles baixos-relevos de leão alado com cabeça de homem soberano, a perscrutar toda a superfície restante pejada de bem estranhos caracteres cuneiformes…
Jurei, pois, fidelidade ao alfabeto fenício, muito mais terra-a-terra, até porque, mesmo com siglas e abreviaturas, as minhas inscrições latinas acabam por ser mais fáceis de decifrar.
Eis senão quando surgem os emojis! E não há mensagem que os não tenha, porque escrever dá muito trabalho, podem fazer-se erros!... E, assim, as palavras vão sumindo! Ele são corações bem vermelhos e de todos os tamanhos, um, dois, quatro, muitos (amor em torrentes infindas será?);  mãos postas (uma oração?); guindastes (queres vir trabalhar prás obras?); palmeiras em ilhas desertas, porventura a sugerir quanto me agradaria estar contigo em tão aliciante cenário!… Um dia, hei-de tirar o curso.

                                                           José d’Encarnação

        Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 329, 2020-11-16, p. 8.


Escrita cuneiforme, no museu Pérgamon, de Berlim.