Segundo reza a
Bíblia, viveu o patriarca Matusalém 969 anos nesta terra. Exemplo maior e único
de longevidade e se, hoje, ninguém aspira a ser tão idoso, certo é que não
serão assim tão raros os que pensam poder chegar aos 100, «desde que com a
cabecinha no sítio», amiúde se acrescenta e compreende-se porquê.
Até não há muito,
raros eram – e dignos de grande festa – os centésimos aniversários, com direito
a fotografia no jornal local e a refeição comemorativa com a grande família
derredor ou mesmo na aldeia. Recorda-se que foi admiração Manoel de Oliveira
ter ultrapassado essa marca e se haverem escrito crónicas a confirmar ser a
actividade física e mental a grande fomentadora da possibilidade de uma idade avançada.
Contraria-se,
assim, aquela perspectiva «reforma = igual a tempo para nada fazer». Lembro que
um amigo meu me explicara que outro amigo comum e colega nestas lides da
docência universitária «estava na cama».
– Na cama? Doente,
não? – perguntei.
– Ouviste bem: ele
está «na cama» e não «de cama»!
– Como assim?
–
Acha que já fez muito na vida e, agora, outros que façam! Ele fica na cama!...
Desatámos
a rir com a facécia, e ainda que soubéssemos não ser facécia mesmo. E o meu
colega foi permanecendo na cama até que outro repouso, o eterno, lhe foi
proporcionado.
ooo
Dois
motivos me levaram a redigir esta crónica.
O primeiro aí
está: o de já estar a ser mais corrente a ultrapassagem do centenário; do
segundo, ligado a Cascais, já se dirá em seguida.
Em S. Brás de
Alportel, como pode ler-se na agenda cultural cuja capa se reproduz,
celebrou-se no domingo 25 de Outubro a Festa dos Centenários, através das redes
sociais do Município. Nas páginas 16 e 17 da agenda (uma das poucas que teima
em manter-se no papel!) está o «Dossiê Sénior», a fornecer de cada um dos sete
«com 100 ou mais anos completados até março de 2020» (a festa fora planeada
para esse mês…) os dados biográficos mais salientes: actividades desenvolvidas
e descendência que tem. São eles: Maria Natália, nascida a 25 de Dezembro de
1919; Porfírio Lopes Dias, nascido a 1 de Junho de 1919; Maria Adélia, nascida
a 3 de Junho de 1919; Selerinda Maria, nascida a 5 de Março de 1919; Maria de
Sousa, nascida a 17 de Setembro de 1917; Joaquim Varela, nascido a 13 de Maio
de 1915 e Maria da Conceição, que é a que está na capa e que, entretanto já
faleceu, nascera a 22 de Dezembro de 1912!
O segundo motivo
evoca o que já aqui se disse acerca do elogio feito a Cascais por Frei Nicolau
de Oliveira no seu, Livro das Grandezas de Lisboa publicado em 1620:
«E assim é a mais
sadia terra que se sabe em Portugal e em que os homens mais vivem e mais sãos e
donde de todo está desterrado um mal que a tantos consume a vida, que é a
malenconia» (fol. 78 verso).
Vem, de seguida, o
elogio às virtudes terapêuticas das suas águas, o que também se prende com a
longevidade. Não se insiste hoje tanto que os idosos (e não só!...) bebam água?
Não se proclama que emanam das águas poderes sobrenaturais? Quem se não
lembrará daquela telenovela brasileira que fez as nossas delícias, em que o
médico praticamente para todas as maleitas mandava beber água de determinada
fonte? E ainda hoje, quando abrem ao público as vulgarmente chamadas «Termas
Romanas da Rua da Prata», não há quem se muna de garrafões para de lá trazer
água milagrosa?!...
Ora o Padre Marçal da Silveira, prior da
Assunção, ao responder, em 1758, ao 22º quesito ordenado pelo Marquês de Pombal
«se tem alguns privilégios, antiguidades ou outras coisas dignas de memória»,
depois de esclarecer que, no século XVII, no grande incêndio que lavrara nas casas
do Senado, todo o arquivo ardera assim como «todos os seus papéis de maior
porte», declara, não sem alguma solenidade:
«As coisas mais dignas
de memória é [sic] viver aqui a gente de idades mui avantajadas e com boa
saúde».
E põe de enfiada,
«para além do ermitão de Santa Marta que, já se disse, morrera de 120 anos», os
seguintes:
– Roque Fernandes,
o «Borgeis», que faleceu a 28 de Maio de 1597, com 117 anos de idade, segundo
consta a folhas 164, do Livro 2º dos Defuntos;
– Catarina Luís, a
«Negrela», com 108;
– Garcia Afonso,
falecido a 5 de Setembro de 1580, o qual viu, em seus dias, vivos, filhos,
netos, bisnetos e terceiros netos, a 4ª geração (Tomo I dos Óbitos, fol.
231);
– Brícia Álvares,
com 120, falecida em 17 de Maio de 1608;
– Brites Álvares,
a «Estorninha», de 113 para 114 anos;
– Brízida Ribeira,
com 118, falecida em 18 de Maio de 1626 e seu pai, de 115 (tomo 3º do livro da
freguesia, folhas 131);
– no ano de 1651,
Maria Lopes, a «Mata Sete», com 105 anos;
– e, no século
XVI, cinco homens com mais de 100 anos e sete mulheres de outros tantos mais.
(Não sei o que
significaria a alcunha Borgeis; negrela e estorninha são pássaros e as alcunhas
aludiriam, pois, ao seu aspecto físico ou modo de andar).
Naturalmente, Ferreira
de Andrade faz-se eco, em 1964, no seu Cascais – Vila da Corte (p. 139)
desse auspicioso elenco; assegura ter ouvido dizer em pequeno que a pneumónica
não matara ninguém no Linhó; e não hesita em atribuir toda essa longevidade à
excelência do clima, «varrido pelos ventos da Serra e purificado pela
proximidade do Oceano», detendo-se, nas p. 140-146, a falar das propriedades das
suas águas, não sem, antes, ter ir buscar ao livro de Borges Barruncho (Apontamentos
para a História da Villa e Concelho de Cascais, 1873, p. 64), a informação
de que, entre 1868 e 1872, haviam sido nada menos do que 52 as pessoas aqui falecidas
entre os 70 e os 80 anos, 19 entre os 80 e os 90, 8 dos 90 aos 100; e uma
senhora que já era centenária «há muito tempo», pois na tabela figura na coluna
dos 100 aos 110!... E também Borges Barruncho não hesita (p. 65):
«As águas potáveis
são excelentes».
E pronto. Por aqui
nos ficamos – não sem mui secreta esperança de que, «com a cabecinha no sítio»!
– também nós, um dia, possamos engrossar esse tão auspicioso rol!
José d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, a 24 de Novembro de 2020: https://duaslinhas.pt/2020/11/a-longevidade-esta-em-cascais/
No dia 26 de Novembro comentei este texto no espaço do Duas Linhas. Não vou repetir-me, a não ser para agradecer estes artigos em que tanto aprendo, aqui não foi excepção, e para dizer que, além de São Brás de Alportel, em Cascais também não estamos mal. Seria interessante pesquisar quantos indivíduos com cem anos ainda vivem no concelho. Muito grata pelo texto.
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