quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

E as palavras vão sumindo…

             Estava à minha frente, a pagar na Cozinha com Alma, em tempo de pré-pandemia.  Uma daquelas senhoras jovens que a gente dá graças a Deus por as ter criado assim elegantes, que dá gosto ver. Conhecia-a e, por isso, não tive receio em meter conversa. Não correria riscos de ser mal interpretado. É que, nessa manhã de Verão, eu fixei mais atentamente o olhar num dos braços da Sara e não hesitei em perguntar-lhe, enquanto D. Estela lhe fazia a conta:
            – E o que é isso que a menina tem no braço?
            Hesitou em responder-me, recebeu o talão do pagamento e explicou:
            – Uma sentença védica!
           Traduziu-ma em linguagem de gente, já não recordo o que era, mas gostei, achei piada e agradeci.
            Do Oriente, admiro a maneira de eles escreverem. Que diabo é que passou pela cabeça dos seus antepassados para, em vez de terem adoptado o alfabeto inventado pelos Fenícios, continuarem nessa de fazer risquinhos e mais risquinhos que a gente nunca sabe se são letras, se sílabas, se palavras. E eles escrevem cá com uma velocidade!... Os Fenícios deviam ter conquistado o Oriente e imposto o alfabeto, é o que eu digo!
            Alembrei-me logo dos hieróglifos egípcios que o Champollion lá conseguiu decifrar por se ter encontrado a Pedra de Roseta. Aquilo também devia ser cá uma assombração, porque misturavam tudo, figuras e traços geométricos. E dei comigo também, em Maio de 2005, no Pérgamon de Berlim, a sorrateiramente acariciar o dorso de um daqueles baixos-relevos de leão alado com cabeça de homem soberano, a perscrutar toda a superfície restante pejada de bem estranhos caracteres cuneiformes…
Jurei, pois, fidelidade ao alfabeto fenício, muito mais terra-a-terra, até porque, mesmo com siglas e abreviaturas, as minhas inscrições latinas acabam por ser mais fáceis de decifrar.
Eis senão quando surgem os emojis! E não há mensagem que os não tenha, porque escrever dá muito trabalho, podem fazer-se erros!... E, assim, as palavras vão sumindo! Ele são corações bem vermelhos e de todos os tamanhos, um, dois, quatro, muitos (amor em torrentes infindas será?);  mãos postas (uma oração?); guindastes (queres vir trabalhar prás obras?); palmeiras em ilhas desertas, porventura a sugerir quanto me agradaria estar contigo em tão aliciante cenário!… Um dia, hei-de tirar o curso.

                                                           José d’Encarnação

        Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 329, 2020-11-16, p. 8.


Escrita cuneiforme, no museu Pérgamon, de Berlim.



 

 

4 comentários:

  1. Vale sempre a pena das crónicas do professor José D'Encarnação.Aprende-e semprealguma coisa!
    Bem hajas!
    Victor Brito

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  2. Vitor Barros
    Viva! E lá fui pesquisar o que era isso de védica...
    Quanto a esses bonecos que substituem as palavras, que me perdoem, nunca os utilizo e tenho dificuldade em entendê-los até!
    Abraço

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  3. Felizmente que estas peças foram para Berlim (roubadas, dizem agora). Se tivessem ficado no Iraque?

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