sábado, 31 de dezembro de 2016

Serviço cívico

             Ainda ecoavam os brados revolucionários quando o Decreto-Lei N.° 270/75, de 30 de Maio estipulou a obrigatoriedade do Serviço Cívico Estudantil.
            «Uma chatice» terão pensado muitos, os candidatos e os pais. Hoje, quiçá, muitos deles, evocando esse ano, hão-de empreender: afinal, nem foi má de todo a experiência!
            De vez em quando sabe-se: determinado juiz condenou o réu a um período de «serviço cívico», adjudicando-lhe uma tarefa precisa. Claro, com tal sinete de castigo, parecerá penosa a tarefa; se, ao invés, o réu a encarar como «serviço», daí sairá enrijecido.
            Perguntar-se-á: a que propósito vem ele com essa história agora?
            E eu pergunto também, antes de responder: o português, quando emigra, não se sujeita a todo o trabalho? Quantos dos nossos estudantes em Londres não lavam pratos em restaurantes ou não servem à mesa para se conseguirem manter? E, para além da paga, não há toda uma experiência que se adquire?
            Minha empregada doméstica ofereceu-me, outro dia, um punhado de biscoitos negros. Saborosos mesmo. De quê? – De alfarroba!
            Pois aqui está a resposta para a questão do serviço cívico: figos, amêndoas, alfarrobas, azeitonas… constituem riquezas são-brasenses. E quantas são verdadeiramente aproveitadas, colhidas na devida época? Velhos e decrépitos estão muitos dos proprietários e lamentam-se de verem tudo a perder.
            Respondo, pois, perguntando: hoje, que tanto se fala em empreendedorismo, não há aí quem meta mãos à obra e crie um empreendedor serviço público que revitalize a nossa riqueza?

                                                               José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 241, 20-12-2016, p. 17.

 

sábado, 24 de dezembro de 2016

É triste!

           No passado dia 21, pouco antes das 15 horas, um carro da Polícia Municipal de Cascais estaciona na rotunda junto ao Centro Cultural e os agentes dirigem-se para junto de um carro de serviço da Câmara Municipal de Cascais, devidamente identificado, estacionado no passeio junto à muralha da Cidadela. Uma outra força policial – porventura a PSP – procedera ao bloqueio da roda dianteira esquerda, dado que o veículo se encontrava em manifesta infracção.
            Vi que um dos agentes pegou no telemóvel e fez uma chamada e ficaram todos calmamente à espera (penso) que alguém da entidade bloqueadora chegasse.
Foto tirada no passado dia 21, às 14 h 50 m e 17 s.
Tanto o agente que telefonava como um outro senhor procuraram
que a objectiva não apanhasse o bloqueador, que, porém, se vê perfeitamente.
            Quando passei, comentei em voz alta – confesso que um pouco desabridamente – o insólito caso de o membro de uma entidade policial, para quem, por sinal, o Município tem procurado obter melhores instalações e mais confortáveis condições de serviço, ter tido aquela actuação, partindo nós do princípio de que o funcionário camarário ali deixara a viatura por instantes, a fim de, em serviço, ir ao vizinho Centro Cultural ou, até, ao Parque Marechal Carmona, onde, nesse dia, funcionava a Aldeia de Natal e todos os lugares de estacionamento em redor estavam, por isso, ocupados. Queriam os agentes da PSP castigar o funcionário delinquente? Optavam, naturalmente, pensei eu, por multar, deixar papelinho e o funcionário que se amanhasse depois com os seus superiores. Não: a opção escolhida foi o bloqueio! Não sais daqui sem eu vir!
            Está a PSP no seu pleno direito. Agiu o agente conforme a consciência lhe ditou, certo de que estava a cumprir rigorosamente a sua obrigação. Há que lhe atribuir um louvor? O leitor que opine, se assim o entender, porque daí lavo eu as minhas mãos, desde o dia em que comecei a ouvir histórias dessas e se intensificaram os ataques suicidas na Síria, na Alemanha, em França e em tantas outras partes do mundo; e desde o dia em que, frente à entrada da Academia das Ciências de Lisboa, vi também bloqueado pela EMEL o carro do vice-presidente da Câmara de Oeiras que ali fora para uma sessão solene, em representação oficial.
            Lavo as mãos. Acabo, porém, como cidadão, por me preocupar: que é que faz correr assim estes senhores? Os da Síria, do Estado Islâmico e outros sabemos o que é: a crença de que, morrendo por Alá, matando os inimigos «Infiéis» têm para todo o sempre um delicioso oásis com mui deliciosas huris? Será que, por estas bandas, já se sonha também com inimigos, oásis e huris?
            Seja como for, que me seja permitido emitir opinião: é triste que, tanto lá como cá, essas mentalidades perdurem!
            Um amigo meu mostrava sempre ao revisor do comboio o bilhete errado, mas tinha o bom no bolso. «Ó pai, perguntou o filho, porque é que mostraste o errado, se sabes que tens o bom?». «Eu explico-te, filhote. Já viste a vida monótona do senhor se todos os dias, quando chega a casa, nada tiver para contar à mulher? Assim, sempre poderá dizer-lhe: ‘Imagina que hoje, um velhote queria armar-se em esperto e mostrou-me um bilhete caducado! Mas eu apanhei-o!».
            Creio que, na noite do passado dia 21, o agente bloqueador deve ter tido bom motivo de conversa à mesa com a família!...

                                                                                  José d’Encarnação

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Um Natal difícil

 
‒ Ó mãe, eu não percebo! O Menino Jesus não é filho de Deus Pai Todo-poderoso?
‒ É. Foi isso que aprendeste na escola, não foi?
‒ Foi. E é por isso que não eu não percebo.
‒ Mas não percebes o quê?
‒ Deus Pai não é Todo-poderoso?
‒ É. O senhor dos Céus e da Terra, como nós costumamos dizer.
‒ Então, se é o senhor disso tudo, é rico, quer dizer, tem dinheiro, tem casas grandes…
‒ Bem, a riqueza de Deus não é assim como a nossa. Ele tem poder, mas o poder d’Ele não se manifesta na posse de coisas terrenas, como ter dinheiro no banco, possuir iates ou casas de fim-de-semana.
‒ Ah!...
‒ Mas, desculpa lá, Matilde. Porque é que estás a perguntar-me isso?
‒ Porque não percebo o Natal.
‒ Não percebes o Natal?
‒ Não. O Menino Jesus, que é filho de Deus Pai Todo-poderoso, não nasceu numa cabana e os pais não se viram aflitos porque não havia sequer lugar numa estalagem, que é como se diz, embora eu julgue que se deveria pensar era num hospital, numa maternidade ou mesmo na casa duns amigos…? Agora, numa cabana, eu não entendo!
‒ Senta-te aqui ao pé de mim, Matilde. E o pai também vai ajudar-me a explicar. O nascimento de Jesus aconteceu há mais de 2000 anos, compreendes? Não havia hospitais, nem maternidades nem comboios nem, muito menos, telemóveis para chamar uma ambulância.
‒ Ah! Eu já ouvi dizer que houve meninos que nasceram em ambulâncias.
‒ Ora aí está! ‒ atalhou o pai. – E porque é que nasceram na ambulância?... Porque não houve tempo para chegar ao hospital! Ora, nesse tempo, há 2000 anos, Maria e José tiveram de ir a Jerusalém recensear-se.
‒ Recensear-se? O que é isso de recensear-se?
‒ Tu já viste que nós, de vez em quando, vamos votar a uma escola ou a um pavilhão desportivo para escolher o presidente da República.
‒ Ah! Agora, como quando escolheram o presidente Marcelo?
‒ Sim. Saímos de casa e fomos até ao lugar do voto. Assim aconteceu com Maria e José: tiveram que sair da sua terra e lá foram, num burrinho – nessa altura não havia automóveis ‒ a caminho de Jerusalém. Ora, no caminho, Maria começou a ter as dores do parto e José, aflito, procurou aqui e ali e ninguém os acolheu e eles tiveram que ir para uma cabana!
‒ Uma cabana onde há animais e tudo?
‒ Bem, isso é uma maneira de dizer. Naquele tempo, aproveitavam-se as grutas naturais e as pessoas faziam aí a sua casa.
‒ Como os sem-abrigo que estão debaixo das pontes ou nos vãos das escadas?
‒ Sim e não. Porque isso era normal. Um dia, nós levamos-te, por exemplo, a Matmata, na Tunísia, e verás como, ainda hoje, há pessoas que vivem bem nessas grutas. Nos arredores duma cidade tão bonita como é Granada, em Espanha, também é assim.
‒ Ah! Então não era assim tão mau! Mas… não se diz que Nossa Senhora pôs o menino na manjedoura?
‒ Isso é uma maneira de dizer, para que se entenda melhor. Sabes, às vezes, para explicar as coisas, a gente usa as ideias de agora.
‒ Mas, ó pai, e depois não apareceram pastores com prendas e o burrinho e a vaca não aqueceram a gruta para o Menino não ter frio?
‒ Cá está o que eu te dizia. A história foi contada assim para as pessoas entenderem melhor. Claro que, nessa altura, o povo vivia da pastorícia, ou seja, tinha ovelhas e cordeirinhos e era essa a riqueza que tinham. Por isso, nada mais natural do que, ao saberem que uma senhora dera à luz um menino ali, desconfortado, lhe fossem dar presentes. Hoje, a gente, quando uma amiga nossa tem um filhote, não vamos vê-la e não lhe levamos um presente? Nessa altura, não havia fraldas descartáveis nem biberões e, por isso, um cordeirinho era óptimo para ajudar nas refeições dos primeiros dias e dar força a Nossa Senhora para tratar do Menino.
‒ Ó pai, mas se Deus é Todo-poderoso não podia ter feito nascer o Menino assim no Verão, num dia quente e não quase à meia-noite duma noite de Inverno?
‒ Essa é uma boa questão, Matilde. Nesse tempo não havia calendário como nós temos nem relógios. Era tudo mais ou menos! Do nascer ao pôr-do-sol. Por isso, muitos anos mais tarde, quando foi necessário pensar em que dia teria sido, acharam que o melhor era pôr assim mesmo no começo do Inverno, até porque já havia entre os Romanos, nessa altura, a festa do nascimento do Sol Invencível. Ora, não era o Menino Jesus como um Sol Invencível? Era, pois! Estão substituíram a festa dos Romanos pela dos Cristãos.
‒ Mas, ó mãe, tu sabes quem é a Dolores, aquela minha amiga espanhola.
‒ Sim, sei.
‒ Eles, em Espanha, a festa é no Dia de Reis, a 6 de Janeiro.
‒ Boa questão, Matilde. É que o nascimento do Menino Jesus já se esperava há muito tempo e havia sábios que estudavam os astros (por sinal, onde hoje está tudo em guerra, lá na Síria) e sabiam que, um dia, quando nascesse esse Salvador, eles teriam um sinal no céu. Ou foi um cometa ou dois planetas cuja luz se juntou e foi mais intensa do que o habitual. Era o sinal! E, como viviam no deserto, montaram-se nos camelos e, guiados por essa «estrela» (como se diz), lá foram até Belém e ofereceram ao Menino presentes.
‒ Mas são presentes esquisitos, pai! Ouro, incenso e… mirra!
‒ Isso eu não sei bem explicar, mas acho que também é uma coisa que se inventou para ser simbólica, assim como uma lição de vida, assim como tu ofereceres uma rosa à mamã para lhe dizeres que gostas dela. O ouro são as riquezas; o incenso é – creio eu – o símbolo do louvor, da necessidade que todos temos de apreciar o que os outros fazem de bom e a mirra…
‒ Já percebi, Interessa-me é a história dos presentes. Já pensaram no que me vão dar este ano? Claro, não é para mim, é em honra do Menino Jesus!...
 
            Cascais, 14-10-2016                                                  
                                                                           José d’Encarnação
[Integrado nas pp. 31-34 da antologia Histórias e Contos de Natal, editada pela Externato Rainha D. Amélia, de Lisboa, Dezembro de 2016].

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Mais uma injecçãozinha, vá lá!

             Achei piada. O ecrã estava dividido em quatro. Na parte de cima à esquerda, a foto de um instantâneo do jogo mudava de vez em quando. Por baixo, um vídeo, sempre o mesmo, a mostrar o treinador de uma das equipas a andar, nervoso, de um lado para o outro; dava uma impressão de realidade (mas já fora e repetia-se, repetia-se...) Em cima, à direita, a locutora ia relatando o embate (não tinha o canal direitos de transmissão directa). Por baixo, o painel de comentadores, que iam reagindo às jogadas.
            O que mais me chamou a atenção foi esse truque de mostrarem sempre a mesma sequência dos passos do treinador para o adjunto e do adjunto para o banco, irrequieto. E lembrou-me, de imediato, «the best video you will ever see», que me haviam enviado não há muito e já tinha 22 milhões de visualizações e 427 506 partilhas: chama-se «Shrimp: the disgusting truth» (camarão: a verdade repugnante) e foi distribuído pela gary-tv.com, um canal que pugna pela defesa da vida animal. Vê-se ali o senhor num suposto laboratório do Vietname (um dos 5 maiores exportadores de camarões!…) a dar sucessivas injecções, três em cada camarão que lhe passam. Injecta-lhes uma mistura de glicose, gelatina e CMC (carboxymethyl cellulose), tudo para os tornar mais… apetecíveis!...
            Recebi, há tempos, um outro vídeo, em que se mostrava, também num país do Extremo Oriente, como se fazia couve lombarda a partir de substâncias químicas, exactamente com o mesmo aspecto e o mesmo gosto das cultivadas no campo…
            Recordo as brilhantes lições do Prof. Jorge Paiva – já lá vão trinta anos! – a contar-nos das manipulações genéticas dos cereais e como, por detrás do milho híbrido (se não erro o exemplo), estava todo um processo que lhe alterava por completo as propriedades.
            Todos nos apercebemos da diferença entre a laranja que colhemos no nosso quintal e a que compramos no supermercado: esta última, dois dias depois, já não se pode comer. E o pão? Minha avó cozia pão uma vez por semana, para nós e para os vizinhos, e chegava aos oito dias com a mesma frescura e qualidade. Hoje? Compras num dia e dois dias depois tem bolor!...
            Por isso – e, claro, por outros factores mais que se acumulam –, a senhora de 41 anos começa, de repente, a ter formigueiros nos pés, depois nas mãos, depois no peito e vai de urgência para o hospital com todos os músculos sem força alguma e fica paralisada por completo, perante a estupefacção de todos. Ou o amigo, que nós víamos a vender saúde e começa, de um momento para o outro, a sentir-se cansado, cansado, sem motivo aparente e… já está a fazer químio e aguarda transplante de medula…
            É triste falar disto em vésperas de Natal; importa, porém, que também a pausa da quadra natalícia se aproveite – com serenidade e tempo – para uma reflexão sobre nós, os nossos e aquilo que nos rodeia. A recuperar forças para o testemunho que precisamos de dar!
                                                                          José d’Encarnação
 
Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 698, 15-12-2016, p. 16.
 
 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Da homenagem a Jorge Miranda

              Já nestas colunas do Cyberjornal se deu conta, na edição do passado dia 9, do programa que, durante dois dias, 10 e 11 do corrente, foi levado a efeito, por iniciativa da Espaço e Memória – Associação Cultural de Oeiras, no Auditório César Batalha, em Oeiras, de homenagem ao Dr. Jorge Miranda.
            Serão, mui provavelmente, publicadas essas intervenções, centradas todas elas, por especialistas, na história local e regional de ambos os concelhos, Oeiras e Cascais. Os mais variados aspectos foram, pois, apresentados, a mostrar a riqueza histórico-patrimonial de que dispomos e de que nem sempre sabemos usufruir.
            Estava também prevista para essas jornadas a apresentação do livro do homenageado «Do Património Histórico de Oeiras» (salvo erro, é este o título), a primeira compilação de uma longa série de bem suculentos artigos que Jorge Miranda foi publicando, nomeadamente no Jornal da Região, quando o então director desse jornal, Dr. Albérico Fernandes, teve a clarividência, há 16 anos, de reservar a temas de História e de Património uma página inteira desse que foi o primeiro jornal local a ser distribuído gratuitamente
            Cascalense de gema, oeirense por adopção, Jorge Miranda fez o seu curso de História na Faculdade de Letras de Lisboa, como estudante-trabalhador, quando já investigava há muito o passado de Cascais e de Oeiras, investigação de cujos resultados ia dando conta nos textos que, em Cascais, o «Jornal da Costa do Sol», de cuja equipa de redacção fazia parte, regularmente publicava.
            Desse livro – ou melhor, dessa série – se falará; por agora, interessa aplaudir o entusiasmo, a perseverança e o saber com que, ao longo de mais de quatro décadas, tem revelado, em textos e em conferências, o muito que logrou descobrir acerca das personalidades, dos factos, das casas e da paisagem de Oeiras e de Cascais. Foi, pois, inteiramente merecida a homenagem que ora se lhe prestou – e da melhor maneira, chamando especialistas a falarem do que ele gosta de ouvir.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 14-12-2016:

Um diálogo que encantou e mereceu mui fartos aplausos


             Realizou-se, no passado sábado, dia 10, no Auditório Senhora da Boa Nova (Galiza, S. João do Estoril), o Concerto de Inverno da Orquestra Sinfónica de Cascais, sob a habitual direcção do maestro Nikolay Lalov.
            Arriscou o maestro duas peças que mesmo um leigo compreende serem de mui difícil execução, pela extrema variedade das intervenções que cordas e os metais são chamados a ter no segundo exacto, para se calarem segundos depois e logo intervirem de novo.
Lilia Donkova
            Rezava o programa que iríamos ouvir «duas das mais emblemáticas obras do repertório sinfónico de Viena». Uma, a Sinfonia “Grande” D. 944, sinfonia nº 9, em dó maior, de Franz Schubert (1797-1828), datada precisamente do ano da sua morte e considerada por muitos como a precursora do que viriam a ser as grandes obras de Mahler (1860-1911) e de Anton Bruckner (1824 -1896). A outra, o concerto – que também pelo estilo, poderia também entrar no género das sinfonias – do compositor alemão Johannes Brahms (nasceu em Hamburgo, em 1833, e viria a falecer em Viena em Abril de 1897), o concerto para violino e violoncelo em lá menor (op. 102), datado de 1887, a última obra que Bramhs viria a escrever para orquestra.
Anastasia Kobekina
            Longamente aplaudimos a segunda parte do espectáculo, a excelente interpretação da sinfonia nº 9 do incomparável Schubert, soberbamente executada; mas os aplausos foram ainda mais longos, de pé, no final da primeira, porque a búlgara Lilia Donkova, no violino, e a russa Anastasia Kobekina, no violoncelo, estabeleceram entre si, como solistas, um diálogo, que, como sói dizer-se, só visto e ouvido – pela alegria, pela entrega, pelo virtuosismo, pelo imenso saber!... Até nos pareceu que o resto da orquestra ficava assim lá no fundo, discreta, a deixar inebriar-se pelo que Lilia e Anastasia tocavam!...
            Lilia Donkova é já nossa conhecida, porque é concertino na Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, uma figura sempre de primeira plana nos concertos, e é professora de violino no Conservatório de Música de Cascais. E do extremo virtuosismo de Anastasia não nos poderemos admirar se soubermos que nasceu numa família de músicos, começou a aprender violoncelo aos 4 anos e toca hoje num violoncelo fabricado, em 1743, por  Giovanni Baptista Guadagnini (1711-1786), o mais célebre construtor de violinos da 2ª metade do século XVIII.
            Mais uma vez não resisto a dizer que saímos do Boa Nova com a alma cheia! Músicos e maestro estão de parabéns e nós imensamente gratos pelo privilégio de os termos ouvido interpretar com entusiasmo e enorme saber duas peças de antologia! E temos a certeza de que todos os músicos hão-de ter já anotado esta data no seu currículo, dado o privilégio – sem dúvida, raro! – de haverem tocado com estas duas extraordinárias intérpretes como solistas.
                                                            José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, 14-12-2016:

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

No dia 5, a Solidariedade ganhou no Casino Estoril!

             O elenco que ia actuar era assaz convidativo; contudo, mais aliciante ainda era a razão que nos poderia levar ao Salão Preto e Prata do Casino estoril: a receita obtida destinava-se a ajudar nas despesas de tratamento do Salvador, «um menino de cinco anos a quem foi diagnosticado um neuroblastoma, doença de prognóstico muito reservado, mas que, neste caso, ainda, permite alimentar alguma esperança de cura».
            Em torno do caso se gerou, pois, amplo movimento de solidariedade, quer de amigos quer, neste caso, da própria Estoril-Sol e dos artistas que não hesitaram em dizer «sim!» e proporcionaram um belíssimo espectáculo a quantos, acorrendo à chamada, encheram por completo o salão.
            Apresentou o espectáculo, na segunda-feira, dia 5, a partir das 21h45, Ricardo Carriço.
            Começou por actuar Ângelo Freire, fadista e guitarrista que habitualmente acompanha Ana Moura. O seu enorme virtuosismo foi saudado com fartos aplausos.
            Seguiu-se António Zambujo, naquele seu jeito tímido de, sentado, quase pedir licença para nos contar histórias, cantando; e terminou, claro, com o já popularíssimo «Pica do 7», que os assistentes não hesitaram em acompanhar no refrão.
            A azougada Ana Bacalhau trouxe a costumada boa disposição dos Deolinda, com aquelas «modas» (como se diz no Alentejo) em que, como quem não quer a coisa, se vão atirando, a rir, certeiras críticas ao quotidiano que os «Grandes» nos obrigam a viver.
            Ah! E depois a esguia, a bonita, a simpática, a sempre cativante Ana Moura! O fado que nos enche a alma e que de boa mente acompanhamos cantando e batendo palmas quando para isso solicitados. Terminou, como não podia deixei de ser com… Desfado: «Ai que saudade / Que eu tenho de ter saudade / Saudades de ter alguém / Que aqui está e não existe! / Sentir-me triste / Só por me sentir tão bem / E alegre sentir-me bem / Só por eu andar tão triste!».
            A meio leiloaram-se dois quadros contendo, um, uma camisola autografada do Benfica e, outro, uma do Sporting. Ambas renderam 650 euros cada; e, também aqui, embora os adeptos do Benfica estivessem claramente em maior número, houve imparcialidade, até porque foi um sportinguista quem arrematou a do «rival»!...
            Tudo isto para dizer que se viveu intensa noite de solidariedade, numa verdadeira e mui intensa comunhão entre artistas e público, numa demonstração cabal que, em ocasiões como esta, o Português sabe dizer: «Presente!».
            Fazemos votos para que tudo corra o melhor possível para o pequeno Salvador, cujos pais estiveram presentes e tiveram palavras de sentido agradecimento. Aproveita-se, aliás, para referir que foi criada no BCP a conta IBAN PT50 0033 0000 45487228016 05, destinada «exclusivamente, a custear todas as despesas que venham a revelar-se necessárias à sua recuperação, devendo o remanescente, caso venha a existir, ser doado para ajudar outra criança com o mesmo problema do Salvador ou entregue a uma instituição de beneficência».

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 12-12-2016:

domingo, 11 de dezembro de 2016

Poemas ocasionais, de Fernando Miguel Bernardes

            Está em distribuição o livro poemas ocasionais, de Fernando Miguel Bernardes, numa edição de Mar da Palavra (coimbra, mardapalavra@gmail.com ), editora de que Vitalino José Santos é o grande dinamizador.
            Natural de Gândara dos Olivais (Leiria), onde nasceu a 14 de Dezembro de 1929, formou-se o autor como engenheiro geógrafo, mas será, sem dúvida, a poesia que o imortalizará, uma vez que poemas seus foram musicados e gravados por Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, José Jorge Letria, José Carlos Ary dos Santos. Um poeta, pois, da resistência.
            Tive ocasião de apresentar, a 27-05-2009, na Biblioteca Municipal das Galveias (Lisboa), o seu livro «O Fio das Harpas»; prefaciei «Notas de viagens – Ritmos e Mitos» (Coimbra, 2015); e tive igualmente o gosto de fazer o prefácio para estes «poemas ocasionais»:
            O meu texto – que me seja perdoada a insolência – começa assim
            “Dizem-se «ocasionais». De ocasião. Como suspiro d’alma que se dá, de quando em vez, perante o inusitado, ao ler uma frase sentida, ou, mesmo, diante do rumo ziguezagueante de uma Humanidade ora, cada vez mais, a desmerecer inicial maiúscula.
            Voz a ecoar pelas quebradas. Um rio. Já o imperador romano Marco Aurélio escrevia ser a vida qual rio torrentoso: mal acabas de ver a folhinha flutuante, ei-la que já lá vai e, em seu lugar, outra vem, em jeito de abalada.”
            É que, se não errei, assim se poderia compendiar a mensagem que Fernando Miguel Bernardes nos quer transmitir. Como quem não quer a coisa, lá vai lançando a sua certeira seta contra os «montes maninhos», «as verduras transgénicas», «frutas maduras de intervenções polémicas» (p. 61). Poderíamos alargar-nos em dissertações técnicas sobre a manipulação dos alimentos, mas… estes dois versos «frutas maduras de intervenções polémicas» carecem, acaso, de mais explicação?
            «Eleito a falsas promessas, este no comando agora – ai, ai, Coriolano!... – eis, por fim, tudo às avessas, os cidadãos ao engano!» (p. 81). Que mais é preciso dizer para verberar quem promete mundos e fundos para ser eleito e, depois, faz exactamente o contrário do prometido?
            E se nos sentássemos ao relento com um sem-abrigo – se é que tínhamos coragem para conversar com ele.. – que lhe ouviríamos dizer? E Fernando Miguel Bernardes, em singela pincelada diz tudo:

                        «Tu tens uma cama quente
                        a mim o que me ajuda
                        é um trago de aguardente!». (p. 14).

            Não resisto a transcrever, pela sublime acutilância que os dois tercetos do poema «parasitas» encerram, retrato fiel de como, na escolha certa das palavras, se desnuda um estado d’alma, se brada forte um grito de revolta:

                        vérmina – disse o doutor
                        ao ser pelo doente
                        consultado
 
                        vermes – disse o eleitor
                        ao ser pelos que elegeu
                        parasitado      (p. 90).

            Um livro para meditar!
                                                           José d’Encarnação

Publicado em cyberjornal,  edição de 10-12-2016:

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A mais antiga farmácia e o maior medo da minha vida

             Teve Raul Cornélio – que julgo não conhecer pessoalmente – a amabilidade de me esclarecer que errei, ao escrever, na p. 93, de «Cascais e os Seus Cantinhos» que a Farmácia Cordeiro «foi a única durante muito tempo em Cascais»:
            «Antes houve duas: a da Misericórdia e a do Sr. Lopes e, quando veio o Dr. Cordeiro, pelo menos a da Misericórdia havia, sob a responsabilidade do Sr. Antunes e, mais tarde, do Sr. João Galamas. Repito: a Farmácia da Misericórdia sempre existiu, antes e depois do Dr. Cordeiro».
            Agradeço a Raul Cornélio a gentil explicação, que veio em momento oportuno, porque alguém me perguntou outro dia se se fizera já a história dos estabelecimentos comerciais da vila de Cascais. Eu acho que não – e haja aí quem meta mãos à obra!

O meu maior medo
            Mas essa evocação das farmácias fez-me recordar o maior medo que tive na minha vida – quanto me lembre agora.
            No dia em que fiz oito anos, morávamos num casebre em Birre, minha mãe precisou de um remédio e mandou-me ir à Farmácia Cordeiro, aí pelas quatro da tarde. Teria tempo de vir depois para cima, com um amigo que trabalhava na vila. Estávamos em meados de Dezembro. Comprei o remédio e procurei o amigo, que não encontrei. Começou o lusco-fusco e não estive com meias-medidas: pela Torre não dava jeito ir, que a estrada era, se não erro, de mau piso e não tinha luz; depois, teria que passar pelo Pinhal do Cigarro, que era a divisória entre a Torre e Birre e o sítio era escuso de mais. Não. O melhor era subir pelo Jardim Visconde da Luz, passar pela Estrela do Norte, benzer-me diante do cemitério (onde fizeram depois o edifício das Águas), passar pelo Bonito Velho, Depósito d’Água, Bairro Operário, Barraca de Pau… Podia ter ido à taberna do Ti Zé Martins e pedir que me acompanhassem, porque já estava escuro que nem breu e as lâmpadas dos postes só iluminavam a espaços e da Barraca de Pau até às Quatro Estradas (o cruzamento para Birre), aquilo só eram mulatas grandes dum lado e doutro. Tive vergonha e não fui. Já não recordo se me encomendei a algum santinho ou não. Sei é que logo pensei que nunca mais esqueceria essa noite de aniversário. Terá passado um carro ou outro, mas até me parece que não; só a luz mortiça das lâmpadas por entre as franças altas das mulatas. Lembrei-me, de certeza, das histórias que minha avó contava, dos lobisomens nas encruzilhadas. De passo estugado, só queria era chegar à estrada para Birre e ver adiante o Alto do Zé Florindo, que bastava depois descer até ao pontão do ribeiro, passar rente ao muro do Soares (hoje, a Escolinha da Tia Ló) e, assim que chegasse à porta da garagem dele, que estava na esquina, o nosso casebre (ainda hoje existe como quando eu lá morei, casinha saloia térrea típica) era logo ali e eu estaria a salvo.
            Estava eu nestes pensamentos quando, do outro lado do passeio, já na estrada para Birre, sinto que vai uma senhora. A estrada não tina luz. Calo-me muito caladinho (não sei se pelo caminho, eu teria cantado algum dos fados que ouvia a meu pai, para afastar o medo) e continuo.
            ‒ Zé Manel! Ó filho!
            Estava salvo! Minha mãe tirara-se de cuidados, afeleada até mais não, e pusera-se a caminho. Creio que nunca mais tive um abraço tão quentinho e tão bom!...
            Bem haja, pois, amigo Raul Cornélio, por me haver proporcionado esta evocação de lugares que hoje já não são assim ermos; poucos os conheceram com os nomes que lhes dávamos…
            Uma Cascais antiga, de estradas poeirentas, percorridas a largos espaços pelas carreiras brancas da Palhinha. As canastras do peixe, as alcovas das compras e outros apetrechos iam lá em cima, no tejadilho, a que se acedia por uma escada nas traseiras… E havia desdobramentos quando, em dia de praça, a afluência de passageiros era grande e uma camioneta ia até à Aldeia de Juso ou à Malveira e só a da frente seguia para Sintra…
            Valerá a pena fazer essa história dos anos 50?
            Até as covas das pedreiras eles entulharam agora, como para esquecer esse passado, em que ainda não era o turismo a riqueza, mas sim a exploração do azulino cascalense, os roseirais dos Cartaxos, as hortas e os pomares dos saloios que tinham lugar no mercado da vila… E que bem sabia, quase ao cair da tarde, na véspera da ida à «praça», receber de prenda uma rosa príncipe negro, oloroso vermelho aveludado envolto numa ternura!…

     José d’Encarnação

            Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 167, 07-12-2016, p. 6.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Lucinda Ferreira: Quanto esperei por ti!

           Cruzava-me com a Dra. Maria Lucinda Pereira Ferreira quando à Faculdade de Letras de Coimbra foram atribuídas, como remendo, as velhinhas instalações de parte do Hospital «Velho». Era, então, assistente convidada, responsável pelo Ensino de Língua e Cultura Portuguesa para Estrangeiros, e eu tinha lá o «meu» secretariado ERASMUS. Trocámos impressões amiúde e daí nasceu uma amizade que se tem prolongado vida afora, mesmo após ambos nos termos aposentado.
            Retomámos os contactos quase diários recentemente, a propósito do seu primeiro romance, Quanto esperei por ti!, editado pela Palimage e a ser apresentado no próximo dia 10 de Dezembro (sábado), em Coimbra, a partir das 15 horas, no Pavilhão Centro de Portugal (Parque Verde da Cidade), estando prevista, pelo menos, mais uma  apresentação no dia 15, pelas 18 horas, no Hotel da Música, Mercado do Bom-Sucesso, à Boavista, Porto, também com a presença da autora, estando aí a apresentação da obra a cargo do Dr. Manuel Henrique Proença.
            Tive, então, curiosidade em saber um pouco mais do seu percurso. E, confesso, pasmei perante o que li, não apenas na extensa entrevista publicada a 25 de Novembro pelo jornal conimbricense O Despertar (p. 11), mas pelas inúmeras actividades a que se tem dedicado, tanto no estrangeiro como em Portugal, inclusive em colectividades. Fundou, por exemplo, em 1982, o Coro dos Pequenos Cantores de Coimbra; organizou o Grupo Telarmonia de Pintura; exerceu cargos nos órgãos sociais dos Bombeiros Voluntários de Coimbra…
            Antes vir dar o seu apoio à Faculdade de Letras, teve a sina – como tantos!... – de percorrer o País, sendo colocada aqui e além, conforme ‘determina’ o inefável sistema de colocação de docentes do Ensino Básico e Secundário, que todos bem conhecemos e repudiamos, mas não há nada a fazer. A Dra. Lucinda também não lutou contra o status quo – mais forte que alicerce de ponte romana – e fez das tripas coração. A prová-lo estão as distinções que foi recebendo e os prémios com que foi galardoada, de que registo: o Diploma e a Medalha de Ouro de Mérito Municipal na área do Ensino, outorgado pelo Município da sua terra natal, Vila Nova de Poiares; diploma de Mérito Cultural da Casa da Cultura de Ponta Delgada (Açores); diploma de Mérito Cultural da  Câmara Municipal de Olhão, além de várias menções escritas de reconhecimento oficial pelo trabalho desenvolvido na área da Educação, uma das quais em Poitiers. De resto, a Dra. Lucinda não se privou de viajar: Londres, América Central, Japão, USA, Canadá, França, Macau, Brasil… locais onde fez conferências e chegou a colaborar activamente na Comunicação Social (escrita, radiofónica e televisiva).
            Largas e mui ténues pinceladas, estas, da vida de uma dinâmica docente, de perfil discreto, que ora, mais profundamente, vamos apreciar como escritora. Em Quanto Esperei por Ti, Lucinda Ferreira convida-nos a partir à descoberta da história de Clara, a protagonista, e dos sabores, dos cheiros, da paisagem e das tradições de Trás-os-Montes, cenário onde se desenrola toda a história.
            Reza o texto de apresentação distribuído:
            «Uma obra a não perder, interessante e cuidada, rumando a uma peregrinação interior, em que todo o leitor se poderá rever. Análise profunda da densidade das suas personagens, plenas de introspecção poética, de uma dramaticidade sem hipérbole e nas quais aflora um erotismo contido e elegante».
            Sendo o primeiro romance da autora, há aqui, naturalmente uma dúvida, antes de abrirmos o livro: vamos assistir ao encontro de Clara com o amado por quem tanto esperou e pronto; ou, ao invés, estaremos perante o longamente ansiado encontro da autora com o seu público leitor, consubstanciando-se aqui um desejo cumprido, um amor satisfeito… ou, ainda, um desejo e um amor que, cumpridos e satisfeitos, logo anseiam por outros voos, pelo desenrolar de pergaminhos, anos e anos acumulados em gavetas, à espreita da melhor ocasião para se darem a conhecer?...

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 6-12-2016:

«Faz força, que eu impo!»

             Uma das primeiras frases que recordo de meu pai, com aquele seu jeito quase brejeiro que tão bem caracteriza o algarvio e que António Aleixo tão bem soube retratar, é esta:
            - Vamos, filhote! Faz força, que eu impo!
            Todos sabemos quanto é fundamental o regular funcionamento do aparelho digestivo, nos primeiros dias e, até, nos primeiros meses de uma criança e, mais tarde, quando se atinge a senectude. E todos recordamos a emoção quando o menino deixa a fralda, ao invés do que acontece quando se recomeça a ter de a usar…
            Um sorriso malandro, o do meu pai: «Vamos, filhote! Faz força, que eu impo!». E punha-se a gemer, a gemer, como se fosse ele que estivesse no bacio ou a arrastar bajolo - como, aliás, também amiúde viria a acontecer mais tarde, na pedreira, quando se precisava de, com a alavanca, pôr uma pedra a jeito de ser trabalhada e se estava em maré de brincadeira: uns faziam força e o outro, de papo pró ar, gemia, gemia… e era uma gargalhada depois!
            Impar é, também ela, nesse sentido, uma palavra algarvia. Rezam os dicionários que vem do espanhol «hipar», com o significado de «soluçar»; e até se acrescenta que poderá derivar de um verbo do latim tardio, popular: *hippare, que não logrei encontrar, na pesquisa que efectuei nem nos dicionários nem nos autores antigos.
            Enfim, ficamo-nos com mais esta, a aplicar, por exemplo, aos eleitores de determinado país que não foram votar, porque pensavam que a vitória estava certa: «Faz força, que eu impo!» - e fico em casa, regalado. Aconteceu, porém, que o impante (agora já com outro sentido, claro)… ganhou!

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 215, Dezembro de 2016, p. 10.

 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Às três pancadas

       ‒ Bolas, homem! Fazes tudo às três pancadas!
      Gosto da frase, que é como quem diz: pancada dum lado, toque do outro, ajuste num terceiro e… zás! Tá pronto!
      Meu pai usava boina basca, como era hábito nos anos 50; e mofava comigo sempre que eu punha a minha às três pancadas, sem jeito: «Põe-me a boina direita, môce!».
      Significava a frase ‘desmazelo’ e utilizava-se muito em relação à indumentária, quando a pessoa não revelava cuidado consigo. Hoje, parece que temos sempre os segundos todos contadinhos, numa correria. E há, por isso, o risco de fazermos muitas coisas às três pancadas.
      Pensava eu que a Internet, por exemplo, e, designadamente, essa maravilha que é o correio electrónico, pela sua eficácia e rapidez, acabaria por nos deixar mais tempo livre ou, pelo menos, nos ajudaria a fazer as coisas menos atabalhoadamente. Puro engano o meu! E o pior é que, nesse aspecto, o mau exemplo está a vir de cima, dando a ideia de que todos os senhores cultos andam que nem loucos e nem sequer vêem o que estão a fazer! Como aquele sábio grego que caminhava a olhar para o céu, a estudar os astros e – catrapuz! – espetou-se num buraco do chão!
      Ora vejam-se estes exemplos:
      – Recebo uma mensagem electrónica que tem como assunto «Eulalia» e traz o anexo «TARJETON PROGRAMA.qxp.MaquetacioÍn 1. pdf». Pdf sei o que é: a sigla de «Portable Document Format», «formato de documento portátil». E o resto, o que é?
      Um colega meu enviou-me um artigo intitulado ATT00599!...
      – Um outro dizia: AAAd 84 Cresci Marrone – Cresci
      – Outro ainda: 25_pdfsam_Turtas_interno – Mastino
      E textos que recebo sem indicação da revista onde foram publicados ou ainda com as linhas de corte nas páginas!?...
      Ou seja: aparentemente ou é ignorância e o pessoal não sabe como é que se muda o título de um anexo ou não está para se maçar e… faz tudo às três pancadas, meia bola e força!
      Um sintoma triste, sobretudo por partir de quem parte: de pessoas cultas e de instituições de prestígio! Para quê correr tanto e não se aprimorar?
      Lembro-me do anúncio daquele uísque:
      «Todos os dias, milhões de pessoas se levantam do lugar antes de o avião parar os motores! Para quê tanta pressa?!... Uísque Y – para saborear sem pressas!...».
      Pois.

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 697, 01-12-2016, p. 10.