quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Faleceu Carlos Carranca

            A sua enorme força de viver não logrou driblar - para usar um termo que lhe era caro - as curvas da Morte.
            Que descanse em paz o Lutador, o Cidadão que não hesitava em comprometer-se e em bradar bem alto contra a injustiça, a incúria, a falta de espírito cívico. O Professor que entusiasmava os alunos pela Literatura, pela Poesia, pelo Canto. A voz da canção coimbrã, que muitas vezes elevou, juntamente com tantos vultos grandes da Lusa Atenas, designadamente Luiz Goes.
            Cascais, Coimbra, Lousã e Figueira da Foz devem-lhe muito! Todos lhe devemos muito! E guardamos serenamente a sua memória! Até sempre, Carlos! Até sempre! 
             Doutorado em Cultura Portuguesa pela Universidade Autónoma de Lisboa, com uma tese – publicada – sobre o Casticismo em Torga e Unamuno, Carlos Carranca exerceu, até a doença o prender, funções docentes na Escola Profissional de Teatro de Cascais e colaborou, intensamente também, com a Universidade Lusófona de Lisboa.
             Poeta compulsivo, dir-se-ia, escreveu muitos livros de Poesia (e digo ‘muitos’, porque ultrapassarão decerto as duas dezenas, alguns dos quais eu tive o privilégio de apresentar) e estava sempre pronto a programar mais uma sessão em prol da Cultura, onde nunca faltava, a terminar, o toque coimbrão! 
             Constituíram os últimos meses, em que se debateu com esse grave problema de saúde, um testemunho exemplar de como se deve encarar a doença, de como o espírito deve ser forte, positivo, de como, mesmo na dor que atormenta, se pode olhar para os outros, confortá-los, dar-lhes o ânimo que, por vezes, corria o risco de lhe faltar.
             A consulta da sua página no Facebook, onde quase diariamente deixava as suas reflexões é, pois, obrigatória para quantos queiram inteirar-se de como um Grande Homem é Cidadão de corpo inteiro até ao fim!
            Completaria 62 anos a 9 de Novembro…

                                                                            José d’Encarnação

Instantâneo da apresentação, no Teatro Mirita Casimiro, em Cascais, a 16 de Novembro de 2017, do livro de poemas «Para Além do Mar Vermelho»

                                                               

terça-feira, 27 de agosto de 2019

O livro «Cascais e o Mar»

             Ainda que Raul Brandão, no seu livro «Os Pescadores», não haja feito uma referência especial aos pescadores de Cascais, o mar esteve sempre necessariamente presente – e está! – na história da vetusta vila.
          Foi da iniciativa dos pescadores a solicitação a el-rei D. Pedro I, em 1364, para que os libertasse da tutela de Sintra, porque já se julgavam dignos de uma autonomia.
           Foi mediante louvores ao clima cascalense e à sua refrescante brisa marítima estival que, no século XVII, Frei Nicolau de Oliveira incitou o rei espanhol a fixar sua corte em Lisboa.
            Foi Cascais que el-rei D. Carlos, em meados do sé. XIX, escolheu para estância balnear privilegiada e centro das suas experiências marítimas; daí que Eva-Renate d’Esaguy não tenha hesitado em dar ao livro que a Editorial Império (Lisboa, 1952) publicou o título Cascais, Terra de Reis e Pescadores, até porque el-rei entre os pescadores amiúde confraternizava…
            Antes, porém, por toda a Idade Moderna, era a baía de Cascais a última que os navegadores deixavam, quando em demanda de novas paragens e, no regresso, era ela a primeira que eles, mui jubilosamente, saudavam.
            Tem, pois, pleno cabimento o livro que Manuel Eugénio e José Ricardo Fialho prepararam sobre Cascais e o Mar, uma edição da Junta da União de Freguesias Cascais e Estoril, solenemente apresentado pelo presidente da Junta, Pedro Morais Soares, ao final da tarde de domingo, 25 de Agosto, último dia das celebradas Festas do Mar deste ano.
            Uma significativa cerimónia singela, no Largo Cidade Vitória, junto à sede da Junta, com largo público e a presença do presidente da edilidade.
            Não é um livro de história, é um livro para a História!
            Ou seja, aí minuciosamente se recolheu assaz completo acervo a respeito do que se conhece (e convém não esquecer!) acerca desta íntima e multissecular ligação entre a vila, o mar e as suas gentes. Entidades, acontecimentos, lugares, monumentos, edifícios, casos célebres, vultos do Povo que não poderão olvidar-se…
Alice, varina e vendedeira no mercado
            Meu pai foi arrieiro na sua juventude. Ia de S. Romão, de madrugada, às cavalitas de uma burra, à praça de Olhão comprar peixe, que revendia pelas terras de S. Brás de Alportel. Quando veio para Cascais, trazia o gosto do peixe no corpo. Por isso, amiúde, terminada a venda, a ‘menina Sara’, a Alice (que vem no livro como a Alice da Barraca de Pau) ou a sua irmã, a Carolina, batiam-nos à porta, em Birre, à hora do almoço, para que comprássemos o que não haviam vendido. Meu pai olhava, «tens aí um cento de carapaus; dou tanto!». Regateava a Carolina, que não, que tinha mais, e meu pai na dele! Contadas as cabeças, acabavam por lhe dar razão e a merca se concretizava, pois então!
            As varinas! Punham as canastras no tejadilho das carreiras da Palhinha, ali pelas 10 da manhã, e lá iam elas! Para a Malveira, uma; Aldeia de Juso, outra; Barraca de Pau, Cobre, Birre e Torre, outras…
            De futuro, nada poderá escrever-se sobre Cascais sem uma alusão ao que ora neste livro ficou mui despretensiosamente consignado, fruto de aturada pesquisa e, também, importa dizê-lo, da colaboração de quantos, abordados pelos autores, não tiveram receio em lhes facultar fotografias e documentação do seu espólio familiar. Abençoados!
            Reza o lema camarário cascalense «Tudo Começa nas Pessoas». Dir-se-á também, com inteira justiça que, neste 13º livro de Manuel Eugénio (a partir de dada altura, em parceria com José Ricardo Fialho), as Pessoas são, na verdade, o elo de tudo!
            E outra atitude não há senão a de se louvarem os autores e o Executivo da Junta, por não se haverem poupado a esforços para nos legarem, a nós e às gerações vindouras, estes eloquentes e bem significativos testemunhos!

                                               José d’Encarnação


quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Patrimoniices cascalenses 35 - A exploração agrícola do Casal do Clérigo

             Não, não vou contar toda a história que é longa de mais e intrincada. Satisfaço o pedido de Susana Luiz para dizer onde está esse casal saloio em ruínas e o que é. E, como verá Guilhermino Pires, fica muito perto do antigo Instituto Missionário Salesiano, de Carrascal de Manique (hoje, Salesianos de Manique), na freguesia de S. Domingos de Rana, e por isso eu lhe disse que ele o terá conhecido bem no seu apogeu de actividade.
            Casal do Clérigo é sítio ocupado desde mui remotas eras. Aí identificámos uma villa romana, onde se fizeram sondagens com satisfatórios resultados, que tivemos ocasião de dar a conhecer. Por aí passava a «estrada real» para Sintra e foi justamente por isso que, no século XVI, aí esteve um amante de antiguidades, que descobriu, por exemplo, uma inscrição funerária romana. Uma história, repito, que temos contado nas publicações que temos feito sobre os vestígios romanos em Cascais. Veja-se, a título de exemplo, o livro Dos Patrimónios de Cascais, editado pela Associação Cultural de Cascais, apresentado a 26 de Julho na Casa Sommer.
            É em Casal do Clérigo que resiste, sob a proficiente orientação da família do canteiro António Clérigo, uma das poucas serrações de pedra em laboração no concelho de Cascais. Mas a serração fica do lado norte da estrada e o casarão em ruínas, ou melhor, os casarões em ruínas ficam do lado sul. Aí houve florescente exploração agrícola (Fig. 1) pertencente à família Canas, que a vendeu ao empresário Américo Santo, na altura em que se chegou a pensar que nesse local ou nas suas imediações poderia vir a instalar-se o novo hospital de Cascais. Essa hipótese foi gorada devido às diligências efectuadas durante o mandato de António Capucho, altura em que se negociou a localização actual, nos terrenos de Alcabideche e Cabreiro, que eram do Ministério do Exército. Outros planos para o local se goraram também, por isso mesmo, e a ruína foi tomando conta de tudo, na esperança de melhores dias.
            A foto publicada e cuja identificação se pedia (Fig. 2) mostra o exterior (é de pedra, sim, caríssima Neyde, tudo se construía de pedra e não de tijolo naqueles recuados tempos!...) do que foi a vacaria. Ora observe-se a fotografia do interior (Fig. 3), com a comprida manjedoura e o travejamento do telhado que resiste. São fotos que devo à amabilidade do Doutor Guilherme Cardoso, que nunca se cansa de fazer o registo do património em riscos de se perder.
            Que vai acontecer a esse aglomerado de prédios em ruínas?
            O tempo e as políticas o dirão.
            Para já… são ruína de um passado – até aos anos 60/70 – em que no interior do concelho de Cascais se vivia da agropecuária, informação que poderá ser por muitos hoje desconhecida, quando olham apenas para o Cascais litoral, urbano e balnear. Esse é outro Cascais, sofisticado; este, o que vivia da terra, mais… natural!

                                                                        José d’Encarnação

Fig. 1 - O conjunto das edificações em ruína.
Fig. 2 - O exterior da vacaria.
Fig. 3 - O interior da vacaria.

Arame farpado

            
Tenho na garagem um resto do rolo de arame farpado que se usou na vedação do jardim. Um resto inofensivo, quase inútil; guardo-o, todavia, na perspectiva de vir a precisar. Arrepio-me sempre que o vejo. Sinto as farpas a prenderem-me as malhas da camisola e lá vai mais um fio tresmalhado!
            Há arames farpados nas fronteiras de alguns países. E até electrificados, dizem! Como quem diz: «Isto é nosso! É nosso, entendem?». Curiosa, essa noção de propriedade, que inclusive os Estados têm em relação aos ‘prédios’, porque, afinal, se são nossos, porque haveríamos de pagar imposto por eles? Por ocuparem espaço, como automóvel em parque de estacionamento? Ná, essa noção de ‘propriedade' está mesmo muito mal amanhada!
            «Farpado» lembra-me, porém, a palavra donde vem: farpa. Não me será lícito falar das que se espetam nos touros; gosto mais das outras, as que ferem de mansinho… Não as línguas viperinas que soltam farpas envenenadas a todo o instante e que para elas nada está bem… Como os senhores que saúdam uma inovação, por que há muito se ansiava e… pumba! «Sim, senhor, foi uma boa iniciativa! Peca, porém, por tardia e é curta!»… Pobres e mal agradecidos! Já têm um bocadinho, não tinham nada, e, agora, acham que deveriam ter mais!
            É conhecida a parábola da salamandra. Eu acho que Jesus Cristo, se tivesse vindo à Terra neste nosso tempo, era bem capaz de a ter contado. Hoje, partilha-se nas redes sociais e congratulo-me, porque traz lá uma farpazinha bem a preceito. Vou citar de cor e que me perdoe quem a engendrou. Uma história bonita – e eram também assaz bonitas e dignas de apreço as «Farpas» que, pelos finais do século XIX (mais concretamente, a partir de 1871), Ramalho Ortigão e Eça de Queirós mensalmente lançavam, atingindo tudo e todos sem dó nem piedade, porque não devia haver piedade nem dó para quem tanto assacava ao Povo. Abençoados!
            Vamos à parábola.
            Nessa noite, o conferencista não esteve para muitas conversas. Levava mala preta, qual ilusionista. Saudou a assistência. Lentamente, tirou um pano em silêncio. Outro pano, mais um outro, vermelho… E parou, como que a indagar «O que é que eu tenho aqui?». A assistência, suspensa. Mais dois ou três panos ainda, um amarelo, um roxo… Queres ver que vai sair dali a Senhora das Dores? Não saiu! Cuidadoso, retirou uma espécie de aquário com água. Havia dentro um colar (de pérolas, seria?), uma estatueta de Buda, uma Senhora de Fátima (esta fui eu que acrescentei, para dar cor local…), uma linda pedra com cristais de quartzo, uma turmalina de negro metálico. Uma salamandra ia-se esgueirando por entre os objectos…
            Então, o conferencista interpelou um dos assistentes:
            Amigo, o que é que vê no aquário?
            – O que é que eu vejo? Vejo uma salamandra horripilante! Que nojo!
            É o mais importante?
            – Sim! Qual foi a sua ideia em trazer para aqui esse bicho nojento?
            Para o amigo verificar que, da variedade de objectos bonitos e sugestivos ali mergulhados, apenas no nojento é que vossemecê se fixou!
            A conferência estava feita, a farpa lançada. Nada mais havia a dizer!
                                                          
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 293, 2019-08-21, p. 6.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Ainda os nossos falares

            Vamos continuar na batalha para que o falar algarvio se mantenha e não se deixe inebriar pelas expressões e palavras doutras regiões do País. Não digo que, se assim fora, haveria revolução que era «um fim do mundo em cuecas», como proclamava meu pai para se referir a uma situação (nunca sei se engraçada ou desgraçada); mas que a nossa identidade é mesmo para se manter.
            Lembrou-me de imediato o Padre Afonso Cunha, a propósito da crónica anterior:
            «Ando a escrever um dicionário do falar algarvio (neste momento está parado porque estou a concluir o Memorial da Diocese do Algarve) e cerca de 80% é com citações de livros, revistas e jornais. Já li centenas de livros de escritores e poetas algarvios…».
            E Lídia Jorge não hesitou em comentar:
            «Tem muita graça, sim, o falar algarvio que vai passando. Mas a música cantada das palavras e das frases,  uma espécie de murmúrio grosso, gutural, às vezes grotesco, esse continua. A melodia da fala algarvia permanece. Já os vocábulos, felizmente, vão sendo corrigidos, quando correspondem a deformações. Outros ficam. Muito giro é o facto de, mesmo sendo do conhecimento geral de que a palavra arjamolho é uma corrupção de alger+molho, todos digamos arjamolho! Eu faço e digo assim, acho engraçado usar a corruptela».
Escaidinha d'uvas
            Eu também, vou pelas corruptelas, próximos do nosso dia-a-dia. Ind’agora, sou capaz de perguntar aos meus netos:
            – Queres uma escaidinha d’uvas?
            E, como escrevia a Lídia, ‘tem muita graça’! De facto, o que é uma esgalhinha de uvas, aquele cacho mais pequenino que a gente corta à mesa para ser mais fácil de manusear, que é esse cachinho senão uma escaida pequenina?! E dizemos «escaida», porque ‘escada’ é mais áspero, uma pessoa tem sempre medo de cair… Escaidinha é mais doce, mais ternurento e, assim, o neto até aceita melhor!...

                                                                                              José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 273, 20-08-2019, p. 13.


quinta-feira, 15 de agosto de 2019

O património do falar

             Quando a União Soviética ocupou a Moldávia, uma das primeiras preocupações foi determinar que se adoptasse o alfabeto cirílico e não o latino, porque, como se sabe, o Romeno é uma língua românica. E chegaram ao ponto de ordenar a destruição das placas funerárias nos cemitérios – para que a memória se apagasse.
            Uma das drásticas medidas impostas pelos Indonésios aquando da ocupação de Timor foi a total abolição da Língua Portuguesa, com as consequências que, ainda hoje, estamos a sentir, embora Xanana Gusmão e seus partidários, educados como haviam sido nas escolas portuguesas, tenham determinado, sem hesitação, que seria o Português a língua oficial de Timor Leste.
            Já não nos causa impressão ver, em Bruxelas, tudo escrito em francês e em flamengo, ainda que seja quase ridículo que, na zona flamenga, alguém nos responda «não compreendo» só porque estamos a falar-lhe em francês…
            Conhecida a longa tradição de luta pela autonomia, também não nos admira que, no aeroporto de Barcelona, se leia uma placa trilingue: em catalão, em inglês e só em terceiro lugar venha o castelhano.
Fig. 1 - Placa em Miranda do Douro
            E encontramos placas toponímicas bilingues nas várias províncias espanholas, na Irlanda, no País de Gales, inclusive em Miranda do Douro!… E aqui (Fig. 1) com o pormenor de, mui significativamente, ser o mirandês que vem em primeiro lugar!
Placa toponímica dupla em Toulouse
            Já nos poderá causar mais estranheza ao saber que, em Toulouse, os nomes das ruas estão em francês e em occitano (ou provençal), língua ancestral que já ninguém entende nem fala!... (Fig. 2).
            Conclusão: o falar é um património, revelador da nossa identidade, das nossas raízes!
                                                                       José d’Encarnação

Inserido, a 21 de Fevereiro de 2019, no blogue da Liga de Amigos de Conimbriga: https://laconimbriga.blogspot.com/2019/02/jose-d-encarnacao-professor-catedratico.html#more

terça-feira, 13 de agosto de 2019

A ingenuidade feita rainha no Casino Estoril!

               Bem lutou – e com pleno êxito! – o saudoso Nuno Lima de Carvalho para dar aos pintores ditos «naïfs» (ingénuos) merecido lugar de destaque. Quisera, inclusive, que as entidades locais se interessassem pelo assunto e viessem a dedicar a esta modalidade artística um espaço museológico. Não estavam maduros os tempos por estas paragens; estiveram-no em Guimarães, onde se criou o Museu de Arte Primitiva Moderna.
            Dir-se-á, porém, que, estando patente na Galeria do Casino Estoril a 39ª edição do Salão Internacional de Pintura Naïf – escrevi bem, 39ª e Internacional! – desde 1980 mais de 500 desses artistas apresentaram um total de cerca de 5200 obras, num certame que é o mais visitado da galeria!
            Vale a pena citar os nomes dos que ora ali estão representados, vindos dos mais variados locais de Norte a Sul do País: A. Barbosa, A. Réu, Antero Anastácio, Arménio Ferreira, Augusto Pinheiro (este, um nome consagrado!), Bento Sargento, Conceição Lopes, Deborah Collens (uma inglesa que fixou residência no Algarve), Dulce Ventura, Elza Filipa, Fernanda Azevedo, Leonel Pereira, Luiza Caetano, Manuel Castro, Maria Tereza, Nell (Helena Brito dos Santos, de Mangualde) e a farense Rute Castro.
          É costume destacar-se, em cada salão, um dos autores, em jeito de homenagem à obra desenvolvida. Desta feita, o destaque vai para Arménio Ferreira, de Oliveira (Braga), nascido em 1935 e que apenas em 1991 lhe deu na veneta de começar a pintar – e é o que se vê! Reproduzo a pintura a que deu o nome de «Monte alentejano», exemplo vivo do que é a arte naïve: a intensidade e variedade do colorido, a grande atenção aos pormenores, a ausência de proporções reais, um certo gosto pelos alinhamentos fictícios (aqueles girassóis, só vistos!...). Veja-se também o quadro campestre algarvio, de Manuel Castro, de quem se diz, no catálogo da mostra, que «é um dos melhores autores do mundo na prática desta linguagem pictórica, escolhendo como tema preferido a paisagem rural de características locais».
            Mas… melhor do que ver essas reproduções é ir até ao Casino e deliciar-se lá com os primores em exposição até 10 de Setembro, diariamente, das 15 às 24 horas.

                                                                       José d’Encarnação

Arménio Ferreira, o homenageado
Um monte alentejano, visto por Arménio Ferreira
Paisagem rural algarvia, por Manuel Castro

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Choveu música em Cascais

               Ainda que com notável atraso, não posso silenciar três concertos que, no final do mês de Julho, aconteceram em Cascais. Daqueles que não tiveram honras de anúncio em pacotes de açúcar nem publicidade nos painéis de rua.
            Refiro-me ao que aconteceu no dia 20: de tarde, o Refado, no Auditório Senhora da Boa Nova, na Galiza (S. Joao do Estoril); e, à noite, na Praça Cidade Vitória, frente ao edifício-sede da União de Freguesias Cascais e Estoril, em Cascais, este por iniciativa do grupo cascalense Cantares de Terra; e, a 29, depois de actuações em vários locais de Lisboa e de Cascais, o concerto de gala, no Salão Preto e Prata do Casino Estoril, no âmbito da iniciativa IFCM – World Choral Expo.

Refado
            O nome propõe que se reconheça nessa sessão a angariação de fundos para a Refood, organização que, como o nome indica, visa, em regime de voluntariado, aproveitar as comidas sobrantes das refeições nos restaurantes, a fim de, devidamente acondicionadas, serem distribuídas pelas famílias necessitadas a que a organização presta apoio.
            Dir-se-á, desde logo, que, a exemplo das sessões anteriores com o mesmo fim e idênticas características, o auditório acabou por se transformar numa imensa casa de fados. Ambiente descontraído, quase familiar, adjectivo que, na presente edição, tem todo o sentido, porque, em subtítulo, se escreveu «concerto solidário das famílias fadistas». Na verdade, cada fadista cantava dois fados e associava-se, no terceiro, ao membro da família que trouxera consigo.
            Assim, com exímia apresentação dos consagrados Diamantina Rodrigues (que ao trauteando os fados e que não deixou de, também ela, dar um ar da sua graça) e Carlos Alberto Moniz, desfilaram pelo palco do Boa Nova – como poderá ver-se pelas fotos que, embora não profissionais, ilustram esta nota:
            – Mico e o irmão Gonçalo da Câmara Pereira;
            – Tânia Oleiro e a mãe Maria do Céu Crispim;
            – José da Câmara e a irmã Teresa da Câmara Fonseca;
             Salvador Taborda;
            – a veterana Teresa Siqueira e o filho Rodrigo Rebelo de Andrade;
            – António Pinto Basto e o filho Gustavo (que potente voz, a deste jovem!).
           Eximiamente acompanhados (que delícia ouvi-los, mormente na maravilha que foi a guitarrada com que nos brindaram a abrir a 2ª parte!), Diogo Lucena e Quadros (que brilhante ele foi, à guitarra, que to bem a trata por tu!...), Jaime Santos, à viola (também ele, um mestre!), e Francisco Gaspar, na viola baixo (naquele acompanhamento discreto mas essencial).
            Foi tarde, mas pareceu-nos noite serena, reconfortante. Já o sol se pusera quando saímos, não sem antes – foi, aliás, após o intervalo – termos ouvido os apresentadores entrevistarem Hunter Halde, o visionário de fato branco e chapéu de feltro branco também (a sua ‘imagem de marca’!...), que, partir de 9 de Março de 2011, começou a recolher comida, em Lisboa, e a entregá-la a quem precisava, montado numa bicicleta…
            Hoje, a distribuição está bem organizada e todos quantos quiserem apoiar a Refood Cascais podem fazê-lo das mais variadas formas, designadamente oferecendo-se em regime de voluntariado. Contactos: refood.cascais@gmail.com e tel. 938 408 919.

Os apresentadores: Carlos Alberto Moniz e Diamantina Rodrigues














Diogo Lucena e Quadros, na guitarra portuguesa
Jaime Santos, na viola de fado
Francisco Gaspar, na viola baixo
A entrevista a Hunter Halde
VIII Encontro de Música Popular
            A partir das 21.30 horas, nesse mesmo sábado, 20, a 8ª edição desta série que visa dar a conhecer trechos da música portuguesa que entraram no ouvido de todos e que, por isso, os poderemos chamar de «populares». Dir-se-á que o «Pica do 7», do António Zambujo, é moda de agora e ainda não ganhou foros de ser popular; pois que me parece que não, uma vez que tamanho êxito entrou pela casa de toda a gente, que o sabe trautear a preceito.
            Singular iniciativa esta, dos Cantares da Terra, sempre numa noite de Verão, a alegrar o ambiente, no largo da Câmara ou, como foi este ano, no da Junta, uma vez que tem o patrocínio de ambas as entidades – e ainda bem!
            Faltou, por dificuldades logísticas, o segundo grupo convidado, Sons do Tempo, que deveria vir da Covilhã (e as antigas scuts continuam a ter de ser pagas a bom preço…); veio, de Canhas, junto à Figueira da Foz, o Emcantos, que nos encantou, também pela sua boa disposição e jovialidade. A finalizar, o grupo anfitrião, que sempre nos regala com originais arranjos saídos do saber e inspiração da Marta Garrido. O grupo está remoçado, os naipes bem dispostos e afinados e uma pessoa estaria a ouvi-los até mais não, não fosse haver por ali uma senhora que quer que tudo acabe às 23, porque ela é a essa hora que, inevitavelmente, abre o estaminé com jaze a querer encher a praça toda!...
            Um serão deveras agradável, com público atento, contagiado pelos ritmos alegres das nossas canções. E não hesitaram alguns dos estrangeiros passantes a ensaiar o seu pezinho de dança, pois então! Que a música convidava mesmo!
Actuação do grupo Emcantos, de Canhas (Figueira da Foz)
Instantâneo da actuação dos Cantares da Terra
Instantâneo do público
Outro instantâneo da actuação dos Cantares da Terra
O festival de coros
            Deslumbrante o que nos foi dado assistir no dia 29. Aquelas crianças e jovens encantaram-nos, não apenas pelo reportório apresentado, mas sobretudo pela sua entrega bem humorada e compenetrada ao que nos estavam a mostrar, com um saber extraordinário, pois que ao canto se aliou sempre uma bem agradável coreografia, servida por trajes típicos de cada país.
            Pelo palco passaram o Lily’Children’s Choir, da China; o Qatar Youth Choir; o Moran Children’s Choir, de Israel; o Coro Juvenil de Lisboa; o Cantemus Children’s Choir, da Hungria (que garridas eram as vestes!); e o Indonesia Youth Choir (excelente coreografia!). No final, em jeito de «combined Repertoire» todos os coros vieram para palco e todos cantaram, sucessivamente, temas típicos da China, do Qatar, de Israel, de Portugal, da Hungria e da Indonésia. Um encanto!
            No dia 29 foi uma das galas; contudo, desde 28 a 31 de Julho, diversas salas, em Cascais e em Lisboa, acolheram actuações ímpares dos coros, no âmbito desta World Choral Expo, organizada pela primeira vez em Portugal, sob a superintendência da IFCM, a Federação Internacional de Música Coral.


          Que venham mais vezes, pois estou certo de que, desta sorte, novo impulso ganharão os grupos corais do nosso país!
           
                                                                       José d’Encarnação

P. S.: As fotos do espectáculo no Casino forma gentilmente cedidas pelo Gabinete de Imprensa da Sociedade Estoril-Sol. Bem hajam!

sábado, 3 de agosto de 2019

Acabar, acabar, acabar!


            Em vésperas de terminar a legislatura, o normal será que os deputados diligenciem por levar a bom porto o que, algum dia, tiveram entre mãos e gostavam de ver concluído.
            Contava-me o Zé, há dias, das trocas de palavras que tinha, amiúde, com a patroa:
            – A senhora, estou eu com as mãos na massa, pede-me com urgência que meta mãos noutra!..
            Ocorrem-me, a este propósito, as passagens de dois livros. Uma é deveras conhecida, d’Os Lusíadas (canto I, estrofe 40):
            «E tu, Padre de grande fortaleza, / Da determinação, que tens tomada, / Não tornes por detrás, pois é fraqueza / Desistir-se da cousa começada».
            A outra vem num dos meus livros de cabeceira preferido desde a juventude, de folhas amarelecidas e amplamente sublinhado ele está, A Arte de Estudar, de Mário Gonçalves Viana (Editora Educação Nacional, 1943, p. 178):
            «Ao trabalhos começados e não acabados representam uma tortura, constituem uma espécie de repreensão constante, de sinal-de-alarme, de remorso vivo! Michelet confessava a Goncourt que estes trabalhos iniciados, e não concluídos, lhe produziam não só graves preocupações, mas terríveis dores de cabeça. A maneira como conseguiu dominar este mal foi bem simples: habituou-se a fazer incidir o seu pensamento e o seu esforço, de cada vez, sobre uma só coisa, sobre um único assunto».
            Essa frase põe o acento numa realidade a que, com enorme frequência, se não dá atenção: o tempo do pensamento.
            Pedem-te, por exemplo, que digas umas palavras no aniversário da colectividade. “Coisa pouca", dizem-te, “que tu já estás habituado!”. Certo: serão cinco minutos! Contudo, e os instantes que medeiam entre o momento em que te fazem o convite e o acto em si? Não te acontece que, de vez em quando, te lembras e pensas no que será importante dizer? Ou seja, o tempo do pensamento vai ser bem superior ao dos “escassos" cinco minutos da intervenção – aspecto que é muito raro ter-se na devida conta.
            Portanto, nunca será de mais batalhar para que, na nossa vida e na da comunidade, as obras de Santa Engrácia se concluam! Para serenidade de todos!

                                                        José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 759, 2019-08-01, p. 11-12.