quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Com os emojis empobrecemos!

Houve oportunidade de salientar, na passada edição, quão rica é a língua portuguesa, mormente por, na sua origem, além do latim, ter incorporado inúmeras palavras árabes para designar objectos e acções do quotidiano.
            Atribui-se aos Fenícios a criação do alfabeto, em que cada sinal (letra) representa um som, de modo que a junção dos sons dá palavras – e por meio delas nos entendemos. Os antigos egípcios, ao invés, começaram por usar desenhos, os hieróglifos, o que tornava mais difícil expressar ideias e formar frases.
            Para as inscrições sobre pedra, os Romanos – e depois deles muitos povos – optaram por usar abreviaturas ou siglas de palavras, cujo significado bem se compreendia, por ser necessário poupar espaço.
            Hoje, multiplicam-se os chamados ‘emojis’ e ‘emoticons’, sobretudo nas comunicações digitais. Reflectem emoções e sentimentos e… poupam trabalho!
            O escritor Christophe Clavé tem chamado a atenção para esse fenómeno do empobrecimento da linguagem. É isso: em vez de escreveres «Gostei imenso do que escreveste», tu pões um coração; em vez de fazeres uma declaração de amor, copias um coração a palpitar. Ou seja, começas a não ser capaz de te exprimir, de seleccionar as palavras correctas.
Esse, o perigo para que Clavé chama a atenção, porque tudo isso faz parte de um plano universal em que, se não estivermos atentos, acabaremos por ficar enredados. Escreve ele:
«O desaparecimento gradual dos tempos (conjuntivo, imperfeito, formas compostas do futuro, particípio passado) dá origem a um pensamento quase sempre no presente, limitado ao momento: incapaz de projecções no tempo.»
E livros como o célebre “1984”, de George Orwell, ou “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, contam como todos os regimes totalitários sempre procuraram ‘atrapalhar’ o pensamento, mediante a redução do número e do significado das palavras.
É este, de facto, um enorme grito de alerta. Para todos. Para os pais e educadores, em primeiro lugar.

                                                                                   José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz (S. Brás de Alportel), nº 322, 20-09-2023, p. 7.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Esta vontade de estar vivo!

            Paro, de vez em quando, e pergunto-me a mim próprio se não era melhor estar mudo e quedo, saboreando mui despreocupado os dias que me é dado viver…
Uma colega, há dias, garantia-me: «Leccionei durante anos e anos! Aposentei-me, parou». Eu, não: está-me no sangue a vontade de partilhar experiências e recordo quanto me agradava, após uma viagem no quadro do programa ERASMUS, contar logo aos meus estudantes o que aprendera. Sentia que, desta forma, eles, aos 20 a pouco anos, acabavam por ficar a saber o que eu aprendera aos 50. E era bom.
 João Lourenço Roque, catedrático de História no mesmo dia que eu (a 05-06-1991). também se aposentou. Ao contrário de mim – que continuei, depois da aposentação, a não abandonar a minha dama, a Epigrafia –, ele largou por completo as lides da História em que se especializara e rumou a Calvos, a sua remota aldeia natal, na freguesia de Sarzedas, concelho de Castelo Branco. Aí se dedica à agricultura, seguindo a norma dos clássicos – “o regresso à terra é o melhor” – e escreve crónicas para o jornal albicastrense Reconquista. Faz-me lembrar o nosso Ibne Mucana, de Alcabideche (Cascais), que, no século XI, depois de anos e anos nas cortes dos reinos de taifas, cansado dos sofisticados ambientes cortesãos, voltou para a terra natal e se dedicou a amanhar magras terras.
São as crónicas de João Roque revisitação constante de pessoas e lugares, para que se saiba: estão vivas, os lugares existem e carecem de atenção. Cada crónica, uma viagem sem rumo certo, aos ziguezagues (como ele próprio reconhece), ao sabor das memórias e das circunstâncias, corrente desenfreada – e nisso reside o seu encanto. É capaz de estar a falar de azeitonas e lembrar-se de Coimbra e do seu amor – e a gente vai por i com ele!...

Por isso deu à série – que recentemente reuniu em volume (Digressões Interiores 3,  Palimage, Coimbra, 2021) – esse nome de «digressões». Nesse, que reúne o que escreveu de 2017 a 2021, há páginas a não esquecer, porque retratam quanto todos nós passámos e sentimos: o tempo da pandemia! As reacções, os sentimentos, as dúvidas… «Digressão» é isso mesmo: passar dum assunto para o outro, sem tir-te nem guar-te, como quadro de rica policromia. E «interiores», para realçar a beleza ímpar dum interior que merece ser celebrado, cantado, mantido no seu melhor, mantido nas suas gentes!

José d’Encarnação.

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 851, 15-09-2023, p. 10

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

«A era da burrice»

            
Ilustração de José Luís Madeira ©

            A frase não é minha e cheguei a ela depois de ter recebido o excerto de um artigo de Christophe Clavé, autor que eu também desconhecia, que começa assim: 
O QI médio da população mundial, que sempre aumentou desde o pós-guerra até ao final dos anos 90, diminuiu nos últimos vinte anos. É a inversão do efeito Flynn”.
Fui ver quem era Christophe Clavé. Nascido em 1968, um dos seus livros mais conhecidos é «Les voies de la stratégie», que não trata dos meios para uma estratégia militar ou económica, mas de uma outra, muito mais complexa e sorrateira: a do empobrecimento da linguagem.
Também fui saber de James Flynn, psicólogo americano que, ao escrever, em 1982, o livro «A era da burrice», demonstrou haver um «aumento sistemático e progressivo dos resultados nos testes de inteligência». A isso se chamou o efeito de Flynn. Explica-se: o normal seria que, devido às novas potencialidades tecnológicas, o quociente médio de inteligência da população aumentasse, pelo que os testes à inteligência careciam de ser periodicamente reavaliados, para os seus resultados serem credíveis. Ora, o que ora se verifica é que se está a ir, como diz o Povo, «de cavalo para burro». Esta, a referida ‘inversão do efeito Flynn’.
Daí o progressivo empobrecimento da linguagem, desejado pelos potentados que pretendem governar o mundo, aniquilando a diversidade. O erro que Mark Bauerlein, escalpelizou no livro The Dumbest Generation, «A Geração Mais Burra» (2008), de subtítulo bem sintomático: «Como a era digital estupidifica os jovens americanos e põe em risco o nosso futuro». Hoje, as crianças de 7 ou 8 anos crescem de telemóvel na mão, quando deviam começar a ler livros!...
Agora compreendo porque é que, quando eu escrevo «dera atenção», a escrita inteligente me corrige para «será atenção». O pretérito mais-que-perfeito é areia de mais para o algoritmo! E porque é que Alice Marques me disse: «Tu usas formas verbais que já ninguém usa!».
Aí está: quanto menos tu dominares a linguagem, mais facilmente nós te dominaremos a ti! Daí a urgente necessidade de dar apoio aos falares locais e ao estudo cada vez mais afincado da língua materna.
Contra os canhões da uniformização, lutar, lutar! E nessa luta ninguém – ninguém! –  está dispensado de aprender a saber disparar os canhões!

                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 850, 1-09-2023, p. 10.