Era
Fauno, segundo a mitologia romana, o deus dos campos e dos bosques. Nestes
últimos, poder-se-iam ouvir estranhas vozes que dele, ao que parece, partiriam
a anunciar acontecimentos nefastos. Amiúde se fala dele no plural: eram as
ninfas dos bosques perseguidas por chifrudos faunos de pés de cabra, qual Lobo
Mau à espreita da Capuchinho Vermelho... Urgia, pois, estar alerta contra as
suas arremetidas e, porventura, foi por isso que se gerou hábito de o
representar em pedras de anel, para o exorcizar, como se vê numa achada na villa
romana de Caparide, em Cascais. |
Fauno a tocar flauta
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Tinha
Fauno uma esposa, cujo nome acabou por se omitir, porque, casta e fiel ao seu
marido, jamais saía de casa, se deixou cativar, um dia, por um jarro de mui
excelente vinho doce, que lhe apresentaram. Bebeu deliciada e ficou,
naturalmente, com um grãozinho na asa…. Vendo-a nesse estado, Fauno
enfureceu-se, não lhe perdoou e fustigou-a até à morte com um ramo de mirto.
Caído em si, ao vê-la exangue, o arrependimento sobreveio e promoveu o seu
culto como Deusa Boa. De acordo com outra versão, essa que foi depois a Deusa
Boa não era esposa mas filha de Fauno, o qual a tentou seduzir; não tendo
conseguido os seus intentos, usou dum estratagema para os conseguir: a ambos
transformou em serpentes! O que os omnipotentes deuses faziam!...
Seja como for, a Bona
Dea – assim se diz em latim – depressa ganhou o entusiasmo das mulheres
romanas. Assim, no princípio do mês de
Dezembro, feita prévia abstinência e sob orientação das Vestais, reuniam-se em
casa do cônsul ou do pretor, levando as mais variadas flores (com excepção do
mirto). Celebrado o sacrifício em honra da deusa, a festa assumia uma
tonalidade cada vez mais sensual, sob influência do vinho, da música e das
danças, degenerando facilmente em orgia. Nenhum homem era aí admitido.
E porque vem ao caso falar aqui de Fauno e da Bona Dea?
É que aconteceu que - no âmbito do projeto de
requalificação urbana da Rua do Sembrano, em Beja, com vista à construção do museu
de sítio que ora existe no local, em pleno centro histórico, portanto, da
antiga colonia romana de Pax Iulia – aí se realizaram escavações arqueológicas prévias, nas décadas de 80 e 90 do
século passado, da responsabilidade de Susana Correia e José Carlos Oliveira e,
numa última fase, de Carolina Grilo.
Daí resultou que,
no decorrer da abertura de uma vala para o saneamento, se identificou um pedaço
de pedra com letras, reutilizado como tampa de um antigo coletor entre a Rua do
Sembrano e o Largo de São João. Tratava-se de um bloco rectangular de mármore cinzento,
cuja face dianteira fora mui cuidadosamente alisada para receber a inscrição, e
que, pelo seu aspecto, teria servido originalmente como lintel de um pequeno templo.
Feito o
desdobramento da inscrição e tendo em conta as características da paginação,
optou-se por aí ler o seguinte:
BONA[E ‧
DEAE] / [IV]LIA ‧ L(ucii) L(iberta)
SAT[VRNINA?] ‧ [D(e) ‧
S(ua) P(ecunia) ‧ D(ono) ‧
D(edit)] [?]
Inscrição em
latim, que poderá traduzir-se desta forma:
À Boa Deusa. Júlia
Saturnina, liberta de Lúcio, ofereceu a expensas suas.
Por conseguinte,
uma antiga escrava da família Júlia – uma das mais conceituadas famílias da
colónia, fundada precisamente por Júlio César – decidira mandar construir um pequeno
templo em
honra da divindade da sua devoção.
Da sua e, sem
dúvida, também das mulheres de Pax Iulia. Ficava seguramente o templete
num dos principais bairros urbanos e essa atitude de Júlia Saturnina terá
concitado em seu redor o elemento feminino da urbe, que, desta forma, podia
organizar os seus convívios, a pretexto celebrarem a Bona Dea.
Sabemos que assim
acontecia na Península Itálica e na Gália. Este é, porém, o único testemunho
desse culto na Hispânia romana, o que confere enorme valor documental a este, aparentemente
bem singelo, fragmento epigrafado, mormente porque datável dos primórdios da
existência da colónia, no século I da nossa era.
Tal facto é,
ainda, mais saliente do ponto de vista histórico, porque desses cultos
mistéricos, reservados, já se conheciam vestígios em Pax Iulia: uma
inscrição dá conta de que elementos vindos de Braga formaram um grupo, o sodalicium
Bracarorum, para honrar o deus Sol; uma outra informa que, em cerimónia
ritual presidida por um sacerdote, dois membros da mesma família se devotaram à
Mãe dos Deuses, Cíbele, depois de terem sido aspergidos com o sangue da vítima
imolada.
Tudo nos leva a
crer, pois, que, sob a capa da religião, eram os interesses socioeconómicos que
também contavam para os membros dessas associações. Mais uma prova, portanto,
da relevância social e financeira usufruída pelas gentes da colónia.
Há, porém, um dado
que importa frisar: insignificante fragmento epigrafado, à primeira vista sem
préstimo de maior, acabou por constituir notável contributo para a história da
cidade na época romana. Sabemos que a cidade de Beja cresceu, ao longo dos
séculos, por cima do aglomerado urbano erguido pelos Romanos. Muitas das pedras
desse tempo foram sendo aproveitadas nas muralhas, nas casas e muitas jazem ainda
no subsolo… Todo o cuidado é pouco para se salvaguardarem esses vestígios,
tijolos que são do edifício da nossa memória secular!
José
d’Encarnação
Publicado em Diário
do Alentejo (Beja), 26-02-2021