«A
Rosa mora numa rua escura, num segundo andar escuro e costuma vestir-se normalmente
de preto. A sua rua é uma rua a subir, estreita e cheia de prédios iguais a
ela: escuros e velhos, cheios de reumático e humidade na alma. Não moram carros
na sua rua e os vizinhos passam silenciosos carregados de anos e solidão. É uma
rua fria, feia, e sem graça nenhuma».
Trecho
colhido a esmo do livro Viva a Vida, de Vítor Contreiras Barros. A
tristeza que ensombra a velhice…
Para
documentar dois dos muitos aspectos com que este livro nos mimoseia. Primeiro,
a apropriada acuidade da escrita. Estamos mesmo a ver a rua, a sentir-lhe a humidade
nos ossos… Depois, a atenção do autor às pessoas. Vejo-o, ao longo do livro, de
perene esferográfica na mão, qual pintor agarrado à tela – para contar o que
vê, o que ouve, o que lhe desperta atenção. E tudo isso passar a escrito. Em
partilha com a dor, a alegria, a vida – que ele nos incita a viver! Que viver é
isso mesmo: estar atento aos outros, comungar, sentir. Na urgência, como diz,
de «dar vida às palavras»!
Logo
a capa é um hino. A essa vida, porque aí se mostra a mãe, Gabriela, no trajar
quotidiano das nossas mães e avós. Parece encostada, mas não está, a um valado
de pedra seca, como são os nossos valados, com a alfarrobeira em frente; e, de
mãos dadas (tinha que ser!), Petra e Núria, símbolos da vida por vir; está-lhe marcada
na estranheza dos nomes a vontade de galgar horizontes doutros linguajares…
A
mãe, de quem deliciadamente escreveu histórias e memórias. Que delícia lê-las (p. 244-281)!
Um livro que é retrato do S. Brás rural
(ou do Algarve rural?), aberto, todavia, ao que os novos ventos lhe foram
trazendo, nos sítios já com cafés, cabeleireiras, televisão e... Ora leia-se
esta pincelada soberba:
«Vestiu-se
de preto, como sempre fazia desde que o seu Adérito partira, pegou na mala e no
saco de asas amarelas que na última vez que tinha ido à vila comprara no
chinês. Entrara lá por engano cuidando que iria ao café da Teresa e do Alberto
e por vergonha acabara por comprar aquele saco. Até que não tinha sido caro e
era bem bonito…».
Que
tal?
Já
confessei que o li de afogadilho. Tenho-o, contudo, à mão para, de vez em
quando, o voltar a abrir, para me deliciar com estas «histórias, memórias,
divagações e loucuras». E entre as divagações ou as loucuras perpassa aquele
realismo mágico tão próprio das gentes do Barrocal. Nesta noite de Lua Cheia,
naquela encruzilhada além, não viram vossemecês o lobisomem?...
José d’Encarnação
Publicado em Notícias de S. Braz, nº 291, 20-02-2021, p. 13.
Obrigada Zé..continua a mandar é um gosto.
ResponderEliminarÉ sempre um gosto lê-lo.
ResponderEliminarConheço essa rua...
ResponderEliminarAbraço
É sempre um prazer ler estes textos, Zé. VIVA A VIDA, de Vítor Contreiras Barros, sugeres tu nesta bela recensão, que vale a pena ser lido, reconhecendo ao autor o mérito de saber retratar espaços e gentes, e uma especial atenção aos pormenores que ensombram, ou iluminam a vida. Duas grandes virtudes para quem escreve. E para contrastar com a tristeza de existência da personagem de idade avançada aqui apercebida por umas umas linhas sugestivas, temos a força da união, e a alegria indefesa, de duas meninas vigiadas pela avó, que tenta suprir essa vulnerabilidade com a experiência que detém. Duas gerações diferentes, uma no princípio, outra em fase adiantada do percurso. E tudo se passa em S. Braz de Alportel... Não se vê sinal do lobisomem, perdido nas brumas do tempo...só esboços de histórias futuras de que o Barrocal se orgulhará. Um abraço enorme.
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