Inesperada companhia
Não
esperávamos, porém, ter um almoço assim.
Saboroso, o «bife à cavaleiro», muito
mal passado, como recomendáramos à Paula; mas o inesperado foi a companhia. É
que eles descobriram, nessa altura, as migalhas espalhadas pelo murete e foi um
encanto de ver! O casal de rolas à compita, quem debica mais. Por entre elas, quase
a medo, o pardal. E digo «o», porque se me afigura ser sempre o mesmo que nos
visita. A janela da cozinha onde almoçamos dá para esse lado do jardim e
pudemos, por isso, apreciar o vaivém. O pisco, de papo alaranjado, já nosso
conhecido de há muito, veio juntar-se-lhes e aproveitava uma distracção dos outros para ir também debicar. E veio o
melro, mais altivo, mais desconfiado, este com algumas penas brancas no pescoço
que quase nos fez desconfiar se seria melro mesmo; mas era, com o bico amarelo
e o ar apresentado no debicar, ao contrário dos outros, mais familiarizados com
o ambiente, que debicavam de mansinho, na certeza de que, àquela hora, ninguém
viria pôr carros na praceta e incomodar-lhes o repasto. Do que eu gostei mais
desta vez foi da toutinegra: comeu, saltitou de ramo em ramo, como fizera o
pisco e foi-se até ao bebedouro do canteiro. Bebericou e – zás! – atirou-se lá
para dentro, saracoteando-se toda. Subiu para um tronco, sacudiu-se e, de novo,
foi prá água!...
Gostámos,
confesso, da companhia, neste privilegiado princípio de tarde calma, sem
barulho de carros na avenida nem sirene s
de ambulâncias. A serenidade.
Sim, o café teve de esperar…
…
porque o Alta Definição era com um gigante que muito estimamos: Ruy
de Carvalho.
Conversa
tranquila, como Daniel de Oliveira sabe manter. A evocação
de uma vida onde as dificuldades não faltaram, mas a esperança sobrou; onde a ternura,
a boa disposição , o respeito total
pelos outros foram semeando – continuam a semear!... – simpatia a jorros.
E
hoje, a poucos dias de completar 90 anos, Ruy de Carvalho foi mais uma lição e, tranquilamente, ia-nos dando conta do que
foi, do que é, do que ainda espera continuar a ser…
«É
sempre o amor que nos salva».
«Gostava
de poder semear a doença do bem e do final da dor».
«Todos
os anos passo o dia da minha morte».
«Como
gostava que me lembrassem? ‒ ‘Que o Ruy foi realmente útil quando cá passou!’»…
Só
largos momentos após a resposta à pergunta sacramental «O que é que dizem os
seus olhos?», é que nos apercebemos de que ainda não bebêramos o café!...
José d’Encarnação
P. S.: Transcrito na íntegra em Renascimento
[Mangualde], nº 703, 01-03-2017, p. 11 - gesto que muito agradeço.