domingo, 27 de novembro de 2011

Andarilhanças 25

Pela canonização do carro amarelo
Recebi um vídeo em que se dá conta das lojas onde ora se compram – ou alugam – ‘trajes’ de mendigo e, inclusive, se disponibilizam criancinhas «de fazer chorar as pedras da calçada»!... O negócio de ser pedinte, tão antigo como as civilizações urbanas. E todos nós teremos mil e uma histórias para contar nesse sentido. A velhinha toda trémula e andrajosa, de rastos, que nós pensamos estar para morrer em breve, desgraçada, e que, noutro dia, somos capazes de a ver a passear, satisfeita, em local diferente...
O último foi o do carro cuja ‘canonização’ ora se propõe por ter feito um milagre, testemunhado ao vivo por um videoamador. Trata-se de um senhor de muletas, com uma perna só, que vai a atravessar a rua; o carro amarelo aparece disparado e – ó pernas, para que te quero!... – o aleijado larga as muletas e foge a sete pés para não ser atropelado! Com as duas pernas bem no chão, entenda-se!...

Os dois galináceos
Sentei-me num dos bancos do Parque Marechal Carmona, no parque infantil. E ainda não tinha sequer feito menção de abrir o saco para tirar umas bolachinhas para o Marco, já o simpático casal, lindo galo e linda galinha, estavam postados diante de nós, a dizerem que… existiam!
– Olha! Também eles já sabem o que é a crise! – comentou a senhora ali ao lado.
Rimo-nos, claro. Também eles já sabem…

Antero de Sales Gomes

Faleceu a 14 de Fevereiro do ano passado, em Angra do Heroísmo, o Dr. Antero de Sales Gomes.
Natural da Vila da Ribeira Grande (freguesia de Nossa Senhora do Rosário, Ribeira Grande, Cabo Verde), onde nascera a 29 de Janeiro de 1926, fez a sua licenciatura em Românicas na Faculdade de Letras de Coimbra. Pelo poema que seu colega Lélis lhe dedicou, no Livro de Curso de quartanista, em 1953, se ficou desde logo a saber dos seus interesses intelectuais:
«Falarás das minhas tendências filológicas, dialectológicas; sobre o crioulo da minha terra e a nostalgia pelos barcos à vela, pela morna dolente e quente, pelos vales, pelas montanhas e coisas tamanhas que fazem bela a minha terra».
Alto – todos recordarão a sua figura imponente de um metro e oitenta – ensinou Português e Francês por muitos anos na Escola Salesiana do Estoril, para onde religiosamente se deslocava de comboio, vindo de Algés onde morava. Professor exigente mas sempre atencioso, disponível, pronto a ajudar. Tive a honra de conviver com ele durante os oito anos que também ali leccionei; uma presença sempre afável, amigo do seu amigo, de piada fácil.
Após o falecimento da esposa, foi para Angra do Heroísmo, onde viveu o resto dos seus dias, rodeado do carinho familiar. Que descanse em paz!

Monografias que fazem história
À semelhança do que já acontecera com o Colégio da Bafureira, que no ano passado completou 100 anos, assinalados com a publicação pela autarquia Cem Anos a Ensinar – Colégio da Bafureira 1910-2010, fruto da investigação feita pela equipa do Arquivo Municipal, para onde, aliás, tinham transitado os arquivos daquele estabelecimento de ensino, foi agora a vez de uma outra escola, a Escola 31 de Janeiro, marco do republicanismo paredense, como o próprio nome o dá entender: Rui Pinto, docente de História na instituição, lançou mãos à obra e contou, em livro, o que foi esse século de «instrução, educação e progresso».
Aplaudam-se ambas as iniciativas, pelo que representam como fonte para a história local.

Exposições
Se são de muito louvar as juntas de freguesia que mantêm em franca actividade as suas galerias de arte, facultando oportunidade aos artistas de ali mostrarem as suas obras (até 6 de Dezembro, temos, no Estoril, pinturas de Isa Fonseca e fotografias de Alfredo Fachada), não é de menos aplaudir a exposição fotográfica e documental recém-inaugurada no Centro Cultural de Cascais sobre temática arqueológica: o que por aqui se fez em meados do século transacto e, de um modo geral, a enorme investigação desenvolvida pelo Instituto Arqueológico Alemão. A não perder!

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 291, 23-11-2011, p. 6].

Com o Cachimbo de Meu Pai...

... de Carlos Carranca [1]

Fumo, cachimbo, pai… Memória, afecto, serenidade.
Fumei cachimbo; meu pai fumou cachimbo. Meu avô paterno fumava cachimbo e não posso imaginá-lo sem ser de cachimbo na boca – sempre!
Um fumo diferente, bem cheiroso… Um fumo que nos inebria e seduz; provoca a imaginação; evola-se, como incenso em purificante altar de deuses…
Depois, o ritual: acendia-se friccionando o fuzil na pederneira (o sílex pirómaco) que queimava a isca, semente da isqueira. Talvez se não saiba que isqueiro era precisamente a caixa onde se guardavam as iscas… Assoprava-se para ficar em brasa e, paulatinamente, pacientemente, o lume ia pegando até cobrir a superfície toda, atiçado pelo sorvo a espaços… De seguida, era aspirar de quando em vez, saboreando – que a ciência residia em não deixar apagar! E sempre a carícia quente na mão, do fornilho arredondadamente suave, lustroso, bom…
Mais tarde, nem sempre todas as noutes, ou pela manhã, a operação da limpeza, em ritual também: sopra pela boquilha, raspa bem o fundilho, seca tudo muito bem…

Pode não apreciar-se o conteúdo do livro, os versos, alinhados ou não, de Com o Cachimbo de Meu Pai; contudo, mesmo que só nos quedássemos pela capa, tínhamos ali a Poesia toda, entendendo por Poesia aquela forma de muito dizer com palavras poucas, de muito sugerir com imagens mínimas, de longo historiar na fugacidade do momento.
Castanha a cor da capa, para fazer sobressair brancuras; artístico alongamento do banal código de barras, a sublinhar três eloquentes depoimentos, na quarta capa.
O Poeta, ali, em corpo inteiro!

Tive o privilégio de arguir a tese de doutoramento de Carlos Carranca – e este é, creio, o seu primeiro livro de Doutor por extenso. Na tese [2] pôs em paralelo Torga e Unamuno, dois viscerais patriotas, entendendo-se por patriotismo o amor pelo vernáculo, pelo típico, pelo que entranhadamente é nosso e nos distingue.
Ecoa essa temática na quadra puxada para a badana: a Pátria é tudo o que nos envolve, nos impregna, o bibe e o cachimbo e – claro! – todas as fases intermédias dum nascer rodeado. Os presentes e os ausentes. Um património – nosso! «Pátria», de pai, de antepassado, de pessoas que vieram antes de nós, que estiveram junto a nós, que partiram antes de nós – mas aqui estão, bem presentes! «Menino de bibe», «cachimbo de meu pai»…

Gosto das pinceladas de Rui Vasquez. Enigmáticas. Olhos que perscrutam, a desvendar negruras. Pensativas, serenas, confiantes…
Meditação. Paragem – que o gesto de semear palavra requer longos silêncios também. Cantochão em catedral de preces sussurradas.

Dividiu o Poeta em três partes o seu livro, identificadas por uma epígrafe e por esses desenhos de Rui Vasquez:
– Perspicaz olhar na página 8, precedido por uma passagem da 1ª (e não da 2ª) Carta de S. Paulo aos Coríntios (3, 18), que reza assim (permita-se-me que dê uma versão diferente da transcrita): «Ninguém se engane a si mesmo; se algum de vós se julga sábio segundo este mundo, faça-se louco para se tornar sábio». O versículo seguinte, não transcrito, explicita o pensamento do Apóstolo: «Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus, pois está escrito ‘Eu apanharei os sábios na sua própria astúcia’».
– Olhar atento na pág. 24.
– Expectante na pág. 42, antecedido este por uma afirmação de Raul Brandão acerca do Homem e da sua arte histriónica.

Perguntar-se-á: mais um livro de poemas… para quê, num país de poetas? Aliás, eu acho que o são todos os países, pois escrever palavras belas e poucas constitui apanágio intrínseco do Homem, ainda que, em ritual (ou não) de acasalamento, gestos e sons de todos os animais sejam versos pela aragem derramados…
Tem este 36 poemas, quase todos de uma página só. E que pode dizer-se numa página, três-quatro linhas ao fundo dela, como se houvesse medo de a preencher toda, de sujar imaculadas brancuras?...

Fez tese Carlos Carranca sobre Torga e Unamuno, como disse. Leu e releu esses autores; longamente meditou sobre o que eles disseram. Era suposto, pois, que apresentador digno também lesse e relesse, meditasse, perorasse, contasse tudo de fio a pavio… Apesar dos longos anos debruçado sobre os escritos de um e de outro, Carlos Carranca não esgotou, no entanto, o pensamento de Torga e de Unamuno; antes pelo contrário: abriu caminhos, despertou apetites, numa sedução.
Assim, o apresentador: não pode esgotar o tema; deve, sim, torná-lo, se possível, ainda mais aliciante.
Carlos Carranca poeta consubstancia em si o pensador, o cantor e… o político! Permita-se-me, pois, que a esses três aspectos ora me cinja.
Pensador
Captando ecos de outras andanças, inclusive o da tese de doutoramento, onde o tema da religiosidade sempre esteve patente, assim como na sua investigação sobre Torga como ser religioso,[3] agarro no poema da pág. 30: «Nada ser de Deus».
Enigmático. Deveras enigmático. Parece confessar-se ateu, porque Deus é – para ele, poeta – o nada, afinal, com um rosto inexistente, mas que, em versos («palavras arrumadas»), teimam em atribuir-Lhe. É, pois, Deus uma criação poética? Todavia… mesmo usando como escada os versos – «palavras gastas e sempre renovadas» – o Poeta apenas consegue subir ao nada. Mágoa? Apenas verificação – resultado de uma experiência laboratorial muitas vezes repetida? «Por me saber ateu» – escreve. É Deus ou o Poeta o sujeito desta frase? Claro que tem de ser o Poeta que como tal se reconhece… Contudo, reconhecer-se-á?... Estão gastas as palavras, sim; não as proclama, no entanto, «sempre renovadas»? Teimosia é ou… a conclusão, alfim, de uma reflexão quotidiana, de palavras sempre renovadas? Será Deus um «nada»? Ou, para o Poeta, é poesia uma religião?

Por estes campos onde Deus não mora
há cruzes e santos e alminhas
(pág. 34)

Sete versos e… tanto por pensar:

Nada ser de Deus senão dos versos
Que em palavras arrumadas
lhe vão dando o rosto que não tem.
Por me saber ateu
dos versos subo ao nada
a caminhar palavras gastas
e sempre renovadas.
(pág. 30)

Cantor
Cantor é Carlos Carranca. Para ele, as palavras têm melodia, reconhece-as «pelo cheiro»; «ao fim do dia», porém, «suadas e humanas»… elas são «poemas por detrás da vida»! (pág. 31). Alguns dos seus textos são, pois, claramente para cantar, ao ritmo dolente de rufares pelas quebradas…
«Que espero eu da poesia?» – pergunta, a dado passo. Sopa fria, sapato roto, pé descalço… Tudo isso! Mas, acima de tudo, «dentro de mim melodia»! (pág. 13).
E deixamo-nos embalar em jeito de suave balada:

porque não sei cavalgar
dou-te minhas esporas de prata


porque não sei prantear
dou-te os meus olhos de vento
(pág. 15)

às vezes sobra-me tempo
onde o tempo é já a sobra
doutro tempo que passou
(pág. 17)

culminando na balada para o nosso Luiz Goes (p. 46):

Andam p’la terra os poetas
dizem que são de ficar
dizem que são de ficar
são como os filhos das ervas.

Andam p’la terra os poetas
Nas ondas altas do mar


Ecos trovadorescos também.

Político
Finalmente, o político, arauto da liberdade, como se exige que o sejam sempre os poetas.
Canta-se a fraternidade – olá, Xanana, cristo-o-torto, cristo-o-velho, cristo-o-louco, cristo-o-belo! (pág. 47).
Verberam-se guerras estranhas:

No hospital de Prizren
lágrimas devoram o rosto
das vidas bombardeadas.
(pág. 49)

Deixo de lado Coimbra, a Coimbra das memórias – olá, Couceiro! Olá, João Alvarez! Olá, Álvaro Aroso… – que também por aqui há (houve!) política e bem se aprendeu a lição de Torga, Miguel como Unamuno, Miguel como Cervantes. E é pungente o final. Bem, o final final lembra-me José Gomes Ferreira e a sua atenção às coisas mínimas da vida;[4] neste caso, o Poeta vê que a seu lado agora se assenta um cego (pág. 59) e quase lhe apeteceria começar a dissertar sobre a cegueira.[5] Não disserta, porque o cego lhe lembra Homero, o mítico poeta épico que dizem ter sido cego, e descobre um Homero que ri. Riso mordaz deve ser, porque agora já não há lugar para os épicos:

Agora que não temos um país
e onde
pelo sonho que fomos já não vamos (p. 57).

Missão cumprida, Poeta!
Do cachimbo de teu pai se evolavam fumaças olorosas, brincando na brisa suave… Agora, as fumaças fedem; a brisa virou tornado; e sobre a mão que segura o cachimbo impende espada de Dâmocles, em permanente ameaça.
Se já pelo sonho querem que não vamos; se o comboio já não passa tragado pelo progresso; se o recreio da escola virou corredor estreito… teimosia maior há-de ser a nossa, Poeta! Renegaremos Régio, solenemente, e vamos proclamar: «Ai sim? Então… eu vou por aí!».

NOTAS
[1] Edição de Talenticious, Figueira da Foz, 2011.
[2] Dissertação em Línguas e Literaturas Modernas, especialidade de Língua, Cultura e Literatura Portuguesas, intitulada O Casticismo em Torga e Unamuno, foi defendida, a 1 de Junho de 2010, na Universidade Autónoma de Lisboa.
[3] Torga – o Bicho Religioso, Universitária Editora, Lisboa, 2000 (2ª edição).
[4] Cf. José Gomes Ferreira, Poesia – III, Círculo de Leitores, Lisboa, s/ d.
[5] Cf. José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, Editorial Caminho, Lisboa, 2001.

[Apresentação feita a 19 de Novembro de 2011, na sede do Clube Desportivo da Costa do Estoril, Alapraia.]

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Doutora Maria Manuel Valagão

Foi com especial enlevo (permita-se-me a palavra) que soube, através de Noticias de S. Braz (edição de Agosto), que a Doutora Maria Manuel Valagão fora a madrinha da 2ª edição da Feira da Serra, este ano, dedicada especialmente ao azeite.
Nada mais justo – e importará, decerto, sublinhar, mais uma vez, o relevante papel que esta ilustre são-brasense tem desempenhado no âmbito do incremento dado à culinária tradicional, nomeadamente (como não podia deixar de ser!) do nosso Algarve e do Alentejo. O reino das ervas e dos condimentos não tem para ela segredos e, numa altura em que o fastfood se impôs, até porque pouco tempo nos dão para almoçar e é tudo a correr, o recurso aos alimentos naturais constitui não apenas um objectivo salutar mas também o sábio e económico aproveitamento do que a Natureza pôs ao nosso dispor e que, por incúria, fomos abandonando!
Os poejos, as beldroegas, os cogumelos, os espargos silvestres, até os cardos!… voltaram a estar na ordem do dia e muita da consciencialização acerca da importância dessas ‘ervas’ se deve ao labor científico e de divulgação da Doutora Maria Manuel Valagão. O último livro que organizou – Natureza, Gastronomia & Lazer – sobre «plantas silvestres alimentares e ervas aromáticas condimentares» foi mui justamente galardoado com o Prémio de Literatura Gastronómica 2010, atribuído pela Academia Internacional de Gastronomia de Paris. E sobre ele escreveu Miguel Esteves Cardoso uma saborosa crónica (jornal Público, 29.04.2011, p. 13), subordinada ao título «Agarre este livro, se puder».
Motivos de sobra há, pois, para nos congratularmos!

[Publicado em Notícias de S. Braz (S. Brás de Alportel), nº 180, 20 de Novembro de 2011, p. 15. A foto reproduz o instantâneo do encontro do autor com a Doutora Maria Manuel Valagão, a 11-11-2011, no Mercado de Santa Clara, em Lisboa].

domingo, 20 de novembro de 2011

«À Procura da Alegria» esgotou Musical

Estreou no domingo, 13, com casa cheia, na Sociedade Musical de Cascais, o musical À Procura da Alegria, de Victor Mata, com encenação de Vasco Campos, acompanhados, naturalmente, por toda uma equipa de técnicos. Do elenco fazem parte 16 elementos, alguns dos quais pisam pela primeira vez o palco – e esse é um dos principais aplausos a fazer, pelo dinamismo demonstrado em interessar pelo Teatro as camadas jovens.
Duas horas muito bem dispostas em que se dá conta de um tema prenhe de actualidade: a partida de inúmeros portugueses para as mais diversas partes do mundo (França, Inglaterra, Espanha, Canárias, Itália, Afeganistão, Macau, América do Norte, Venezuela, Brasil…), à procura de melhores condições de vida. Mostra-se como, nessas paragens, chegam a alcançar lugares cimeiros, ainda que a saudade do regresso seja, em todos, uma tónica comum.
O roteiro é, pois, pretexto para se darem apontamentos de danças e cantares de cada um desses países, em mui agradáveis coreografias de Susana Mata e adequado guarda-roupa (de Inês Mata), dado que as três personagens – orientadas à partida e recebidas à chegada pelo tio cego, Carlos Lopes – vão ao encontro dos parentes que têm por essas bandas: Viriato é um agricultor que tem procurado manter-se da faina agrícola; Paião fora deixado à guarda do tio, quando os pais emigraram; Amália já nascera em França, mas também foi enviada para cá ao cuidado do tio.
Mensagem evidente e optimista: «Matar saudades, voltar à vida sã do campo, alimentar-se da produção generosa das suas próprias mãos e assistir com alegria às festas da nossa terra». Valeu!
Entre os convidados, registe-se a presença do vereador Nuno Piteira Lopes e do presidente da Junta de Freguesia de Alcabideche, Fernando Teixeira Lopes. Piteira Lopes, no final, manifestou o empenho camarário em dar todo o apoio possível a estas manifestações, pelo enorme significado sociocultural que representam.

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 290, 16-11-2011, p. 10].

Andarilhanças 24

Os cantoneiros
Em reportagem televisiva acerca dos funcionários da limpeza de Lisboa, ouvi chamar-lhes cantoneiros. O termo não está bem empregado, embora aceite que tenham querido aplicá-lo agora com outra acepção. Cantoneiro tinha um significado bem preciso, que, aliás, vem no dicionário: o encarregado da limpeza e manutenção de um cantão, ou seja, de uma porção de estrada. Trata-se, pois, de um conceito de conotação rural e não urbana.
Nos anos 50 e 60, recordo, o Zé Duque e o António Carneiro eram os cantoneiros, por exemplo, da estrada entre Torre e Birre: limpavam as valetas, reparavam os buracos no macadame e o seu cantão lá estava devidamente sinalizado por tabuletas de metal que espetavam na berma para melhor identificação. Amiúde, até, todas essas ferramentas ficavam de um dia para o outro no barracão de minha casa. Será que, na Câmara, disso ainda existe memória?

Arranjo da Estrada das Neves
Obra meritória: a estrada entre Bicesse e Manique estava uma lástima, era perigosa, com todas aquelas lombas e a curva apertada... Está a custar-nos a espera, os desvios, mas… esperemos que sejam rápidos e saia daí obra asseada.

Vedação perigosa
Para além do mau aspecto que dão aqueles casarões de fábrica abandonada junto ao quartel dos bombeiros – uma das primeiras imagens que acolhe quem, vindo da auto-estrada, se dirige a Cascais – a vedação do terreno, no passeio, está danificada em várias porções. Oxalá não se tenha de lamentar, um dia, a ocorrência de acidentes, devidos, por exemplo, a mera distracção de transeuntes.

Pavões
Escrevi, a 21 de Setembro, que corria voz de que se tinha a intenção de retirar os pavões do Parque Marechal Carmona. Foi boato falso, decerto, porque já por lá se vêem agora muitos mais, inclusive dos brancos. Boa ideia!

Mais publicidade para as iniciativas
A Agenda Cultural do Município de Cascais constitui importante veículo de informação acerca das iniciativas culturais e outras; os serviços de imprensa do Município também procuram estar sempre em cima do acontecimento. Sucede, porém, que nem sempre se tem hipótese de ver a agenda; e será uma percentagem pequena de munícipes que dispõe de acesso à Internet e, sobretudo, de tempo para se adestrar na busca dessas informações.
Custa, pois, verificar – e isso se tem repetido vezes sem conta ao longo dos anos – que falta público para muitas iniciativas. Quantos saberão, por exemplo, que é gratuita a entrada nos museus municipais? Quantos terão visitado o Museu do Mar?
Escrevia-se, há pouco, que mui provavelmente o Festival de Música do Estoril – um dos mais antigos e tradicionais do País – poderia vir a não ser apoiado por lhe faltar público. É a política, nomeadamente, da CP: há poucos passageiros? – Suprimem-se os comboios! Eu tenho uma outra filosofia: há poucos passageiros? Vamos fazer para que haja mais! Há pouca gente nos concertos? Vamos fazer das tripas coração, vamos dar a volta ao texto e… mostremos como é aliciante ir a um concerto!

A psicologia no preço dos combustíveis
Nesse aspecto, que se ponham os olhos nos publicitários que regem o negócio das gasolineiras. Como é que estão anunciados os preços? Aproximados ao cêntimo! E, levados pela magia de um dígito, somos capazes de andar uns quilómetros mais porque, na bomba X, o preço é de 1,529 euros, enquanto nesta aqui é de 1,549. Ou seja, se o deposito levar 40 litros, a corrida à outra bomba valeu 40 x 2 cêntimos = 80 cêntimos! Será que valeu a pena? Não se terá gasto mais no percurso? Em todo o caso, a publicidade venceu!

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 290, 16-11-2011, p. 6].

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O documento estava no portão do pátio!

Termino, com este apontamento, a série de três em que se deu conta de uma atitude assaz frequente e nem sempre devidamente tida em consideração: o reaproveitamento de materiais.
Sim, em tempos de crise – e em todos, aliás… – reaproveitar é palavra-chave presente no nosso quotidiano: deixou de ter utilidade, está ali à mão de semear e até nos serve às mil maravilhas? – Reaproveite-se!
Movimentos ecológicos e artísticos preconizam, por exemplo, o reaproveitamento dos plásticos para criar um quadro, uma escultura. E apostam nisso, didacticamente, as escolas desde o ensino pré-primário, a fim de se instilar no espírito da criança essa boa mentalidade que tinham nossos avós e que a sociedade de consumo deitou para trás das costas e… é o que se vê!...
A pedra com letras motivo de mais este apontamento foi também identificada por Luís Filipe Coutinho Gomes, que a estudou (é a inscrição nº 53 do nº 12, de 1985, do Ficheiro Epigráfico): uma estela de granito, «que servia de ombreira à porta de acesso a um pátio sito à direita do fontanário logo à entrada da povoação de Pinheiro de Tavares», na freguesia de S. João da Fresta. Foi guardada na sede da Associação Azurara da Beira.
Um tudo-nada estragado, devido à prolongada exposição aos agentes atmosféricos e à passagem das pessoas, constituía o texto o epitáfio de duas pessoas da mesma família: um filho de Triteu, falecido aos 30 anos, e Súnua, filha de Mearo, de 70. Cenão, filho de Triteu, mandou lavrar o epitáfio em honra do irmão e da mãe.
E assim se ficou a conhecer mais uma família indígena que adoptou hábitos romanos e cuja memória acaba de perdurar até aos nossos dias. Para isso serve a epigrafia, esse gravar em material duradouro a mensagem que se pretende transmitir aos vindouros. Mesmo deslocada do seu contexto primordial, acabou por ser encontrada e hoje se lhe dá o devido valor como singular documento histórico.

Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 581, 15-11-2011, p. 13.

Da ressurreição de objectos e de pessoas

Captou perfeitamente João Orlindo o espírito de um curso como o de Museologia e Património Cultural: a necessária ressurreição de, à primeira vista, insignificantes objectos que integravam todo um quotidiano, o ciclo anual na vida de uma comunidade.

Realça este seu livrinho a preocupação que já tinha perante a desertificação das aldeias do interior do País, a sua consequente perda de identidade, o abandono e destruição de objectos considerados inúteis. Aliás, foi no mesmo sentido Sílvia Costa que preparou De dentro do Armário, também publicado por Apenas Livros. Louve-se, pois, antes de mais, a iniciativa da publicação!
Se, ali, fora singelo armário de cozinha o mote para a referida ressurreição, aqui agarrou João Orlindo num canastrão de pisar castanhas, que, observando o definhar das vidas na aldeia de Balocas, perdida nas dobras da Estrela, «prossegue o seu descanso anual sobre o velho ‘caniço’»… E, vai daí, porque «os castanheiros já pouco são apanhados na totalidade; faltam as forças nos braços para limpar os ‘soitos’ e a agilidade nas mãos para separar as castanhas dos ‘oiriços’, assim como as pernas para as carregar», o canastrão constituiu pretexto para se falar de todo o ciclo da castanha e da sua importância na economia local, para se evocar um quotidiano pautado pelas estações do ano (quando ainda as havia bem distintas) e pelo ritmo diário do nascer ao pôr-do-sol, não esquecendo os serões em que, em volta da lareira, para «combater a lentidão dos dias de Inverno, mais vagos nos afazeres da terra», se contavam histórias, se passava o testemunho…
Que interesse há, pois, num canastrão de pisar castanhas para servir de tema a um livro? E a resposta não pode ser outra: é testemunho! Um testemunho a valorizar! Um testemunho que, afinal, tem histórias para contar – e que bem João Orlindo no-las soube transmitir!
É o canastrão incentivo para uma ressurreição. Ressurreição que se pretende definitiva, dado que se aponta para musealização perpetuadora de memórias!
Um exemplo – que se deseje frutifique, qual semente revitalizante!

Cascais, Setembro de 2011

Prefácio a Murmúrios de um tempo… – O objecto etnográfico, repositório de memória, de João Orlindo Marques. Apenas Livros, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-628-343-1, p. 3-4.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Alemães e portugueses, diálogo com interrupções

Solicita-me Peter Koj um breve apontamento, no momento em que me informa que será este número, o 50º, o último em que exercerá as funções de chefe de redacção.
Nunca será de mais salientar o importante papel que Peter Koj tem desempenhado no estreitamento das relações entre a Alemanha e Portugal, não só porque a sua estada entre nós o levou a conhecer o Portugal profundo e por ele se apaixonou, como porque vive numa cidade em que as raízes e a presença portuguesas hoje se fazem sentir mais, decerto, do que noutra cidade alemã. É para mim um grande orgulho saber que foi comigo que Peter começou a aprender português, depressa se industriando no domínio de um vocabulário ímpar e na leitura sempre actualizada dos autores nossos contemporâneos. Foi, por isso, justamente galardoado, até porque, regressado a Hamburgo desenvolveu na cidade o mais amplo interesse pela cultura lusa nos seus mais diversos aspectos, nomeadamente literários, artísticos e musicais. Honra, pois, ao seu grande mérito!
Na actual conjuntura (estou a escrever dias antes das eleições em Portugal, determinadas pela chamada ‘crise’ que grassa por todo o sistema visceralmente capitalista em que o mundo se atolou), a Alemanha não é bem vista pelo português comum, o que é compreensível – atitude que porventura passará.
E se a Berlim dos nossos dias, no perfeito casamento (verbi gratia) entre a tradição e o futuro – de que a cúpula de vidro de Norman Forster sobre o edifício do Parlamento poderá apresentar-se como paradigma – nos alicia, quero, porém, dar dois dos muitos exemplos da minha experiência pessoal que me levaram a ter grande consideração pelos alemães:
– 1º) O alemão vem para Portugal e não faz como o inglês ou o francês, que insistem em falar nas suas línguas de origem e não se esforçam minimamente para aprender duas ou três frases que sejam do idioma português (afinal, a 5ª língua mais falada no mundo, segundo se diz). O alemão esforça-se, aprende e aprende bem!
– 2º) Um dos meus amigos, dono duma tipografia, comprou uma máquina na Alemanha. Houve qualquer problema e a máquina não funcionava. Vieram os representantes da marca em Portugal, operários e engenheiros; olharam, olharam, disseram que sim, de facto não trabalhava, o melhor era vir alguém da Alemanha. E vieram os engenheiros alemães. Vestiram o fato-macaco, arregaçaram as mangas, deitaram-se debaixo da máquina, sujaram as mãos e… já funciona, experimentem!

Publicado em Portugal-Post - Correio luso-hanseático (Hamburgo), nº 50, Novembro de 2011, p. 33-34 [versão portuguesa com tradução em Alemão].

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Andarilhanças 23

O medo, a desmoralização e o poder
São constantes os vídeos e as mensagens que nos chegam, através da Internet, a explicar aspectos do quotidiano que a Comunicação Social não ousa abordar, nomeadamente ao que concerne às manigâncias de quem, por esse mundo, detém (ou deteve) o poder. Por exemplo, os chorudos vencimentos mensais. De quando em vez, há uma redacção que se passa e põe a boca no trombone, como foi o caso do semanário Focus do dia 26 de Outubro, que escarrapachou os ordenados milionários auferidos na RTP.
Recebemos também a explicação do que é, afinal, o Banco Central Europeu; do que se passa realmente (asseguram) na Grécia… E a entrevista com um perito, pensador, que explica tintim por tintim como é que se faz num mundo em que 1% da população mundial detém 80% da riqueza: interessa manter as pessoas desmoralizadas, assustadas, porque, assim, mais facilmente se deixam dominar. Uma nação optimista, saudável, confiante é difícil de governar!...
Compreende-se, pois, que a ordem seja para só dar notícias desagradáveis!... Uma ordem que, felizmente, entre nós, cada vez está a ser menos cumprida.

Câmara paga tributo aos ingleses
Há um projecto da Câmara de Cascais que visa proporcionar maior comunicabilidade do munícipe com os órgãos autárquicos. Chama-se «CRM – fale connosco» e está na página electrónica do Município. Poderia ser apenas “Contacte-nos” ou “Fale Connosco”. Não: tinha de ser CRM! E o que é CRM, num mundo pejado de siglas como é o nosso?... Não, não é, por exemplo, a Comissão de Recepção ao Munícipe, que seria designação corriqueira, nada ajustada a um município de prestígio internacional! Nada disso! CRM são as iniciais de… Citizen Relationship Management! Ora toma!... Para que lhes havia de dar!

Cachecol solidário
SOS Animal – sosanimal@sosanimal.com – é uma entidade sem fins lucrativos, para acolher animais abandonados e promover a sua adopção. Fruto da carolice de um dinâmico grupo de activistas, acaba de lançar uma campanha com o fim de angariar fundos para equipar a Clínica Veterinária SOSAnimal, sita em Caparide: a venda de um cachecol polar, de tamanho único, disponível em seis cores (laranja, azul escuro, bege, preto, azul claro e rosa claro) e dois logótipos (SOSAnimal cão e gato).


Clube Desportivo da Costa do Estoril

Comemora, no dia 18, 26 anos de existência, em prol da cultura e do desporto. Nesse dia, ao jantar, fados com Deo e José Pires. no dia seguinte, terei o prazer de apresentar o mais recente livro de poemas de Carlos Carranca, docente da Escola Profissional de Teatro e da Universidade Lusófona (Escola Superior de Educação Almeida Garrett). O livro chama-se Com o Cachimbo de Meu Pai. Seguir-se-á um concerto de flauta e piano: Marina Dmitrieva e Vera Belozorovitch, habituais colaboradoras do Clube, interpretarão obras de Listz.

[Publicado no Jornal de Cascais, nº 289, 09-11-2011, p. 6].

sábado, 5 de novembro de 2011

Andarilhanças 22

Passeios alargados em Cascais
Sente-se que os actuais urbanistas muito prezam a convivialidade, o andar a pé, o evitar os automóveis. A ideia é boa, desde que não levada ao exagero e aplicada a torto e a direito. O caso da Av. Engº A. Amaro da Costa para norte do cruzamento do Cobre, onde a circulação pedonal é mínima, e mesmo o trecho inicial da Estrada da Malveira, a partir da rotunda de Birre, são exemplos desse exagero, que em devido tempo denunciámos; debalde, porque urbanista é urbanista e o cidadão, mesmo que veicule o senso comum, não passa de cidadão ignorante das teorias…
Hoje, porém, dois alargamentos merecem aplauso. O primeiro, o do troço de passeio entre o Pão de Açúcar e a entrada para o Parque Palmela. Era zona bem apertada, de muita passagem de pessoas, nomeadamente para o paredão, amiúde com água resultante da infiltração da zona ajardinada acima do muro de protecção. O segundo, em plena vila, o do passeio fronteiro ao Largo Cidade Vitória, na Alameda dos Combatentes da Grande Guerra. Ficaram mais aconchegadas as esplanadas dos restaurantes típicos e há agora largueza de acesso.

Penhas do Marmeleiro ou a necessidade de se estudar História!
Foi notícia, mais uma vez, a excelente reconversão em parque urbano do campo de tiro aos pratos, na margem esquerda do Rio Marmeleiro, a leste de Murches. Aí se inaugurou, no dia 23, o circuito pedestre já existente mas ainda não devidamente publicitado.
Oxalá que, desta sorte, ele possa vir a ser mais frequentado, exigindo também essa maior frequência mais cuidado na sua manutenção e vigilância.
Já em tempo oportuno solicitei às entidades responsáveis que corrigissem a distracção cometida por quem não estudou História nem teve o cuidado de se informar: é Marmeleiro (e não Marmeleira). Deve-se o topónimo ao curso de água que lhe passa aos pés, assim chamado por ser, outrora, zona rica em marmeleiros. Assim está designado na página do facebook, onde as Penhas contam com 647 amigos.
Demoraram os serviços camarários a mudar de Ponta para Pedra no caso do Centro Interpretativo instalado em S. Pedro do Estoril. Neste caso, a reivindicação tem mais de um ano. Vamos esperar – que a lentidão parece ser virtude!...

C
Prossegue a sua publicação quinzenal o jornal [«boletim»] chamado C (C de Cascais, C de Geração C…), propriedade da Câmara Municipal de Cascais. Recebemos na caixa do correio o nº 3, de 20 de Outubro, edição de Luísa Rego, 120 000 exemplares. O editorial não vem assinado, mas do seu teor se poderá deduzir ser da lavra de responsável do Executivo municipal. 24 páginas sem publicidade comercial nem informação sobre deliberações camarárias.

Festival de Música em risco?
Informou Rui Frade Ribeiro, no seu blogue «Pensar mais Cascais», no passado dia 26, que «em reunião plenária dos militantes do PSD de Cascais», o Dr. Carlos Carreiras anunciara, entre outras «linhas orientadoras para a redefinição dos investimentos municipais», que não se continuaria a financiar o Festival de Música do Estoril, atendendo ao «número reduzido de espectadores para estes espectáculos».
Salientando que, em seu entender, é papel da Câmara «apoiar iniciativas que permitam a diversificação da oferta cultural, especialmente na perspectiva de alargamento de públicos como são os casos da música clássica ou do bailado», comenta aquele ex-vereador da Cultura:
«É estranho que a mesma Câmara que financia espectáculos de Seal ou de Maria Rita, artistas com nome para encher uma sala de espectáculos com bilhetes pagos sem precisar de ajudas das entidades oficiais, recusa um apoio que este ano foi de 80.000 € para a realização do Festival de Música da Costa do Estoril.
Ao mesmo tempo que se propõe disponibilizar 250.000 € para um Festival de Cinema que se realiza em Lisboa, considera sem interesse um evento com mais de 30 anos de existência como é o Festival de Música da Costa do Estoril».

A tragédia grega
Depois de Barbershop, romance em que se retratam, em ironia fina, vidas singulares da burguesia nesta ocidental plaga lisboeta, quis Júlio Conrado brindar-nos com um livro de cordel (parabéns por ter também aderido a este formato em boa hora ressuscitado pela editora Apenas Livros.
Chama-se a Tragédia Grega (Lisboa, Fevereiro de 2011) e dá conta de uma situação deveras curiosa, em forma poética que é de prosa ou de prosa que é poesia à moda antiga, qual romanceiro – por tradição, em verso facilmente nos exprimimos.
Planeia-se um assassinato. No momento mais oportuno, para passar despercebido: quando milhões de portugueses estivessem de olhos pregados no televisor, pois Portugal defrontava a Grécia no final do Campeonato Europeu. Se Portugal ganhasse, o momento da grande euforia seria o ideal, ninguém daria por isso!
Vamos, então, matar! Está decidido!
Contratada está a experiência nunca desmentida do atirador, resta escolher o alvo. E aí está o busílis! O escritor quer liquidar tantos dos seus fantasmas!... O professor primário, o padre, a Nini, o cacique local, enfim!...
Borboleta de flor em flor, cheio de hesitações se mantém até final. E… a tragédia foi só no futebol! Grega, como as de outrora, em que o Destino era proclamado fatal pelo coro, ao longo de toda a peça. Bem, afinal também o escritor acaba por morrer!
De leitura fácil, jocosa, nas suas 20 páginas, acutilante no escalpelizar de atitudes e de situações, esta Tragédia Grega recomenda-se vivamente.


[Publicado no Jornal de Cascais, nº 288, 02-11-2011, p. 6].

A estela romana que era peitoril!

Na sequência do que já se escreveu na edição do passado dia 1 de Outubro, não posso deixar de voltar a referir-me ao facto de, na região de Mangualde, várias inscrições romanas terem sido identificadas em reutilização por estudantes de Epigrafia da Universidade de Coimbra, há uns 30 anos atrás.
O exemplo que ora se traz à colação não deixa também de ser curioso: uma estela funerária romana – com quase dois mil anos, portanto – foi aproveitada para peitoril da janela de uma casa rural sita na aldeia de Pinheiro de Tavares, freguesia de S. João da Fresta.
Devem-na ter encontrado por perto os construtores da moradia; acharam-na bonita, até porque tinha uma flor esculpida; acrescentaram-lhe quiçá uma cruz com pedestal como era de uso, não fossem os dizeres terem algum esconjuro maligno, e lá a puseram deitada, com o letreiro bem à mostra, ainda que desconhecessem por completo o que lá estava escrito e, sequer, em que língua!
Viu-a Luís Filipe Coutinho Gomes e decidiu-se a estudá-la, estudo que veio a ser publicado na revista Ficheiro Epigráfico, do Instituto de Arqueologia de Coimbra, no nº 12, de 1985, inscrição nº 52.
Constituía o texto, já bastante deteriorado devido à prolongada exposição aos agentes atmosféricos (agora, já está a recato na sede da Associação Azurara da Beira), o epitáfio de uma senhora, falecida aos 60 anos, Flavina de seu nome, filha de Flavo. Não se consegue perceber a identificação da dedicante, ainda que se trate de uma filha de Alúquio. O monumento estava consagrado aos deuses Manes, protectores, no Além, do espírito do defunto.
Ficámos assim a saber de representantes de três gerações de uma família com raízes locais (dada a onomástica que apresentam, tipicamente pré-romana): filha de Flavo, Flavina (o diminutivo não poderia ser mais apropriado!) casou com Alúquio (um nome etimologicamente lusitano) e dessa união nasceu uma filha, cujo nome, porém, se desconhece. Não nos admiraria, por conseguinte, que – dadas essas referências todas – o túmulo viesse a ser mais tarde usado para os restos mortais dos que na epígrafe vêm mencionados.

Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 580, 01-11-2011, p. 13.

Resistir à uniformização!

Não seria tão avesso às cláusulas do Acordo Ortográfico se estivesse prevista a liberdade de opção. Não há um castelhano (de Espanha) e o espanhol (da América do Sul), o inglês americano e o inglês do Reino Unido?...
Não constituirá, porém, esse o perigo da perda da nossa independência – porque perdida já está! Também a identidade não correrá grande risco. Soubemos guindar o mirandês a língua oficial; respeitamos sem problemas o barranquenho e o minderico. E pugnamos por dar a conhecer cada vez mais aquilo que, em cada região, reflecte, também a nível da linguagem, o viver quotidiano.
«Bêceta, gato!», por exemplo. Como é que se escreve? Onde estará registado? Apresenta-se, no entanto, como singela expressão algarvia (e doutras paragens, quiçá) para afastar bichano impertinente que teime em abeirar-se dum prato ou em reclamar colo inoportuno.
Ou… «Não botes que eu não bebo!»: a ironia tão típica das nossas gentes, perante o gesto de quem queria servir um copo e, afinal, sem disso se aperceber, tinha a garrafa vazia!...

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel], nº 154 (Novembro 2011), p. 10.