quarta-feira, 28 de março de 2018

O prefeito dos artífices

            O exercício de um cargo político representa sempre uma grande aprendizagem. Se, no dia-a-dia de uma empresa ou, até, nas relações familiares, se reclamam tacto e bom senso, para, à noite, se lograr sono repousante, a política, como gestão da cidade e dos cidadãos, implica toda uma atenção ao pormenor, ao gesto, à palavra dita e por dizer. Para além, obviamente, dos aspectos técnicos próprios de cada actividade. Poderá imaginar-se que o ministro ou o secretário de Estado da Cultura ou os respectivos assessores apenas necessitarão de conhecer, o melhor possível, os meandros por onde a Cultura se movimenta; nada mais errado, reconhece-se, porque há toda uma engrenagem económica, financeira e social que importa ter em consideração.
            Um complexo saber «de experiências feito», como o do Velho do Restelo, que dia após dia superiormente se enriquece. Não admira, pois, que, acabada a «comissão de serviço» – assim se costumava chamar e como tal o entendiam os Romanos –, amplos caminhos se abram para que o político experiente possa continuar a aplicar a sua sabedoria nos mais diversos ramos de actividade, nomeadamente o económico. Por isso há tanta gente a querer ir para político. O que lá se aprende!...
            Ao sair de ministro ou de secretário de Estado, ao senhor engenheiro ou ao senhor dr. surge toda uma rica panóplia de oportunidades, que passam, de um modo geral, pela administração de empresas, inclusive aquelas que alguma vez foram públicas, pois são essas as mais próximas dos esquemas oficiais. E também, obviamente, pelo Ensino, para mais facilmente poderem transmitir o que aprenderam. Assim Mário Soares, após ter saído da política activa, numa das faculdades da Universidade de Coimbra.
            O problema põe-se com mais acutilância no que se refere aos municípios. ¿Que fazer dos vereadores cujos mandatos findaram? ¿Onde vai pôr-se essa dezena de assessores que, por gozarem da nossa total confiança, nós contratámos, em princípio apenas para serem nossos assessores? Bem, a questão dos assessores resolve-se: abre-se concurso propositadamente para esse efeito e tudo fica garantido. Questão maior é a dos vereadores ou dos presidentes de junta. Também para isso se encontrou solução: em vez de concentrar em si todos os serviços, a Câmara cria empresas municipais. Uma para o lixo, outra para o trânsito e as ruas, outra para as coisas da Cultura (sim, ponho com maiúscula, lixo e trânsito não ponho…), outra para as obras, outra para gerir os parquímetros… Exacto, os parquímetros foi uma das melhores invenções do final do século! Máquinas de fazer dinheiro. E havia que saber gerir esse dinheiro, essas empresas. A inserção nos respectivos conselhos de administração antoja-se, por conseguinte, como aplicação eficaz para fazer render talentos qualificados. E a palavra «render» surge aqui naturalmente, porque é ponto de honra para empresa que se preze atingir (ou, até, ultrapassar) os objectivos económicos fixados. Na verdade, cada empresa tem a sua contabilidade própria e se adrega a polícia municipal arrecadar dinheiro de multa aplicada a veículo doutra empresa municipal que o funcionário deixou, por momentos, mal estacionado, não há que olhar para trás! E se, mesmo em serviço, se se tem de pôr o carrinho de serviço, devidamente identificado, num parque com parquímetro (e hoje é raro o que os não tem), há que pagar, não há livre-trânsitos disponíveis!...
            Pensaram os cérebros dos cifrões e da eficácia que haviam descoberto a forma inovadora de rendibilizar outros cérebros e outras competências. Enganaram-se. Para quem, no tempo dos Romanos, seguiu com reconhecido êxito uma carreira municipal – e, note-se, na altura, não havia um presidente, havia dois e com direito de veto e o mandato era de um ano apenas! – abria-se a possibilidade de ascender à carreira equestre. Para isso, porém, passava por uma fase de aprendizagem, como ajudante de campo de uma personalidade importante, que o ia integrando na máquina político-administrativa. Chamava-se prefeito dos artífices, em latim o praefectus fabrum. «Artífices» eram todos os que bem sabiam manobrar… as artes, todas as artes!
      Veja-se esta inscrição achada em Lisboa e datável do século I da nossa era. Lúcio Cornélio Boco, natural de Alcácer do Sal («salaciense»), depois de ter sido eleito (também por apenas um ano) flâmine da província da Lusitânia, ou seja, promotor da devoção religiosa ao imperador (que o era por vontade dos deuses…), foi prefeito dos artífices por cinco vezes! Não que essa repetição se tivesse ficado a dever a dificuldades suas na aprendizagem, mas sim à excepcional competência demonstrada, dado que outras inscrições o confirmam para os membros da mesma família. Passa de seguida à carreira equestre, tendo sido nomeado tribuno da VIII Legião Augusta. O monumento foi mandado erigir por decreto dos decuriões, isto é, por deliberação da assembleia municipal de Lisboa (note-se!), prova do interesse em estar de bem com ele, agora que outros e mui vantajosos voos o esperavam…
De facto, assim é: «nada de novo sob o Sol»! Ou, como proclamava o nosso Gil Vicente, «Así se hacen las cosas» – como quem tem medo de o dizer em português!

                                                                            José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 225, 2018-03-28, p. 6.

sábado, 24 de março de 2018

Retalhos lusos em pano da Índia

             Uma das mais curiosas sensações que tive ao chegar a Londres e ao ver quantos comigo se cruzavam foi a variedade dos vistosos panos que as indianas envergavam. E aquela pintinha na testa, sinal da casta a que a sua portadora pertencia, tinha o condão de nos fazer sonhar com um tempo antigo, em que também por lá Portugal deixou raízes. O senhor que, de rosa vermelha em punho, nos aborda ao jantar no restaurante, «qué flô?», representará, porém, outra face da mesma medalha.
            Falei da Índia a um condiscípulo meu goês. E contou-me:
            ‒ Eu vim para Portugal em 1957; o meu pai foi o 1º português a ser expulso da Índia, nessa altura de Bombaim, por ser estrangeiro, português. Desde 1949 que a União Indiana queria expulsar tudo o que fosse civilização ocidental, depois da expulsão dos Ingleses, que possibilitou a independência da União Indiana, ou seja, nessa altura, a união da Índia com o Paquistão, o actual Bangladesh, o Tibete, o Butão e o Sri Lanka. Infelizmente, Goa não se soube impor. O meu pai bem quis e Salazar retorquia-lhe: «F., eu sei que Goa está apta a ter autonomia, mas dar-lha seria abrir um precedente!». Assim, ficámos à mercê dos indianos. E os goeses foram engolidos. Hoje, a cultura goesa em Goa não existe. Foi uma invasão e a destruição da cultura dos goeses. Os académicos, "vendidos" aos partidos, não falam sobre esta realidade.
            Estava a ouvi-lo e lembrava-me de Sousa Lara me ter contado que, quando lá foi, em 1992, integrando, como Secretário de Estado da Cultura, a comitiva de Mário Soares, um senhor de idade o convidou a ir a casa dele e mostrou-lhe, escondidos numa arca, os livros antigos, aqueles por onde nós estudámos na Instrução Primária:
            ‒ Guardo-os aqui ciosamente, sabe. E é por eles que eu ensino a língua portuguesa aos que a querem aprender!
            Sousa Lara acabaria por mandar enviar-lhe muitos mais livros para ele poder continuar a sua nobre missão de manter acesa a chama da portugalidade nessa longínqua paragem.
            E recordei as imagens que Maria Júlia Fernandes fez em Baçaim, no Convento dos Agostinhos em ruínas: o chão da nave principal da igreja era um mar ininterrupto de lápides funerárias, com os nomes de portugueses ilustres e brasões de famílias nobres e tudo isso iria, daí a pouco, ficar debaixo de sólida camada de cimento…
            Também esses são retalhos lusos em manto indiano. E quando, a 10 de Dezembro de 2017, no âmbito da série «Um poema na vila», iniciativa de Ana de Freitas, se ouviram, no Auditório José Labaredas do Museu Municipal de Coruche, «Contares e Cantares de Goa», pelo Grupo Ekvat da Casa de Goa, voltámos a ter consciência disso: urge fazer reluzir esses retalhos no manto indiano. Raízes escondidas que poderão frutificar!
                         José d'Encarnação


Publicado em Ponto & Vírgula, jornal do Gabinete de Imagem e Comunicação da Escola Calazans Duarte, da Marinha Grande, edição de Março de 2018, p. 19.                                     

Gentileza de Elisabeth Le Paige: a fotografia a que se refere
no comentário que tomei a liberdade de transcrever infra.
O monumento que assinala, em Calecute, o local onde
desembarcou Vasco da Gama, aquando da chegada à Índia, em 1498.
                                                                      

segunda-feira, 19 de março de 2018

Foi tocante a cerimónia

            De novo o Espaço TEC, em Cascais, abriu portas para dar azo a mais uma exposição que ficamos a dever, de modo especial, a João Vasco. O consagrado actor resiste aos convites de Carlos Avilez para representar, para voltar ao palco, e prefere, no aconchego dos seus aposentos, programar sabiamente exposições sobre momentos e personalidades que marcaram a vida do seu Teatro Experimental de Cascais.
            Amália se celebrou agora. E foi deveras tocante a cerimónia, quase ao cair da tarde de sábado, 17. Muitos admiradores de Amália e do TEC, a senhora que acompanhou Amália nos últimos tempos, os estudantes da Escola Profissional de Teatro de Cascais (EPTC)… O senhor presidente da Câmara também fez questão em estar presente, assim como a Dra. Catarina Marques Vieira, comissária para a Cascais Capital da Juventude, pois que também esta iniciativa pode inserir-se nas actividades que marcam a juventude em Cascais.
            Começámos por ouvir FF – um dos ex-alunos da EPTC que hoje se guindou já a boa plana no mundo do espectáculo e da canção. Deliciou-nos, em voz quente, com o fado Gaivota, numa interpretação muito aplaudida. Ouvimos depois poemas que são letras de fados, ditos por actores da companhia. Ouvimos gravações da Amália, acompanhadas pelos estudantes da Escola. Carlos Avilez referiu três outros vultos que simultaneamente se evocam na exposição: o actor Jose de Castro e dois dos maiores fotógrafos de Amália – Silva Nogueira (1892-1958), que a fotografou de 1942 a 1954, e Maria Luísa Gomes (1953-2006), que superiormente a fotografou depois.
            Recorde-se que, como se relata na folha explicativa distribuída na ocasião, esta celebração pretende comemorar o 30º aniversário da recital que Amália realizou, a pedido do Teatro Experimental de Cascais, a 18 de Setembro de 1987, cujos proventos se destinaram a financiar o custo da estátua a José de Castro que viria a ser erguida em Paço d’Arcos. Foi necessário, na altura, «abrir as portas da rua do Teatro Mirita Casimiro, para que o público que não conseguira entrar pudesse ouvir a voz mágica de Amália».
            Agora, não foi necessário abrir as portas, que elas se mantiveram abertas; mas a emoção que pelo Espaço se espalhou não se conteve ali e saiu portas afora, no abraço saudoso à nossa Fadista! E no abraço, evidentemente, a todos quantos estiveram na preparação e concretização de tão feliz iniciativa.
 
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal¸ 2018-03-19:

Quatro dos instantâneos colhidos pela oportuna objectiva
de Maria Luís Gomes. Um primor! A alma surpreendida!

«Um Adeus Infinito», de Filipa Oliveira Antunes

            30 quadros. Podem admirar-se até 16 de Abril, na Galeria de Arte do Casino. «Podem» talvez não se me apresenta como o termo adequado; melhor será «devem», porque é sempre de admirar a primeira exposição individual de uma artista sorridente, nos seus maduros 45 anos, já com doutoramento feito em Urbanismo (2013), depois da licenciatura em Arquitectura pela Universidade de Lisboa (1996) e do mestrado em Arquitectura da Habitação pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica (2000).
            Não tem parado desde que se formou – na docência universitária, na ilustração de peças para a Vista Alegre e para livros pedagógicos. Descobrimo-la no recente Salão de Outono do Casino Estoril e logo nos apercebemos de que algo de especial dali poderia advir. Por isso, a direcção da galeria não hesitou em prontamente lhe facultar a possibilidade de uma exposição individual. E bem andou.
            Vive como fundo das suas telas (trabalha muito sobre folha de algodão) essa alma arquitecta nos volumes bem desenhados. Reproduzo dois desses quadros a título de exemplo.
            Sentem-se, num, os chalés do Monte Estoril e aquela palmeira esguia espicaça-nos a curiosidade: eu já a vi, mas onde está? Há um trecho do paredão, mas a praia e o mar tingem-se de vermelho, amarelo e verde… E tudo está pintalgado, como se a artista tivesse querido despejar arrastados pingos de tinta para os envolver de cor. E, a dominar tudo, um olhar perscrutante, atento, dominador – a incitar-nos a ver melhor, mesmo que, em baixo, se tenha a sugestão de umas pálpebras fechadas, em meditação...
            O outro quadro que mostro tem Simonetta de nome. Quem é ninguém o explica. Nome de tempestade ainda não foi. Apostaria que é, de novo, o olhar de Filipa Antunes a espraiar-se pelo azul da costa cascalense, as algas assumem-se em primeiro plano e há riscos brancos a varrer o horizonte. Uma nuvem se adensa ao fundo. E se casas são, as da costa, de negrura se vestem, a contrastar com a chapada de luz a rasgar o céu e a espelhar-se, resplandecente, numa réstia de água…
            Apetece sentar-se na sala, em contemplação demorada. No silêncio, deixando a Beleza inebriar-nos.
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal¸ 2018-03-19:

A Casa do Artesão

             Os responsáveis pela agenda cultural São Brás Acontece passaram largos meses a visitar artesãos, pessoas reais que ainda mantinham a tradição de fazerem empreita ou moldarem o barro de acordo com os saberes ancestrais que haviam herdado de seus avós.
            Louvei, em devido tempo, essa bem meritória iniciativa e guardo religiosamente os exemplares da agenda que disso se fizeram mui louvável eco.
            Custa-me ver, por exemplo, uma Feira do Artesanato do Estoril, criada em 1964, na sequência do Mercado de Abril que se realizava em Belém, onde, hoje, só há praticamente o chamado «artesanato urbano», indiferenciado, e se deixaram de convidar os que fazem os bonecos de Estremoz (hoje Património Cultural da Humanidade) ou uma Rosa Ramalho, que dava continuidade à típica louça de Barcelos. Custa dinheiro a sua deslocação das terras de origem e, por isso, essa Fiartil (com ressaibos internacionais…) deixou de ser o reclame para a louça de Molelos e de Bisalhães ou para as bilhas de Nisa.
            Artesanato autêntico moldado à maneira tradicional consolida saberes e mostra como os antigos sabiam fazer das tripas coração e assim aproveitavam tudo quanto a Natureza gratuitamente lhes oferecia: o esparto, a palma, o vime…
            Consolou-me, pois, saber que se inaugurara, a 20 de Janeiro, p. p., «em pleno coração da vila», a Casa do Artesão, com a finalidade expressa de «apoiar o artesanato e a produção local», na certeza de que, desta sorte, se iria criar também «um novo pólo de interesse turístico». Sim, criar-se-á, de facto, se se seguirem à risca as linhas da tradição; se se incentivarem os jovens a calcorrear as pisadas de seus avós; se à tradição – a manter – se aliar, aqui e além, um toque de modernidade aliciante.
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 256, 20-02-2018, p. 13.

sábado, 17 de março de 2018

Ó màrraistaparta!

             ‒ Espera! O cabide caiu outra vez. É sempre assim: quando vais tirar uma camisa, há sempre um cabide ao lado que cai. E tu que ias fazer? Arreliar-te, vociferar e gritar, como apreendeste com teu pai quando se aborrecia e bramava «Ó màrraistaparta!»? Não se percebiam bem as palavras, mas ficava-se assim com a ideia de que era, mais ou menos, uma forma muito própria dele de exclamar «Raios te partam!». Espera, pois, não digas nada. Aproveita para fazer uma flexão. Isso. Vai mesmo até ao chão. Respira fundo. Pega no cabide e põe-no tranquilamente no varão. Vês? Fizeste um bom exercício, dominaste-te e, sobretudo, o teu pensamento semeou serenidade para o resto do dia. Doutra forma, arreliavas-te logo de manhãzinha e era certo e sabido que algo não iria correr bem na jornada.
            Não é novidade nenhuma esta ideia de dominar o pensamento. Ou melhor, de tomar consciência do valor do pensamento e de como nós, amiúde, o não sabemos aproveitar.
            Bem conhecida é aquela passagem do «Principezinho», de Saint-Exupéry, quando a raposa propõe ao príncipe que passem a encontrar-se a uma hora certa. E explica-lhe: é que, sabes, assim, eu, meia hora antes ou mais, já estou a antegozar o prazer do nosso encontro!... Cá está! O poder do pensamento!
            Admiro-me quando me dizem: Ah! Isso é matéria que tu dominas bem, vais lá, vinte minutos de conversa e pronto! Muito simples!... Muito simples? Vinte minutos? E os longos minutos que, bastantes dias antes, tu levas a pensar no que vais dizer, mesmo que só te lembres disso de vez em quando? Tomas um apontamento agora, outro amanhã…
            Outro dia, na sessão de homenagem a um amigo, o promotor garantia-nos que uma das características do homenageado era a da ubiquidade! Como assim? Não é a ubiquidade uma prerrogativa divina? E explicou: «É que nós imaginamos que ele está aqui, ao pé de nós, de corpo e alma. Não está, garanto eu! O corpo, sim, mas o espírito, o pensamento? Já está a pensar qual vai ser o tema do seu próximo artigo!...». Ora toma!
            E, num retiro que fiz em 1966, não resisti a escrever como comentário à frase «Não mates o tempo»: Quanto tempo se esvai nos nossos autocarros, em devaneios sem nexo!…
            Vês? Não gritaste «Ó màrraistaparta!» e ganhaste imensa serenidade!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 727, 15-03-2018, p. 11.

quarta-feira, 14 de março de 2018

A arte de bem dizer!

            A partir de certa idade, sabe-se, há uma série de funções cuja operacionalidade se perde. Ele é a vista, ele é o ouvido (e todas as semanas recebemos publicidade de aparelhos cada vez mais discretos e sofisticados…), ele é o andar sem tropeços…
            Então o ouvido – e têm razão as múltiplas empresas que nos assediam –, uma lástima! E a gente queixa-se de que são os outros que falam baixinho. Às vezes, é isso, mormente quando há barulhos por perto, a famigerada televisão, por exemplo, no momento dos anúncios, em que eles elevam o diapasão para até ancião ouvir!...
            Creio, portanto, que devo a essa minha categoria de ancião o facto de nada – mas mesmo nada! - ter compreendido da letra cantada pela Cláudia Pascoal. Consolou-me, nos dias seguintes, ter ouvido, aqui e além, que mais amigos houvera na mesma onda: nada haviam percebido! Se calhar, não era mesmo para se perceber, porque quem estava afim de votar já teria ido à Internet ou a qualquer outro sítio bisbilhotar a letra da canção que haveria de sair vencedora.
            Sou dos privilegiados que tiveram lições de dicção, em hora de tempos livres, salvo o erro no ano lectivo de 1962-63. E nas escolas salesianas por onde antes andara, o teatro declamado e mesmo a opereta estavam presentes nas festas ao longo do ano e, desta forma, a gente desemburrava e habituava-se a encarar o público e a colocar bem a voz, como se faz na Escola Profissional de Teatro de Cascais.
            Queixei-me, outro dia, ao Provedor do Ouvinte da RDP. Uma das senhoras que, no Programa da Manhã, apresenta, uma vez por semana, a crónica d’O Fio da Meada, é tão monocórdica a ler o texto que o ouvinte, se quer escutá-la, tem de fazer esforço complementar. João Paulo Guerra bem me respondeu que já falara do assunto à Direcção de Programas; devem ter, porém, receio de melindrar a senhora e… logo se muda depois das férias!...
            Os estudantes de Teatro e de Comunicação aprendem: uma situação é ler, outra é dizer! Mas a linguagem radiofónica não se compadece com uma singela leitura, sempre no mesmo tom. Também «ler» pode – e deve! – ser «dizer»! Falar, mesmo que se tenha um papel e um microfone à frente!
            Nunca mais esquecerei o que se passou comigo e com Rafael Correia, o homem d’O Lugar ao Sul, que percorria montes e vales pelo Algarve e pelo Alentejo a falar com o Povo e, ao sábado de manhã, nós nos regalávamos com aquele falar alentejano e algarvio marafado, mas que todo o mundo entendia. Então porquê? Já explico. Rafael Correia falou comigo duas vezes, em entrevista, quando, na década de 70, passávamos boa parte do Verão nas campanhas arqueológicas da villa romana de São Cucufate (Vila de Frades, Vidigueira). A segunda vez não precisou de me advertir; mas da primeira, ainda não tinham passado uns segundos, já ele estava a desligar o microfone:
            ‒ Professor, esqueça! Eu vim aqui para falar consigo! Portanto, faça-me um favor: fale naturalmente comigo, não se preocupe com o microfone!
            Aprendi.
            E quando, anos mais tarde, mantive, durante mais de 14 anos, em Rádio Clube de Cascais, aos domingos, das 11 ao meio-dia, «A falar é que a gente se entende», a conversa com um convidado, foi esse o princípio que segui. Conversa, não discurso. Como se à mesa do café nos encontrássemos. E recordarei sempre a ‘partida’ que, por ser assim, poderei ter pregado a Isaltino de Morais. No final do programa, voltou-se para mim:
            – Você levou-me a dizer o que eu não queria! Esqueci-me por completo do microfone!...
            Custa-me, como docente, ouvir que se fala e se escreve sem cuidado. Sabe-se agora que Cláudia Pascoal terá preparado uma cantiga de apoio à candidatura do primo Custódio, em 2013, à União de Freguesias de Arco de Baúlhe e Vila Nune, em Cabeceiras de Basto. O primo, escreveu ela, garantia "uma liderança há [sic] maneira"!...
            A concluir, vamos, então, por aí, pelas calinadas gramaticais quotidianas:
            «Mas, no entanto»… Não! Ou é «mas» ou é «no entanto». «E a postura dela…». Não! Postura é a quantidade de ovos que uma ave põe; em relação aos humanos, é posição, atitude! «Viestes? Ainda bem que viestes!». Não! Na 2ª pessoa do singular, é «vieste», «tu vieste»! «E há cinco anos atrás…». Poderia ser… há cinco… à frente? Se pões «há», tens de omitir o «atrás». «Pois é, tens razão, são pequenos pormenores…». Errado! Um pormenor é pequeno, não há pormenor grande!

                                                                    José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 225, 2018-03-14, p. 6.

 

segunda-feira, 5 de março de 2018

Victor Brito foi galardoado

       O Coronel Piloto Aviador Victor Brito, um dos vultos maiores da aeronáutica portuguesa, acaba de ser galardoado com o maior e mais importante prémio existente na Aviação Civil: o Prémio Carlos Bleck.
      Foi Carlos Bleck (1903-1975) o 1º aviador civil português e o prémio que tem o seu nome, instituído há uma dúzia de anos pela Associação dos Pilotos Portugueses de Linha Aérea, é outorgado de dois em dois anos e consta não apenas dessa honra, a maior conferida aos pilotos de linha aérea, mas também da oferta de um livro, uma biografia, que deve ser escrita por um escritor ou jornalista contratado para o efeito. No caso de Victor Brito, o livro poderá vir a ser publicado em 2019, porquanto o prémio diz respeito ao ano de 2017.
      No passado dia 1 de Março, na Sociedade Histórica da Independência de Portugal, em Lisboa, onde funciona o Instituto Bartolomeu de Gusmão, dedicado à aviação e cuja direcção Victor Brito integra como vogal, foi também apresentado o livro Asas Portuguesas sobre o Céu do Estado Português da Índia, de que Victor Brito é um dos autores, justamente porque desempenhou importante papel na resistência de Goa perante a União Indiana.
      Recorde-se que o homenageado, natural de S. Brás de Alportel, onde nasceu a 5 de Março de 1930, teve uma acção da maior valia no 11 de Março de 1975 e, mais perto de nós, na criação, em 1979, da empresa Aerocondor, que de imediato começou a funcionar, no aeródromo de Tires, como Escola de Aviação, com o principal objectivo de formar, por excelência, pilotos profissionais no âmbito da aviação comercial, sendo hoje ainda uma insubstituível referência nesse domínio. Victor Brito, que reside em Parede, tem sido também um dos dinamizadores do Rotary Clube Cascais-Estoril.
      Inclusive por me contar entre os membros da significativa comunidade são-brasense que, desde meados do século passado, vive e trabalha na freguesia de Cascais, congratulo-me vivamente por tão subida honra concedida a um dos nossos mais notáveis patrícios. E desejamos a Victor Brito pronta e mui eficaz recuperação da sua saúde.

                                    José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 04-03-2018:

Estreitadas as relações entre Portugal e a Alemanha

      Nos discursos que precederam o jantar oferecido, no Palácio da Ajuda, no dia 1, pelo Presidente da República ao Presidente da República Federal da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, foi por ambos os estadistas proclamada a vontade de, na presente conjuntura, se estreitarem as relações entre Portugal e a Alemanha.
      Referiu-se Marcelo Rebelo de Sousa aos muitos alemães que vivem e trabalham em Portugal e à existência de uma grande comunidade portuguesa na Alemanha, sublinhando como tanto uns como outros contribuíam eficazmente para o bom relacionamento entre os dois povos.
      Começou por afirmar o Presidente da RFA: «Ainda não se completou um dia desde que cheguei a Portugal e já quase que me sinto em casa». Referiu-se, de imediato, ao facto de ambos terem feito «uma viagem de eléctrico pela sua magnífica capital na famosa linha 28».
      Salientou quanto o impressionara «a recuperação económica que Portugal alcançou ao longo destes últimos anos», desenganando, assim, os «muitos cépticos que viam o vosso país muito lá em baixo à esquerda, não apenas no mapa da Europa mas também no que se refere às expectativas de crescimento e às avaliações politicas», mediante a adopção de «um espírito reformista e pragmático que é realmente exemplar».
      Não deixou de se manifestar «fascinado com a maneira como o vosso país respira história europeia e, ao mesmo tempo, tem revelado vezes sem conta a audácia de partir em busca de novos horizontes». Portugal, sublinhou, «país de descobridores e de construtores de pontes, tanto em pequena como em larga escala». E, neste aspecto, depois de já ter referido a escolha de Mário Centeno para presidente do Eurogrupo, lembrou a eleição de António Guterres para Secretário-Geral das Nações Unidas.
      No final de cada discurso, os cerca de 120 convidados brindaram de pé, com um cálice de vinho da Madeira, à amizade luso-alemã e ao futuro comum na Europa.
      Após a sobremesa – papo de anjo com morangos de Sintra e mirtilos – o Coro Lopes Graça interpretou, sob a direcção artística de José Robert, canções de Fernando Lopes Graça relacionadas com quatro regiões do país: o Alentejo, o Minho, Trás-os-Montes e Beira Baixa.

                                          José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 02-03-2018:

 

sexta-feira, 2 de março de 2018

Não há como beber…

             … uma golada para a frase sair mais inspirada» ‒ é o título de um conjunto de poemas editado pela Vinidão, em Outubro de 1993 (1500 exemplares).
            Os seus promotores escreveram na badana que pretendiam, com este caderno, «iniciar uma homenagem aos poetas populares deste País, cuja sensibilidade está profundamente marcada, há séculos, pela nobreza de um produto de eleição como é o vinho».
            Ao todo, 18 poemas, em folhas soltas, de papel pardo, resultantes de um ‘concurso de poesias alusivas ao vinho promovido pela Adega Cooperativa de Mangualde’, em 1992.
            Não voltei a ter notícias da iniciativa. Se teve, ou não, continuidade. Pela minha parte, gostaria que sim. Primeiro, pela originalidade da promoção; depois, pela nobreza do objectivo: dar aos poetas ditos populares uma oportunidade de assim manifestarem a sua inspiração.
            Poderá haver detractores. Que não se deve incrementar o consumo do vinho, dirão. Retorquirei com o conhecido argumento: não faz mal beber vinho, o que faz mal é beber de mais. Como não faz mal apanhar sol, o que prejudica é apanhar sol em demasia. Amiúde se esquecerá, também neste domínio, a sabedoria do Povo: «nem oito nem oitenta!». E quando, ao final da tarde, após longo e bem soalheiro dia de trabalho, os trabalhadores do campo se ajuntavam na taberna, antes de irem para casa, e bebiam o seu copito e um, mais inspirado, dava o mote e logo os demais arrancavam no cante… era um bonito sol-pôr nas terras alentejanas!...
            Improvisava-se, por vezes; e, na verdade, alentejano e algarvio que se preza (e estou a lembrar-me do Aleixo e de tantos Aleixos que há por i, só conhecidos da vizinhança…) não hesita em dar largas ao seu modo de fazer quadras a eito!
            Como não recordar, por exemplo, o programa «Lugar ao Sul», que Rafael Correia manteve durante muito ano, aos sábados de manhã, na Antena 1!... Ia o repórter por essas terras além, parava aqui, parava ali. Um era hábil na gaita de beiços; outro contava em verso a história de Portugal, de fio a pavio!... A alma do Povo assim posta a nu, na sua autenticidade. E se adregava brindar com um copito de três do tinto da adega lá de casa, mais fluente era a cantoria…

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 726, 01-03-2018, p. 10.