sábado, 29 de outubro de 2016

Esta louca correria!

         Nota prévia: o texto que segue foi apresentado na minha página do facebook,ontem, sexta-feira, 28. As reacções foram tantas que optei por o reproduzir aqui.
 
         Antes de mais, voto de mui sereno fim-de-semana!
         E faço esse voto, porque serenidade… precisa-se, mesmo quando se pretende enviar uma mensagem a alguém.
         Sei que andamos todos numa lufa-lufa, que os mandantes nos estão sempre a pedir ‘coisas’ para ontem e que há objectivos a cumprir, «há objectivos a cumprir»!... Eu diria, antes, que «há uma vida para viver» e que, se não nos consciencializarmos disso, nos vamos mesmo esquecer de a viver!
         - Hoje deu-lhe para discurso moral, foi, amigo?
         - Não! É que desejava mostrar, através de um exemplo, o muito que recebo e que prova quanto andamos apressados e nem sequer reparamos bem no que estamos a fazer!
        Ora veja-se: recebi hoje, 28-10-2016, uma mensagem que trazia como anexo FEIRANOJARDIM_FolhetoFinalA5-MAIO2016.
           Pode o meu amigo dizer-me o que 'isto' significa?
           Muito simplesmente que quem enviou nem sequer reparou na legenda!
          Vá lá que, em vez de «folheto final», não vem «flyer» ou «ecart», palavras que seriam ainda mais… ‘curiosas’ e que superabundam!...
           Pois se eu lhe disser que esse folheto se refere a uma feira a realizar-se… a 5 de Novembro de 2016 (!), que nada tem a ver com Maio… - compreenderá que… há a necessidade urgente de parar!
           Por isso, repito, Amigo: tenha um mui sereno fim-de-semana!
 
                                                                             José d'Encarnação
 
 

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Um clarinete de… ouro!

Anna Paulová
            Amiúde nos presenteiam com concertos de piano e orquestra, de canto e orquestra. Agora, de clarinete e orquestra não recordo de nada. Por isso, não foi sem curiosidade que fui – somos ‘clientes’ fiéis… – ao Concerto de Outono da Sinfónica de Cascais no final da tarde de domingo, 23, no Auditório da Boa Nova, porque o programa incluía, na 1ª parte, a seguir à abertura da primeira ópera romântica alemã «Franco Atirador», de Carl Maria von Weber (1786-1826), o concerto para clarinete nº 1 em fá maior op. 73, em que a solista era Anna Paulová, nascida em Praga (1993) e com um notabilíssimo palmarés de galardões.
            Claro, apreciámos – como sempre! – o virtuosismo da Sinfónica, sabiamente dirigida pelo dinâmico e infatigável Nikolay Lalov, mas encantou todo o auditório, completamente esgotado, o talento ímpar de Anna Paulová, no domínio perfeito de um instrumento que, no decorrer da execução, facilmente passava dos altos para os baixos, dos fortes para os suaves – e sempre num sorriso cativante, que o longo vestido vermelho com lantejoulas fazia sobressair. Só por essa actuação teria valido a pena sair de casa nessa tarde morrinhenta.
            A sinfonia nº 4 em mi menor op. 98, do Johanes Brahms (Hamburgo, 1833; Viena, 1897) preencheu deliciosamente a 2ª parte do concerto. J. Brahms é, como se sabe, colocado a par de Beethoven e de Bach – os três bbs… - e a sua 1ª sinfonia foi saudada, pelo extraordinário impacto que teve, como a «10ª sinfonia» de Beethoven, porque – dizia-se – depois da extraordinária 9ª do Mestre, nada melhor poderia acontecer. E aconteceu.
            O inegável êxito de mais este concerto prova que a cultura musical ganha cada vez mais apreciadores – a despeito das políticas oficiais de miserável apoio às instituições, às escolas e aos músicos… Segunda conclusão: que andou muito bem o Executivo Municipal de Cascais quando deliberou dar luz verde à ousada proposta de Nikolay Lalov.

                                                         José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 25-10-2016:
http://www.cyberjornal.net/cultura/cultura/musica/um-clarinete-de-ouro

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Ele pisou o risco!

           No livro de Ferreira de Andrade, Cascais – Vila da Corte, há, no final, uma série de apêndices. Refere-se parte deles a cartas de confirmação enviadas pelos monarcas aos senhores de Cascais: que sim, senhor, podiam continuar a manter o senhorio que seus antepassados lhes haviam doado. E, de quando em vez, lá se especificavam bem os limites do território doado, não houvesse por aí abusivas interferências.
            Quem estudou a Idade Média, ouviu falar em confirmações e inquirições. Confirmações eram esses documentos; inquirições eram assim a modos da ASAE, postada a ver quem tinha pisado o risco, porque adregava frequentemente os nobres darem ordens aos seus homens de passarem por aqui e por ali e mexerem nos marcos de propriedade, avançando-os para lá, de modo a, pouco a pouco, o território aumentar.
            Então em relação aos baldios, que eram aqueles terrenos que o Povo tinha para se espraiar à vontade, apascentar os rebanhos, apanhar lenha… a ganância era maior e lá iam os representantes do Povo, os homens-bons, reclamar em Cortes: «Aqui d’el-rei que o senhor nos roubou terras!». E el-rei, que nessa altura auscultava o Povo, nomeava inquiridores para tentar saber como fora. E o Povo ficava a ganhar.
            Um tema aliciante para os historiadores da Antiguidade é o estudo dos limites das províncias e das cidades romanas. Aliciante, porque sempre controverso e porque, afinal, nunca se chega a conclusão convincente.
            Sempre os povos se mataram uns aos outros por causa das fronteiras e é por isso que caem, diariamente, que nem tordos, irmãos nossos no Médio Oriente. E, nas famílias, até por partilhas se pega na caçadeira e lá vai chumbo!
            Hoje, fronteiras não há! Ou melhor, há, mas no papel, porque se instituiu o «espaço europeu», onde cada qual se movimenta como quer. Está mal, porque se trata de um exemplo péssimo para os detentores do poder. Também eles acham que podem movimentar-se como querem e que todo o território é deles, e dele podem usufruir. Não é para semear cevada ou milho ou plantar batatas, couves ou rabanetes, mas para riscarem o chão e, em vez de espantalhos ou CDs velhos para a pardalada ter medo e não comer a produção, pespegam assim a modos de uns robôs com um mecanismo de engolir moedas. Por todo o mundo assim é, e a fábrica desses espantalhos está a ganhar bué da massa e a fazê-los cada vez mais sofisticados, até comandados à distância!...
            Não adianta o Povo queixar-se, porque já não há Cortes nem, por outro lado, tem o Povo quem o possa representar perante o «Big Brother», aquele de que, em 1949, George Orwell vaticinava vir a existir em 1984, mas que veio antes e que ora ganhou tentáculos enormes, qual gigantesco polvo, tão rijo, tão rijo, que nem dá para se comer à lagareiro no restaurante aqui do bairro.
            Queixou-se o Ezequiel, um amigo meu beirão, ao chefe do departamento de trânsito do município dele. Resposta:
            – Quando o senhor compra um frigorífico, tem de saber primeiro se há espaço lá em casa para o pôr, não é? Assim é com os carros. Não se compram se não houver garagem para os pôr!
            Retorquira-lhe o Ezequiel que, quando fora para aquela casa, ele, o irmão, os tios, a famelga toda deixava o carro na rua, porque a rua era de todos e não havia ideia de garagens nem meio-garagens.
            – Mas agora é assim! – retrucou o Chefe.
            O Mário calhou a deixar a carripana com os pneus de trás menos de meio metro em cima dum risco amarelo. Foi multado.
            – Mas… eu deixei mesmo no limitezinho, amigo!
            – Está a pisar o risco, não está?
            – Está.
            Aproveitou, pois, para augurar, de todo o coração, ao amigo que nem ele nem a esposa nem os filhos nem os pais nem os avós, um dia, sejam eles a pisar o risco!...
            Estamos bem cientes: com fronteiras e com inquisidores não se brinca! E quando elas, as fronteiras, ameaçam alargar-se mais e mais, não há homem-bomba que valha!

                                                                  José d’Encarnação
                        Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 161, 26-10-2016, p. 6.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Medalha de mérito cultural grau ouro do município de Lagos para o Prof. José Maria Pedrosa Cardoso

             Em cerimónia solene, a decorrer no próximo dia 27, Dia do Município, a Câmara Municipal de Lagos vai galardoar com a Medalha de Mérito Cultural Grau Ouro o Doutor José Maria Pedrosa Cardoso, Professor aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que reside em Oeiras.
            O município premeia, desta forma, a intensa actividade que o Doutor Pedrosa Cardoso desenvolveu na cidade no âmbito da Música, em que é especialista e de que, aliás, foi mui competente docente universitário.
            Deve-se-lhe, por exemplo, a criação, em 1976, do Grupo Coral de Lagos, que se tem notabilizado, pela cultura ‘a capella’ da boa música, tendo por lema a divulgação musical até aos mais recônditos lugares. Notáveis são, do seu repertório, os trechos populares com arranjos eruditos de Fernando Lopes Graça, de Sérgio Ribeiro e outros.
            Deve-se ao professor a criação dos Cursos Musicais de Férias de Lagos, entre 1978 e 1981, em que intervieram renomados mestres de violino (por exemplo, Alberto Gaio Lima), piano (Olga Prats), direcção musical, clarinete, trombone, entre outros, como o barítono José Oliveira Lopes, idos vários deles da Orquestra Gulbenkian com os respectivos alunos. E também se lhe deve a organização da série de Grandes Concertos, durante mês e meio, no Verão, em que chegava a haver dois a três concertos por semana.
            Na sequência do Grupo Coral, surgiu a Academia de Música de Lagos, que já conta com 25 anos de existência e tem sucursais em Portimão e Lagoa, onde leccionam mais de 90 docentes, nas várias áreas musicais. E também a Câmara criou uma Escola de Música, muito frequentada.
            Lagos entrou assim, pela mão do Doutor José Maria Pedrosa Cardoso, no número das localidades portuguesas onde à Música se confere culturalmente um estatuto especial. É, por isso, reconhecendo esse elevado mérito, que ora lhe é mui justamente outorgada a Medalha de Mérito Cultural Grau Ouro, distinção com que obviamente muito nos congratulamos.
                                                             
                                                           José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, 25-10-2016:

A pitoresca história do 1º marquês de Cascais em livro

            «Creio que o leitor não foi enganado quando lhe prometi contar a alegre história da romanesca embaixada do marquês de Cascais, e o excêntrico termo da existência do famoso embaixador» – assim conclui Alberto Pimentel o seu livro «Um Português Derretido – A Pitoresca História de D. Álvaro Pires de Castro, 1º Marquês de Cascais».
            E é que não se sai da leitura enganado, não. É mesmo uma história pitoresca, para não dizer picaresca, a deste senhor, que viria a falecer «cristãmente, com todos os sacramentos da Igreja, nos primeiros dias de Agosto de 1674».
            Há algum tempo que se andava para dar à estampa esta obra de 60 páginas, que poderia muito bem integrar a série «Memória de Cascais» de que a Câmara Municipal deu à estampa pelo menos oito breves volumes, um dos quais, o 8º, é também de Alberto Pimentel e tem por título «Cascaes In Sem Passar a Fronteira», publicado no ano 2000.
            As diligências não tiveram êxito e, por isso, a dinâmica editora Apenas Livros, dirigida pela incansável Fernanda Frazão – que a esta edição quis agregar, mui gentilmente, a Associação Cultural de Cascais – acaba de dar à estampa a obra, integrada, com o nº 30, na colecção «Ofiúsa – páginas de história portuguesa».
            Congratulamo-nos vivamente com a iniciativa. É mais uma bonita árvore na floresta – já vasta – de livros sobre a riquíssima história cascalense.
            Contactos da Apenas Livros: apenaslivros2@gmail.com e tel. 21 758 22 85.             

                                                                   José d’Encarnação

Publicado em cyberjornal, edição de 25-10-2016:

sábado, 22 de outubro de 2016

Aplausos para uma política ímpar de integração

             Não é a primeira vez que me congratulo com o facto de S. Brás de Alportel ter logrado uma integração ímpar dos estrangeiros aqui residentes.
            Ocorre-me amiúde a imagem da ida às Baamas, onde, estrangeiros e bem estranhos que éramos, sempre nos saudava com um largo sorriso – «you welcome!» – quem connosco se cruzava. Esse sentimento tenho em S. Brás, ao verificar como os estrangeiros por aqui se movimentam como se na sua terra natal se encontrassem. Aliás, tal atitude ficou bem patente na adesão enorme dada pela ‘colónia’ estrangeira às comemorações do centenário: também eles se incorporaram a rigor no cortejo evocativo.
            Fiquei, por isso, muito satisfeito ao verificar que esse exemplo já ultrapassou as fronteiras do Algarve e teve eco pelo País. Refiro-me ao facto de, em boa hora, Notícias de S. Braz ter transcrito com todo o relevo, que se aplaude, na página 24 da edição de Setembro, a reportagem que o jornal Público publicara: «Estrangeiros estão a mudar a vida cultural de São Brás de Alportel – Cultura tem mais adeptos que o futebol».
            Tudo isso se deve, claro, ao carácter hospitaleiro do nosso povo e, de modo especial, à clarividência demonstrada pelas diversas entidades que operam no concelho, privadas e públicas, sendo de realçar, nesse aspecto, naturalmente, tanto a Câmara Municipal como, de modo muito especial, o Museu do Trajo, ponto de encontro preferencial quer para manifestações musicais quer para exposições de artes plásticas.
            Aproveitava, porém, esse aplauso para uma chamada de atenção, que não é novidade nenhuma e estou certo de que os responsáveis têm disso plena consciência: há os que nos procuraram e acolhemos e há os naturais, boa parte deles envelhecidos e sem grandes possibilidades de deslocação. Exemplifico, puxando a brasa à minha sardinha: quem vive no Corotelo ou na Fonte da Murta ou mesmo nos Vilarinhos onde é que, a pé, pode ir comprar leite ou pão?
 
                                   José d’Encarnação
Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 239, 20-10-2016, p. 11.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

A loucura institucionalizada

             Peço desculpa por me atrever a abordar um tema cujos actores podem, porventura, ser alheios ao seu quotidiano. Ou talvez não, porque se me afigura que esta loucura é assim como aquelas ervas daninhas dotadas de enorme capacidade de propagação e não há herbicida capaz de as exterminar ou, pelo menos, de lhes suster o avanço.
            Um exemplo: vais participar, em capital estrangeira, numa reunião da tua especialidade e a tua expectativa, longamente acarinhada, será: vou aí reencontrar amigos de décadas, que há alguns anos não vejo e com os quais apenas mantenho contacto, de vez em quando, através de correio electrónico. Daremos aquele abraço real tanta vez repetido virtualmente; tomaremos um café ou, à hora da refeição ou na pausa-café, dirás da tua vida, saberás das deles, de filhos e de netos, e transmitirás, olhos nos olhos, aquilo que o correio electrónico é incapaz de fazer. Sim, poderias ter comunicado também por skype ou pelo messenger; mas… não é a mesma coisa!
            Puro engano!
            A maior parte desses teus amigos apareceram meia hora antes do horário previsto para a sua intervenção e, na pausa-café, é «olá e adeus!», porque devem partir de seguida para outra reunião que, aproveitando o ensejo, fora previamente agendada para a mesma cidade. Ou, então, necessitam de ir apanhar o comboio porque, noutro local ou no seu próprio local de emprego, outra actividade os espera!
            Uma correria!
            Por detrás dessas vidas a correr está o sistema instituído por entidades superiores, que determinaram objectivos rígidos a cumprir, sob pena de não se avançar na carreira, de se ficar a marcar passo ou, simplesmente, de, sem aviso prévio, não se ver renovado o contrato.
            Pensava – sei agora que ingenuamente – que essas «entidades superiores» eram presididas por pessoas, que também tinham família, que gostavam de ter momentos de pausa, que apreciavam o cultivo da amizade… Não! Presidem-nas autómatos, ligados a computadores cheios de gráficos, que lhes chegam através da internet de outros países com características completamente diferentes do seu, mas que, apesar disso, eles vão procurar introduzir, porque… «vem de fora!» e tem, por isso, de ser bom.
            «Indignai-vos!», proclama Stéphane Hessel. Indignação precisa-se! Contra esta loucura institucionalizada que, obviamente, não leva a sítio nenhum!

                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 694, 15-10-2016, p. 12.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Um espectáculo chamado Ney Matogrosso

              Desta vez, tive curiosidade e fui ao sítio oficial do cantor, para me inteirar um pouco mais do seu percurso. Recordava-o de há muitos anos atrás, não sei quantos, na altura em que ele não podia deixar de dar nas vistas, mesmo ainda integrado no conjunto «Secos e Molhados», pela forma extravagante como se exibia – e a gente gostava ou detestava, não havia meio termo.
            E apreciei deveras a forma como, a maior parte das vezes na primeira pessoa, em autobiografia, Ney Matogrosso (Ney de Souza Pereira, de seu verdadeiro nome, nascido a 1 de Agosto de 1941, em Mato Grosso do Sul, no Brasil) vai apresentando as várias fases da sua vida:
            «Ainda pequeno, escolheu o caminho do questionamento das reticências do mundo adulto, inconformando-se com seus preconceitos e incoerências». «Teve a infância e a adolescência marcadas pela solidão, em parte voluntária – gostava de passar horas seguidas no mato, acompanhado somente por seus cachorros – e por outra parte forçada, pelas constantes mudanças da família, decorrentes das transferências de seu pai militar». «Desembarcou no Rio de Janeiro em 1966, onde passou a viver da confecção e venda de peças de artesanato em couro. Ney adoptou completamente a filosofia de vida hippie».
            Trabalhou com a irreverente Ruth Escobar; viveu os tempos da censura no Brasil e valerá a pena recortar também esta passagem:
            «Na temporada do Rio de Janeiro, no Teatro Tereza Rachel, durante um mês convivi com uma censora permanente, dentro do meu camarim. Ela chegava junto connosco no teatro e ficava no meu camarim até o show acabar. Eu tirava a roupa na frente dela, com a maior naturalidade, e não sabia o que ela fazia ali. […] Tínhamos que fazer shows duas vezes. Uma para a censura. Fazer show para a censura era como ensaiar marcação de teatro. Três passos para cá, três para lá. Eu não podia me pintar daquele jeito, não podia usar rabo-de-cavalo, não podia requebrar. Chegaram a querer censurar o meu olhar. Mas o Secos e Molhados nunca foi proibido, porque era um fenómeno brasileiro. Até as crianças gostavam. Tive mais problemas com a censura depois que me lancei em carreira solo».
            A cena me fez lembrar os tempos heróicos do Teatro Experimental de Cascais, aqui, onde também a PIDE assistia ao ensaio geral… «Três passos para cá, três para lá»...

Um espectáculo
            «O Bandoleiro» (1976) e «Rosa de Hiroshima» (1979) são, seguramente, os temas que de imediato nos ocorrem quando falamos de Ney Matogrosso, para além da sua enorme extravagância no modo de se apresentar em público.
            Assim foi, de facto, na gala em que, no passado dia 4, nos presenteou com os temas do seu novo álbum «Atento aos Sinais». Um privilégio, no Salão Preto e Prata do Casino Estoril, repleto de vultos conhecidos da nossa sociedade.
            Ney Matogrosso foi… um espectáculo! E a palavra não assume, aqui, o tom habitual, jocoso, popularizado por Fernando Mendes. Não. Quero dizer mesmo isso: o artista, mudando amiúde, no palco, de vestimenta, mostrando mais ou menos do seu corpo, acentuadas de propósito as curvas e as partes pudendas mediante roupa cingida, foi sensual, foi cantor, foi bailarino, foi… Artista! Ao vê-lo assim movimentar-se, requebrando-se, como atrás se referia, comentávamos: «Muito ginásio, hein, para quem tem 75 anos e bem se sabe cuidar fisicamente!». Também nesse aspecto um exemplo!
            Seria injusto, porém, se não acentuasse o facto de o «espectáculo», centrado, sim, no artista, ter beneficiado de muito cuidada técnica envolvente: os jogos de luz, os vídeos que, de vez em quando, sublinhavam os temas e, de modo especial, o brilhantismo dos seus músicos: Sacha Amback (direcção musical e teclado), Marcos Suzano e Felipe Roseno (percussão), Dunga  (baixo), André Valle (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone de varas). Exímios, todos eles; contudo, não pôde passar despercebida a dupla dos ‘metálicos’, que sublinharam com muita oportunidade e saber os momentos mais significativos da actuação.
            Ocorre-me a expressão «animal de palco», que poderá parecer ofensiva; no entanto, essa foi, sem dúvida, a sensação de todos nós: Ney Matogrosso é isso mesmo!                  
                                               José d’Encarnação
             Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 159, 12-10-2016, p. 6.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

O baraço

            Enviei um livro por via postal. Fiz o embrulho com papel pardo e atei-o com um baraço. Regozijou-se o destinatário e agradeceu-mo (e peço desculpa por manter a frase em castelhano, que bem se compreenderá) «porque entre tantas bolsas autosellantes y acolchadas, el papel de estraza y el cáñamo trae recuerdos no muy lejanos pero ciertamente pasados». Eu nem pensara nisso – e fiquei naturalmente contente!
            E, claro, achei que baraço era bom termo para uma conversa, até porque me recordo da admiração que tive, quando uma colega minha, espanhola também, anunciou, toda contente, que estava… «embarazada», grávida! Filhos são um dom; mas lá diz o ditado «Quem tem filhos tem cadilhos» – e lá estamos nós, de novo, no campo da fiação, e não da filiação – que esses, os filhos, nós queremos é que sejam… desembaraçados!
            Baraço é mais uma das palavras concretas que pertence à nossa herança árabe: «maras», assim se diz em árabe. E não é que ao vocábulo está ligada, de modo específico, uma conotação violenta? Diz-se que é «laço para estrangular»; e, por isso, lá pelas idades médias, se contava que havia uns senhores «de baraço e cutelo», ou seja, que podiam dispor, a seu bel-prazer, da vida dos súbditos, enforcando-os ou cortando-lhes a cabeça! Se já se viu?!...
            Pela minha parte, enquanto os tiver, prefiro atar com baraços as encomendas que vou enviando…
                                                              José d’Encarnação
Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 213, Outubro de 2016, p. 10.
 

terça-feira, 4 de outubro de 2016

A Psicologia das Multidões

            O título não é meu. Copiei-o de um livro que Gustave Le Bon (1841-1931), médico e sociólogo francês, publicou em 1895. Identifico-o facilmente na minha estante dos livros de bolso de Publicações Europa-América, onde tem o nº 365 (nem sempre me recordo…), porque é o único a que pus capa, tantas são as vezes que me apetece consultá-lo.
            Lembrei-me dele agora, a propósito dos incêndios, imagine-se! E porquê? Porque há nele um capítulo sobre as multidões eleitorais, em que se diz, a dado passo: o programa verbal de um político nunca é exagerado, «podem prometer-se sem receio as mais amplas reformas. No momento, os exageros produzem bastante efeito e não comprometem o futuro. O eleitor não se preocupa nada em saber se o eleito obedeceu à profissão de fé aplaudida e à qual deve a vitória». Não se prometeram, agora, mundos e fundos? Que tudo seria sanado, que se fariam reuniões para criar consensos, que se destinariam verbas específicas para…?
            De vez em quando, há um jornalista malandreco que vai remexer papéis ou gravações áudio ou vídeos e traz essas promessas prá ribalta. E é, então, um coçar de cabeça, um desembrulhar de desculpas, que não era bem assim, que as circunstâncias, afinal, mudaram muito…
            Claro que há também aquele outro jornalista inocente: «Porque é que há mais fogos em Agosto?». O interlocutor lá tenta arranjar uma resposta minimamente viável, e resiste a declarar a pergunta improcedente… E será que é totalmente improcedente? Não há aí um Agosto todos os anos? Não há aquelas leis que, em Agosto, se prometem fazer e que, depois, se baralham todas umas às outras, porque não se pode roçar o mato agora por causa das cobras, nem cortar ramos por causa dos ninhos, nem abater aquela porque é espécie protegida… E o cidadão anda de Anás para Caifás e cada qual interpreta a lei à sua maneira e as Câmaras é que deviam obrigar… Mas se elas próprias nem limpam o que lhes pertence!... E, por outro lado, sabem lá quem é o proprietário, pois o terreno está no nome dum trisavô que tem uma catrefada de descendentes e nem eles sabem que aquilo lhes pertence!...
            Por isso, eu gosto do Gustave Le Bon:
            «O candidato – leia-se ‘o político’ – que consegue descobrir uma fórmula nova, bastante destituída de significado preciso e, por consequência, adaptável às mais diversas aspirações, obtém um sucesso infalível»!
            E diz o Povo: «Como ele fala bem!».
 
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 693, 01-10-2016, p. 11.

sábado, 1 de outubro de 2016

«Olhos de coruja, olhos de gato bravo»

            O filme de Ivo M. Ferreira, «Cartas da Guerra», baseada no livro «D'este viver aqui neste papel descripto: Cartas da guerra», de António Lobo Antunes, trouxe de novo à ribalta a literatura que, de há uns 20/30 anos a esta parte, dá conta das experiências vividas no Ultramar. Antes e durante a guerra, sobretudo.
            Guiné, Angola e Moçambique, os palcos preferidos, porque os mais sangrentos e lancinantes. Houve, porém, uma outra «província», perdida lá nos confins do Extremo Oriente, que só de tempos a tempos, e pelos piores motivos, foi alvo de atenção.

Timor
            O escritor timorense Luís Cardoso, residente em Oeiras, consagra-se como um dos poucos que, paulatinamente e com base na experiência e na investigação, vai passando a escrito as tradições milenares de um povo, ou melhor, de uns povos, para nós, ocidentais, envoltos em mui estranhas concepções.
            O seu segundo livro, «Olhos de coruja, olhos de gato bravo» (Publicações Dom Quixote, 2002) pode ser encarado como um retrato do Timor aí pelos finais da década de 60. Propositadamente, não há referências cronológicas. Apenas quase no fim se alude à Revolução de Abril e se dá a entender que a organização em partidos das várias tendências políticas vigentes poderá vir a alterar profundamente o frágil equilíbrio dos poderes até então alicerçados nas famílias tradicionais e na riqueza em terras e em animais.
            O relevante papel da Igreja Católica. Nada se faz sem a opinião de Padre Santa, influente junto dos poderes políticos e eclesiásticos, suspeita-se que não apenas da metrópole mas até da Cúria. Personagem de enorme influência a todos os níveis. Secunda-o o catequista, pai de dois gémeos (Mateus e Matias) e da protagonista, que, após longas discussões, receberá o nome de uma antepassada, Beatriz. Um nascimento tardio, que até parece ter apanhado o pai desprevenido, atendendo às suas inúmeras andanças em prol dos catecúmenos, espalhados pelo território, mormente para presidir a cerimónias fúnebres…

Uma narrativa intrigante
            Retratam-se em pormenor os complexos rituais que rodeiam o nascimento. E o facto de a criança ter nascido (dizem!) com olhos grandes – nunca se chega a perceber qual o problema… – determina que lhe ponham, de imediato, uma venda, que a irá acompanhar até à última página, em que se consuma o seu casamento com um oficial de olhos de gato, o derradeiro administrador do território nomeado pelo Governo de Lisboa. Mistério!...
            Não é, por conseguinte, livro de leitura fácil, nas suas 150 páginas, de raríssimos parágrafos, períodos curtos, letra miudinha. E em que se contam, porventura, pelos dedos das duas mãos as frases em discurso directo.
            As intrigas familiares, as reacções psicológicas, os conflitos latentes. Romance psicológico e de costumes, desgarrado de uma paisagem concreta identificável ou, mesmo, de um período histórico cronologicamente balizável. A venda negra nos olhos – que dizem ter formato dos da coruja… – parece assumir-se, de facto, como estratagema para que nem tudo se veja, ainda que, paradoxalmente, a menina-da-venda-nos-olhos seja a narradora e veja mais do que muitos que, aparentemente, vendas não têm.
            Romance intrigante, a trazer alguma luz – como outros do mesmo autor – sobre um território ainda hoje dificilmente compreensível para quem nunca por lá passou. E, mesmo para esses, os que por lá passaram, muitos dos mitos e da realidade estarão para todo o sempre ocultos sob densa penumbra. Trata-se de um romance, bem no sei, e não um documento etnográfico e o escritor segue a sua filosofia; mesmo sabendo que o livro vai destinar-se primordialmente a um público português. Não seria, por isso, despiciendo ter-se incluído um apêndice explicativo de termos, de lugares, de circunstâncias, porque ali há etnografia, há história, há vocábulos próprios…
            «Padre Santa tinha dito que eu já tinha visto tudo. Não era verdade. Faltava-me ver os olhos dele. Eram verdes como de um gato bravo. Com a mão fechei os olhos dele. Depois disso não vi mais nada. Como se tivesse fechado os meus próprios olhos».
            Assim termina.
            Na antinomia entre o ver e o não-ver. Uma protagonista que nunca viu com os olhos e muito soube e um apaixonado que dela se enamorou e que às suas mãos vem a sucumbir por amor, de alfinete de ouro espetado no coração. Um drama romântico ou o drama de um povo? Afinal, de quem era a cegueira? E quem a tão enigmática Beatriz?
                                                                                  José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 157, 28-09-2016, p. 6.