quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Estar na forja

                       
               Seduzia-me aquele trabalho. Ia ter com meu pai à pedreira do Xufre, em Birre, e ficava-me horas esquecidas a ver o ferreiro na forja. Como ele atiçava as chamas, como os ponteiros e os escopros ficavam incandescentes e ele pegava neles com uma tenaz e os levava à bigorna e lhes batia a preceito, para os aguçar. Remirava-os uma e duas e três vezes, voltava a bater e, quando os achava bem, punha-os a temperar na água duma tina metálica. Trabalho meticuloso, o aço devia ficar bem temperado, para que o bico do ponteiro ou o corte do escopro não partisse ao primeiro embate na pedra e aguentasse muitos mais até ficar rombo. Meu pai acabou por ter ele próprio uma pequena forja, no barracão da nossa casa na Aldeia de Juso; e, já adolescente e adulto, eu continuei a admirar a perícia requerida por aquela tarefa. Achámos por bem entregar todos esses apetrechos ao Arquivo Municipal, que bem os catalogou, o que muito agradecemos.
            «Estar na forja» era, pois, expressão que me habituei a ouvir e hoje compreendo melhor o seu significado, tanto o concreto, real, o tempo que se requeria para que as ferramentas ficassem no ponto, como o significado figurado, de algo que está a amadurecer, à espera da oportunidade de entrar em acção ou de se mostrar. E se o «bater no ferro enquanto ele está quente» me fez lembrar estoutro prolóquio «de pequenino se torce o pepino», este retirado das fainas agrícolas, «estar na forja» me recordou de novo essa grande actividade, do trabalho da pedra, que tanta riqueza trouxe a Cascais por todo o século XX.

 E falta a sua evocação

            Fizemos em Birre, seu centro nevrálgico na freguesia de Cascais, o monumento que está na Rotunda Carlos Zel. Por ocasião de uma das feiras da freguesia de S. Domingos de Rana, os canteiros de Tires mostraram ao vivo, numa espécie de minimuseu improvisado, o que era aí, nessa zona oriental, o seu labor – não fosse Tires «terra de canteiros», como José Luís Sabido quis imortalizar no título dum dos seus livros. Em Tires, há mesmo, desde 2012, o monumento escultórico a mostrar os principais instrumentos usados: a maceta e o ponteiro. As pedras em bruto ou afeiçoadas que ornamentam algumas rotundas cascalenses continuam a lembrar essa tradição.
        Gizou-se, em tempos, uma proposta, por sinal muito bem fundamentada, de se aproveitar o núcleo de pedreiras da Pampilheira – onde ainda hoje, em progressiva ruína, há as paredes de duas serrações – para uma espécie de ecomuseu da pedra. Temos bancos de boa lioz à mostra; havia uma cova (a parte mais funda da pedreira) com água; ainda lá estão os montes de terra resultantes da exploração… Até há uns dez anos, dois canteiros por ali resistiam a fazer forro a ponteiro ou a melão, aproveitando as ‘aparas’. O projecto não colheu apoio camarário e, de resto, aproveitou-se o local – creio que por algum serviço camarário, nunca cheguei a perceber – para nele se fazerem despejos de entulho.
Garantem-me que, porventura no vale da Ribeira das Vinhas, na proximidade do local onde existiram as «pedreiras de Alvide», como nós lhe chamávamos, essa evocação  do trabalho da pedra se irá concretizar. Oxalá!

                                        José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 342, 2022-01-26, p. 6.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

As avós


              Amiúde penso na felicidade que é ser avô. Não apenas por sentir que se lançou sementes e que elas, mal ou bem, cresceram e se reproduziram; mas porque aos avós é dada a oportunidade de, sem artifícios nem preparativos ou prevenções, transmitirem a sua experiência. E lembro-me de ter lido que, em vez de a uma universidade se ter dado o qualificativo de ‘sénior’, se preferiu chamar-lhe «da experiência».
            Sempre me impressionou, em jovem, quando estudei a organização político-social de Atenas e de Esparta, saber que nelas havia conselhos de anciãos. Em Esparta, era a Gerúsia: 28 membros, os gerontes, assim chamados por terem mais de 60 anos. Daí vem a palavra Gerontologia, uma especialidade médica, só mui recentemente creditada, que trata das doenças da velhice. Em Atenas, era o Areópago, conselho dos anciãos. Na minha inocência, imaginava tudo aquilo como uma série de velhadas que, reunidos, teimavam em não deixar que se pusesse pé em ramo verde, o que, se por um lado era bom, por outro deveria ser uma grande chatice!
            Depois, à medida que a idade foi avançando, as perspectivas alteraram-se, assim como quando se assobe a um monte e se vai vendo um horizonte maior… E, hoje, ao dar a volta a uma gaveta, deparei com a folha que um amigo me enviara a 20 de Julho de 2007, com este comentário em jeito de título: «Espantosa, esta definição! Só mesmo vinda de uma criança…». Era o texto de uma criança de oito anos, que fora publicado no Jornal do Cartaxo.
            Recorto umas linhas do meio:
            «As avós usam óculos e, às vezes, até conseguem tirar os dentes. Quando nos contam histórias, nunca saltam bocados e nunca se importam de contar a mesma história várias vezes. As avós são as únicas pessoas grandes que têm sempre tempo».
        E dei comigo a juntar palavras: experiência, Gerúsia, Areópago, o tempo que as avós têm sempre!...

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 302, 20-01-2022, p. 13.

sábado, 15 de janeiro de 2022

Pessoas não! – Recursos!


           
A palavra surge a cada momento: «as pessoas dizem», «as pessoas falam», «as pessoas não querem»… As pessoas, as pessoas, as pessoas
Mas, afinal, quem são as pessoas?
No contexto religioso, o termo poderá equivaler a «o próximo», bem patente na máxima «Ama o próximo como a ti mesmo». Parte-se do princípio de que todos somos membros da comunidade humana, ideia a reflectir, de resto, o proclamado por todas as religiões: a irmandade. Mesmo nas sociedades onde persiste a discriminação de género, de idade ou de raça, mesmo nessas, a ideia de pessoa acaba por prevalecer.
Chegados aqui, ocorrerá, porém, uma dúvida: se também será assim, nas sociedades ditas avançadas, cultas, civilizadas.
E aceito, por isso, o desafio de um amigo:
«Gostaria que abordasses um tema que me preocupa há muito e que, quase todos os dias, me perturba, quando, sistematicamente, nesta sociedade de mercado (não apenas ‘economia’ de mercado), vejo que tratam as pessoas como coisas», o que está patente em expressões como «recursos humanos» e «capital humano». Ou seja: recursos, coisas, objectos, valores…
«No nosso relacionamento com a Economia e com a Sociedade», continua o meu amigo, «temos apenas uma dimensão, mesmo que humana: consumidor, produtor, utente, cliente».
E conclui:
«Tornou-se de tal maneira moda que já ninguém fala em “pessoal”. Não é bonito! “Recursos Humanos” é… mais fino! O Ministério da Defesa, por exemplo, até deu um passo em frente: tinha uma Direcção de Pessoal, outra de Armamento e Material Militar. Agora, para reduzir as chefias, resolveu unificar tudo na Direcção de Recursos! Pessoas, alimentos, armas e outro material é tudo a mesma categoria. São todos apenas… Recursos!».
Por isso, mesmo a terminar a sua sugestão, exclamava, não sem um enorme desconsolo e a mais profunda tristeza, ele que comandou centenas de homens e tudo fez para os trazer sãos e salvos após as saídas:
– Hoje ainda faz mais sentido dizer que "os soldados são carne para canhão"!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 814, 15-01-2022, p. 12

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O Homem, espécie vulnerável

           Muitos de nós terão apreciado já o vídeo em que o dinossauro Frankie The Dino decide entrar na sede da ONU, onde, a 31 de Outubro, ia começar a Cimeira do Clima (a 26.ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas).

Enorme, Frankie vai até ao púlpito e, perante o assombro amedrontado dos participantes, faz o discurso. Conta como é que a sua espécie se extinguiu e avisa que, a continuarmos assim, também a espécie humana depressa se extinguirá. «Não escolham a extinção!», suplica no final, «já basta o que nos aconteceu!».

Afina pelo mesmo diapasão o habitual postal de Boas Festas, enviado aos seus amigos pelo Doutor Jorge Paiva, do Instituto Botânico da Universidade de Coimbra, acérrimo paladino da biodiversidade.

Flores de pau-brasil
          E se a primeira imagem do postal mostra as encantadoras flores do pau-brasil, a segunda é a fotografia dele próprio, Jorge Paiva, não por ele mas como um dos muitos milhões de seres humanos, também eles, como o pau-brasil, em risco verdadeiro de extinção, caso se continuem a desrespeitar as leis da Natureza.

Não há – sabemo-lo bem – dia nenhum em que não sejamos acordados com a notícia de inundações, os glaciares da Antártida a desfazerem-se, um tufão, um terramoto, um ciclone, um espojinho… Espojinho era o nome que se dava, no campo, a um remoinho, que nos levava o chapéu pelos ares, nos arrebatava num ápice as folhas da mão. Era! Agora, os espojinhos são tornados que, de um momento para o outro, vindos do nada, tudo viram do avesso!...

Há que agir.

Já.

«Se nada for feito», conclui Jorge Paiva no seu bilhete postal, «a desertificação aumentará drasticamente; os ciclones aumentarão em número e violência e os incêndios florestais serão mais devastadores. Chegará o momento em que não haverá para onde migrar, pois vivemos numa enorme gaiola e não há planeta próximo com condições para a vida humana. Actualmente, somos já uma espécie vulnerável».

                                                     José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 813, 01-01-2022, p. 12.