Seduzia-me aquele trabalho. Ia ter com meu pai à
pedreira do Xufre, em Birre, e ficava-me horas esquecidas a ver o ferreiro na
forja. Como ele atiçava as chamas, como os ponteiros e os escopros ficavam incandescentes
e ele pegava neles com uma tenaz e os levava à bigorna e lhes batia a preceito,
para os aguçar. Remirava-os uma e duas e três vezes, voltava a bater e, quando os
achava bem, punha-os a temperar na água duma tina metálica. Trabalho meticuloso,
o aço devia ficar bem temperado, para que o bico do ponteiro ou o corte do
escopro não partisse ao primeiro embate na pedra e aguentasse muitos mais até
ficar rombo. Meu pai acabou por ter ele próprio uma pequena forja, no barracão
da nossa casa na Aldeia de Juso; e, já adolescente e adulto, eu continuei a admirar
a perícia requerida por aquela tarefa. Achámos por bem entregar todos esses
apetrechos ao Arquivo Municipal, que bem os catalogou, o que muito agradecemos.
«Estar
na forja» era, pois, expressão que me habituei a ouvir e hoje compreendo melhor
o seu significado, tanto o concreto, real, o tempo que se requeria para que as
ferramentas ficassem no ponto, como o significado figurado, de algo que está a
amadurecer, à espera da oportunidade de entrar em acção ou de se mostrar. E se o
«bater no ferro enquanto ele está quente» me fez lembrar estoutro prolóquio «de
pequenino se torce o pepino», este retirado das fainas agrícolas, «estar na
forja» me recordou de novo essa grande actividade, do trabalho da pedra, que tanta
riqueza trouxe a Cascais por todo o século XX.
E falta a sua evocação
Fizemos
em Birre, seu centro nevrálgico na freguesia de Cascais, o monumento que está
na Rotunda Carlos Zel. Por ocasião de uma das feiras da freguesia de S. Domingos
de Rana, os canteiros de Tires mostraram ao vivo, numa espécie de minimuseu
improvisado, o que era aí, nessa zona oriental, o seu labor – não fosse Tires
«terra de canteiros», como José Luís Sabido quis imortalizar no título dum dos
seus livros. Em Tires, há mesmo, desde 2012, o monumento escultórico a mostrar os
principais instrumentos usados: a maceta e o ponteiro. As pedras em bruto ou
afeiçoadas que ornamentam algumas rotundas cascalenses continuam a lembrar essa
tradição.
Gizou-se, em tempos,
uma proposta, por sinal muito bem fundamentada, de se aproveitar o núcleo de
pedreiras da Pampilheira – onde ainda hoje, em progressiva ruína, há as paredes
de duas serrações – para uma espécie de ecomuseu da pedra. Temos bancos de boa
lioz à mostra; havia uma cova (a parte mais funda da pedreira) com água; ainda
lá estão os montes de terra resultantes da exploração… Até há uns dez anos, dois
canteiros por ali resistiam a fazer forro a ponteiro ou a melão, aproveitando
as ‘aparas’. O projecto não colheu apoio camarário e, de resto, aproveitou-se o
local – creio que por algum serviço camarário, nunca cheguei a perceber – para nele
se fazerem despejos de entulho.
Garantem-me que,
porventura no vale da Ribeira das Vinhas, na proximidade do local onde existiram
as «pedreiras de Alvide», como nós lhe chamávamos, essa evocação do trabalho da pedra se irá concretizar.
Oxalá!
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 342, 2022-01-26, p. 6.
Que belíssima introdução esta do trabalho na forja e do tempero do aço! Bem poéticas as imagens do fogo e dessa liga metálica que é o aço, incandescente, a ser temperada na água fria... Nunca tinha visto o trabalho dos ferreiros, acabo de "ver" agora. E serve a introdução para um apelo (ou um lamento ?) à criação de um ecomuseu de pedra no local onde ela existe. A "boa lioz" à vista na Pampilheira. Pois é...e até se podiam promover visitas de crianças em actividade extracurricular...para que todos soubessem que a vida é uma cadeia formada por vários e diferentes anéis desde o princípio dos tempos.
ResponderEliminarTambém recordo,com saudade,as minhas idas á oficina do meu avô,nos Vilarinhos e observava o meu pai e os meus tios a moldarem o ferro incndescente retirado da forja.
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