Extasiava-me, do pátio de trás da casa de minha avó, no Cerrito, a olhar para a banda dos Vilarinhos e a espraiar a vista desde a Gralheira ao Malhão, quedando-me, em prece, no vulto da igreja de S. Romão.
«É preciso conhecer as vilas, as aldeias, os campos, a serra, o mar (no Barlavento), para sentir e amar o Algarve como ele deve ser sentido e amado – como um dos mais lindos, originais e sugestivos rincões da terra portuguesa. O que há, pois, a ver e admirar nesta província são sobretudo os aspectos inconfundíveis da sua paisagem e os traços pitorescos da sua vida regional» (p. 210).
Sedutora, a descrição da viagem a partir de Barranco do Velho:
«A estrada para S. Brás continua com belos pontos de vista para a direita, num solo extremamente movimentado. Aparecem as primeiras figueiras. O caminho coleia. Os outeiros da esquerda lembram jardins em terraços. As ondulações do terreno, as sucessivas quebradas da montanha, os vales cultivados, a vegetação mais exuberante, as massas verdes dos pinheiros tomando as encostas, tornam o panorama encantador. Vê-se já Alportel, mais além o Farrobo sobre um outeiro e, de repente, numa brusca transição, entramos no jardim algarvio, o Chenchir dos Árabes. A mutação não pode ser mais completa. Desaparecem o mar de montanhas, os pinheirais ondeantes, os sobreiros, as colinas doces e boleadas. Deixámos a região do xisto, entramos na dos calcários. É o Algarve propriamente dito que começa, com as suas árvores baixinhas, as suas casas brancas, as suas chaminés mouriscas e os seus pequeninos campos divididos por piteiras. Transpusemos 200 a 300 m., e parece que entramos em outro mundo» (p. 216).
Depois de se ter falado de Loulé, ruma-se a S. Brás de Alportel «por uma estrada pitoresca, uma das mais animadas do Algarve. Belas vistas à direita para a campina cheia de casais e de arvoredo e para a linha de cerros que nos separa do mar» (p. 230).
Confesso que tive de ler duas vezes, por não querer acreditar no que, a determinado momento, vi escrito. É que se explica que de S. Brás se pode «regressar a Faro por um caminho mais longo mas mais pitoresco» e, ao chegar a S. Romão de Vilarinha [sic], «começa a trepar-se uma colina até subir a meia encosta o monte do Corotelo, numa deliciosa varanda sobre os outeiros e os campos circundantes. Poucas vezes se tem ocasião de apreciar no Algarve panorama tão colorido e gracioso. Esse panorama ainda aumenta de amplidão se, fazendo uma pequena pagarem no Corotelo, nos tentarmos a subir por uma íngreme vereda à assentada em que se erguem os moinhos da Fonte da Mural [sic]. Para o S. estende-se o mar num circuito de muitas milhas, desde as paragens de Tavira e Albufeira. Para o N. é um verdadeiro rosário de aldeias, que fecha ao longe na massa compacta de S. Brás, enquanto no horizonte se arredondam duas cadeias de cerros dispostos em anfiteatro desenhando um largo quadro de estilo rocaille, que seria inteiramente belo e amável se não tão desnudos de vegetação esses cerros calcinados. Nas alturas dezenas de moinhos, ao vento propício, rodam continuamente a sua cruz de Cristo…» (p. 243).
ooo
José d’Encarnação
Publicado em SBA Revista de Cultura, 1, Outono de 2020, p. 6-8.
José Manuel Varela Pires
ResponderEliminar30 de dezembro às 23:27
Chamo a atenção para a leitura atenta do emocionante texto de abertura, da autoria do Professor José d'Encarnação!...... É puro Algarve, emocionante e belo, tal como aquele "Algarve outro" que outrora conhecemos...
É um texto lindo, de memórias de infância ainda vivas ampliadas por outras memórias escritas. E tão intensas as impressões do autor, "...puro Algarve..."que nos levam em viagens ao passado por belos pedaços da paisagem algarvia. S. Brás de Alportel, que já foi "a mais populosa aldeia do País...", aqui está representada pela impressiva escrita de José d´Encarnação. É uma delícia ler este texto memorialista e percorrer espaços que julgamos ainda virgens. Parabéns.
ResponderEliminarTomo a liberdade de pegar nos comentários inseridos na página do Facebook e reproduzi-los aqui – em jeito de agradecimento a quantos tiveram a gentileza de ler e ali dar conta da sua reacção. – J. d’E.
ResponderEliminarHelena Ventura Pereira
Um texto maravilhoso que comentei no espaço do blog e que vale a pena ler. Eu vou reler. Um belo primeiro dia do ano e muitas alegrias durante o percurso todo até Janeiro do ano que virá.
Maria De Jesus Brito
Linda descrição da nossa paisagem são-brasense!
Célia Faria
Fascinam-me essas memórias de infância! E que saudades!
Vitor Barros
Viva Dr.
Votos então de um 2021 pleno de saúde e que a inspiração e sabedoria continuem a ser o presente com que nos brinda em cada crónica e em cada texto.
Gosto muito deste texto pois estou dentro dele desde pequenino... particularmente esses moinhos, onde tanto brinquei, onde tantas vezes passei com a chuva por companhia, com o calor a secar gargantas, com o avô, o macho, as alfarrobas... Enfim, um mundo imenso onde tanta gente tanto sofreu e suou mas onde foi tão feliz! E onde eu ainda por vezes vou e onde encontro e falo com tanta gente conhecida... e fico tão feliz também!
Vitória Pinto
Obrigada pela foto. Vejo a minha casa em S. Romão. Já não vou lá desde o verão.
Marlene Guerreiro
É sempre um prazer ler o meu amigo que escreve como quem pinta!
Ana Claré
É o que nos fica dos cantinhos onde fomos felizes. Beijinhos, compadre, adorei.
Graça Pereira Araújo
Texto maravilhoso, professor! Abraço. Bom ano novo!
Isabel Maria
Adorei. Tenho a sorte de conhecer e admirar essas paisagens, sobretudo de sentir aquela terra e cheiros. Também faço parte de um bocadinho dela, pelo menos um mês por ano.