Permita-se-me que complemente a crónica anterior, de evocação dos anos 50.
Hoje, respeito e até acho graça à família de osgas que há anos se domiciliou na minha garagem e por lá tem feito criação. Vejo-as de vez em quando, elas olham para mim com ar entre desconfiado e sereno. Ontem, uma das mais pequenitas teve de se esgueirar à pressa, porque eu a não vi ao regar.
Anteontem, a Filipa chamou-me de mansinho. Queria mostrar-me, soube-o depois, a sua lagartixa de estimação, que, diariamente, pela manhã, vinha comer o pedacinho de queijo que ela lhe punha num canto da entrada do salão de cabeleireiro.
Voltámos, pois, a uma convivência normal com estas bichezas, na medida em que cabalmente compreendemos a sua missão no seio da biodiversidade. Até sou capaz de me levantar da secretária para ir abria a janela á mosca atarantada; será, porventura, bom alimento para outro bicho qualquer; esmagando-a, eu nada ganharia!...
Não era assim nos anos 50. Lagartixa ou osga constituíam desafio de caçador. Colhia-se um pé de palanco. Limpava-se com cuidado a parte mais fina e ajeitava-se em forma de laço corrido. Ficava um laço fininho, a lembrar em miniatura o dos cowboys; aqui, todavia, não era para apanhar potro selvagem, mas, sorrateiramente, a lagartixa adormecida ao sol. Enfiava-se-lho devagarinho pela cabeça e, quando lhe chegava ao pescoço, ou puxávamos ou era a própria lagartixa a querer esquivar-se. Boa caçada, para regozijo nosso de heróis.
Um pormenor me chamava sempre a atenção e hoje compreendo o seu enorme significado. Ao sentir-se em perigo, a lagartixa soltava, por vezes, a cauda, que ficava a rabear e ela… escapulia-se! O agressor… distraía-se!
E dei comigo a pensar nas muitas caudas a rabear no dia-a-dia, a fim de o mais importante se poder escapar sem dar nas vistas!...
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 782, 01-09-2020, p. 11.
"muitas caudas a rabear no dia-a-dia, a fim de o mais importante se poder escapar sem dar nas vistas" - O retrato fiel dos tempos que correm...
ResponderEliminarCaro Professor, passei, também, por todas essas fases, do «caçador» inconsequente ao protector acérrimo de qualquer forma de vida, com várias «nuances» intermédias. Mas o que mais me apraz registar foi a influência que teve sobre mim, há um bom par de anos, uma chamada de atenção do meu filho quando acabei com a vida a uma varejeira que me atazanava a refeição... «- Bastava teres aberto a janela e ela havia de sair. Agora, tanto esforço para a matares serviu para quê?». Ele teria os seus doze anitos e eu aproximava-me dos cinquenta. Fiquei de tal modo constrangido perante o óbvio... que daí até hoje tornei-me num mestre em abrir janelas... Grande abraço.
ResponderEliminarDelicioso texto que me mostra duas coisas: primeiro, não sabia que as pobres eram caçadas e podiam deixar o rabo para trás; depois, também eu procedo mal quando,em situações inesperadas, tenho que decidir entre a vida e a morte das tais. Há dias apareceu-me uma no lava-loiças (3º. andar???) e fiquei petrificada. Ali?...De onde teria vindo? Parecia morta. Mas não estava.Quando lhe peguei com um pedaço de papel de cozinha, o que ela estrebuchava, abrindo e fechando a boca ao mesmo tempo. Matar, não conseguia...olhar para o bicho assim, também não. E toda arrepiada (vou ter que assumir o pecado) atirei-a para o jardim. Escapei sem dar nas vistas, até hoje...Quanto a ela, não quero que me contem...
ResponderEliminarDelicioso texto!
ResponderEliminarAdoro essas lagartixas, que têm tanto de bonitas como de úteis.(Claro no meu ponto de vista,e sem querer impressionar os mais sépticos).Acho bonito ter essa atitude,de observação! Beijinho.
Elisabeth Le Paige
ResponderEliminarquarta-feira, 2 de Setembro de 2020 13:08
Estimado Professor, gostei muito dos seus comentários a respeito de osgas e lagartixas. Ambas vivem no meu terraço onde há arbustos e plantas. Eu e elas felizes.
Elisabeth