Nunca
me pusera a questão; quando, porém, se fez a investigação
para o livro Para uma História da Água no
Concelho de Cascais (Guilherme Cardoso e José d’Encarnação, edição
dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento de Cascais,1995), não hesitámos
em dar relevo ao artigo que, em Julho de 1917, Ruy d’Athouguia Ferreira Pinto
Basto, visconde de Atouguia, publicara no jornal A Nossa Terra acerca da
caça em Cascais.
É
que, para a caça, há caçadores e… há cães! E, portanto, há que pensar
seriamente neles. Por isso, o visconde traça um completíssimo quadro do que, em
relação à água, se poderia encontrar
no concelho:
«Em
quase todas as povoações», escreve, «há fontes junto
às casas ou a pouca distância delas, sendo todas boas para beber; mas há grandes
áreas de terreno onde as não há, sendo necessário levar água ou dar a volta por
forma que não falte na ocasião necessária, tanto para nós como para os cães».
E
traça bem sugestivo quadro do que poderia encontrar-se. Por exemplo:
«Na
Marinha, desde a Guia até ao Cabo Raso, só há água no pinhal, onde passa em
canos de chumbo, ou na fonte da Areia, que dista do povoado aproximadamente 1
km».
ooo
Comuniquei,
há dias, à Cascais Ambiente a minha preocupação
quanto à sobrevivência de um ouriço-cacheiro que vive no meu bairro. Fiquei
descansado com a resposta obtida:
«Os ouriços, entre outros pequenos mamíferos,
têm a capacidade de se adaptar e
conviver com o ser humano, sendo que, na maioria dos casos, não damos por isso.
Neste caso em particular dos ouriços, estes pequenos mamíferos beneficiam dos
nossos espaços verdes urbanos, onde conseguem capturar alimento como caracóis e
lesmas, mais abundantes em zonas regadas.
A espécie não é
ameaçada e é um bom indicador de qualidade ambiental. O facto de se deixar ver
é porque está à vontade e confiante de que não lhe fazem mal, na certeza de que
este já identificou os riscos existentes no local.
Recomenda-se assim que
se deixem sempre estes animais nos seus locais onde sempre viveram e estão
adaptados, conhecem os abrigos, pontos de água e alimento».
Não pude deixar de
relacionar este caso do ouriço com a história dos cães de caça, porque a preocupação era a mesma: a de haver água.
ooo
Preocupação bem antiga, essa, se pensarmos nos Romanos. No
povoado dos Casais Velhos, entre a Areia e o Guincho, encontramos restos do
aqueduto que o abastecia. O mesmo sucede na villa
romana do Alto do Cidreira: identificámos complexo sistema de condutas de água.
E, em relação à villa romana de Freiria, torna-se mais do que evidente que o sítio
foi escolhido por Tito Curiácio Rufino, devido à existência de um permanente manancial
de água cristalina a brotar da rocha. Aliás, não se esqueceu ele de mandar
gravar agradecimento à divindade Triborunnis,
o génio que protegia a nascente. E o amplo tanque das termas acabou por ser
construído mesmo no leito do ribeiro, para todos se poderem banhar em… águas
correntes!
Relanceando o olhar por
outras paragens, recordar-se-á que o Aqueduto da Águas Livres, erguido ao tempo
de D. João V, aproveita no início do seu percurso o que fora o aqueduto romano
de Lisboa, a partir da barragem romana de Belas, no vale
da ribeira de Carenque. A cidade romana de Conimbriga teve aqueduto que abundantemente a abastecia
a partir de Alcabideque (nascente ainda hoje em plena actividade); a capital da
Lusitânia romana, Mérida, faz gala do seu Aqueduto de los Milagros, cuja água
vem da barragem de Prosérpina, também ela de origem romana. Há, em Évora, o Aqueduto
dito de Sertório, que igualmente teve raiz no tempo dos Romanos. Elvas orgulha-se
do seu aqueduto da Amoreira e, em Coimbra, há os «Arcos do Jardim», que é o
aqueduto de S. Sebastião.
ooo
Não é, por conseguinte,
de admirar que, nas Memórias Paroquiais
a que se referência na anterior crónica, a 23ª pergunta tenha sido: «Se há na
terra, ou perto dela, alguma fonte ou lagoa célebre, e se as suas águas têm
alguma especial virtude».
Bem circunstanciada se
revela a resposta dada pelo prior de Cascais, que começa por afirmar que «toda
a terra é mui falta de fontes e de águas» (daí se compreender, voltando ao
começo desta crónica, as preocupações do visconde da Atouguia, 150 anos mais
tarde…).
E explicita o reverendo
Marçal da Silveira:
«Tinha, sim, uma copiosa
fonte, de que todo o povo bebia; porém, esta, por umas minas que lhe deram na
mãe para que melhor brotasse, a deitaram a perder, com que veio a faltar: comummente
se seca desde Julho até Novembro e torna, então, a rebentar. E é perda grande,
porque a água é a mais célebre que se podia excogitar».
Como sói dizer-se: quem
tudo quer tudo perde!...
«E em remédio»,
continua o prior, «tem vários poços e noras; porém, sempre se padece muito com
esta grande falta».
Havia, por conseguinte,
que encontrar outros recursos e o rol pormenorizado não se faz esperar:
«Remedeia a cisterna da
Cidadela a uns; a fonte de S. Clara, a outros. E os mais se remedeiam com os
poços ou a mandam buscar à Guia e ao forte da Guia, à Torrezela e a outras
partes vizinhas, no que padecem mui grandes incómodos».
Torrezela é a actual
Atrozela, sita no vale da Ribeira da Penha Longa que, mais adiante, se junta à Ribeira de Porto Covo e, começando por ser
Rio Marmeleiro, é depois a Ribeira das Vinhas, o maior curso de água do
concelho de Cascais. Ainda hoje há na Atrozela uma captação
de água. E não deixará de ser curioso lembrar que Atrozela está bem pertinho de
Alcabideche, topónimo que equivale ao Alcabideque a que atrás se fez
referência, fonte de abastecimento de Conímbriga. A etimologia é, na verdade, a
mesma: da expressão latina «ad caput aquas», literalmente ‘à do manancial de
águas». Há, na Sardenha, uma localidade que ainda mantém esse nome: Cabu d'Aquas ou Caput Aquas, justamente
por estar próxima de uma nascente de água potável muito famosa e conhecida
desde a época romana. Em Portugal,
porventura por influência dos Árabes, deu Alcabideche e Alcabideque.
Uma nota final, como
recorda o Pe. Marçal da Silveira:
«No
convento dos Padres Carmelitas se descobriu de novo uma fonte de água que
buscaram na cerca, com que se
remedeiam, pois a que tinham, em uma nora antiga, era salobra; e da outra fazem
caridade a muita vizinhança».
Com
o abastecimento desse convento – onde está hoje o Centro Cultural de Cascais –
se relaciona o aqueduto de que pode observar-se um bom trecho no Parque Urbano
da Ribeira dos Mochos.
José d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 06-09-2020: https://duaslinhas.pt/2020/09/ha-que-pensar-nos-caes/