1 – A venda pessoal
Chamava-se
«venda» ao estabelecimento comercial onde praticamente tudo se comprava. O dono
era conhecido, conhecidos eram também os fregueses.
Nesse
tempo, o trabalho era pago à semana, não havia semana-inglesa e, por isso, dinheiro
«fresco» era ao sábado. Até lá, o valor das compras era assente no «rol», um
livro onde cada página era duma família. Saldavam-se as contas ao sábado ou
quando, por via de qualquer serviço extra, o dinheiro aparecia.
Tudo
em regime de mútua confiança, embora os proprietários da venda soubessem do risco
de sofrerem um «calote», nome pejorativo dado à dívida passível de não vir a ser
saldada, por penúria ou maldade do freguês.
Na
venda (estabelecimento), havia o essencial para o dia-a-dia; contudo, isso não
evitava a existência de vendedores ambulantes. O padeiro era um deles, vendia
ao domicílio e sabia quanto é que cada casa gastava de pão por dia. O leiteiro,
visita diária também. E as varinas! Essas iam de madrugada à lota da vila
arrematar as tecas; punham as canastras nas camionetas de carreira aí pelas
nove, dez horas e espalhavam-se pelos lugares, cada uma pelo seu, chegando a
meio da manhã, para o peixe ainda servir para o almoço. O azeiteiro vinha
semanalmente ou de 15 em 15 dias; trazia azeite, vinagre, óleo, petróleo,
álcool desnaturado… Até o amolador e o funileiro eram visitas periódicas!
Uma
vez por semana, as donas de casa rumavam à «praça», nome por que se designava o
mercado saloio. «Saloios» eram, na Idade Média, os habitantes dos arredores de
Lisboa que a abasteciam de produtos hortícolas. Na praça era mesmo o que se
vendia. Fresquíssimo. Da época. Colhido no dia anterior. Tomate no tempo do tomate,
uvas no tempo das uvas, melões no tempo dos melões, nabos no tempo dos nabos…
Conheciam-se
quem vendia. Regateava-se, quando se tratava de freguesa certa… Ir à praça era
um ritual. Aí se reencontravam amigas, se sabiam as novidades, à boa maneira
das feiras medievais…
E
esse recuar no tempo fez-me recuar mais também: para o período negro, do
racionamento, que se viveu no após-guerra. Cada família tinha direito a uma
porção de azeite, de açúcar, de petróleo, de sal… Havia senhas e ia-se aqui e
além, na esperança de poder ser aviado, porque nem sempre havia de tudo…
2. O pânico dos anos 60
Este
panorama tranquilo viria a ser perturbado com o aparecimento dos supermercados
e, depois, com as «grandes superfícies». Cascais foi dos primeiros a ter uma
loja desse tipo, o Pão de Açúcar, inaugurado em Setembro de 1973 (do actual
grupo Auchan) e dos primeiros a ter um shopping
center (Maio 1991).
Antecipando-se à anunciada dificuldade do comércio a retalho – os padeiros já haviam criado, em Outubro de 1953, a União Panificadora de Cascais (hoje, Panisol) – os pequenos comerciantes uniram-se n’A Luta (Cooperativa Abastecedora de Produtos Alimentares do Concelho de Cascais), que, mediante a compra por atacado, permitiria manter os preços baixos e fazer face a esses «monstros» do comércio.
Uma resistência que, arduamente, se manteve por mais de uma década. Sucumbiria depois, mormente com a internacionalização do comércio (hoje, comem-se melões nem se sabe bem donde…) e as facilidades concedidas aos chineses…
Morte anunciada? Creio que não.
3. O valor do património
Também nos produtos comerciáveis, o conceito de património entrou, sobretudo quando – a todos os níveis da população – se começou a compreender que, além da qualidade, o produto local ganhava «substância», isto é, começava a impor-se de novo. Já se preferem a laranjas do Algarve, os melões de Almeirim, as azeitonas de Elvas, os ananases dos Açores, o pão alentejano...
Por outro lado, as vicissitudes financeiras das famílias – os filhos a não terem emprego, os idosos a serem cada vez mais, a permanente instabilidade do trabalho, a falta de confiança nos governos regidos mais por interesses partidários do que pelo bem-estar do Povo… – essas vicissitudes obrigaram, de certo modo, a um retorno ao valor da comunidade, do espírito de vizinhança e, consequentemente, a loja de bairro voltou a ganhar preponderância.
Nesse caminho estamos.
Nesse caminho, auguro eu que continuemos, inclusive para salvaguarda dos nossos patrimónios. E sublinho nossos, porque, neste caso, já não é de Cascais que falo, mas, inclusive, da mais recôndita aldeia do interior alemão. A todos cabe essa missão!
José d’Encarnação
Publicado em Portugal-Post [Correio Luso-hanseático], Hamburgo, 66, Dezembro 2019, p. 38-40.
O texto tem versão alemã – Vom “Tante Emma-Laden” zum Massenbetrieb – Am Beispiel von Cascais – da autoria de Karin von Schweder-Schreiner. A publicação original impressa pode ser vista e descarregada em:
http://hdl.handle.net/10316/88469
Varinas (Foto do Museu do Mar de Cascais) |
O mercado de Cascais num antigo desdobrável turístico |
O mercado da Vila de Cascais na publicidade institucional |
Extraordinária crónica do professor José d'Encarnação grande conhecedor das tradições locais e com uma facilidade de comunicação inusual.
ResponderEliminarNotável artigo, detalhado e muito bem escrito, que faz a história do comércio da zona de Cascais (rural e citadina) desde a venda, onde se podia encontrar um pouco de tudo o que faltava, e os vendedores ambulantes, passando depois pelas grandes superfícies e registando a tendência actual para se fazer reviver o espírito comunitário, a partilha, a procura dos bens locais nas pequenas lojas de bairro. Vale a pena ler e reviver o Portugal de antigamente. Parabéns José d´Encarnação.
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