60
anos que sentiram, ainda que em meio urbano e de classe média, os ecos da
guerra que na sua Angola então se fazia «no mato». Ecos vivos, recordações bem
presentes, porque plasmadas na infância e na juventude e facilmente, por isso,
se evocam hoje os cheiros, os sons, os silêncios. 60 anos em que Portugal
sofreu as transformações mais radicais e que na alma das gentes fundamente se
repercutiram e, aos 60 anos, disso tomamos consciência plena, na certeza de que
essas foram as marc as que nos
moldaram lá e cá.
Um
solilóquio autobiográfico, sem dúvida, salpicado aqui e além daquele lirismo de
que a história de Pedro e Inês sempre é capaz de ser matriz. Um solilóquio que,
inesperadamente, se solta em diálogo:
«Majestosas
como as que tu e eu já vimos, junto ao Sumbe, e ainda bem maiores. […] Por
vezes lá longe já, em águas mais tranquilas, passeavam-se hipopótamos com ar de
quem nos queria cumprimentar» (p. 41).
«Já
semeei tantas noites de ti, ementando-te. Embaciando os vidros com a boca
encostada à janela fria: crio-te e apago-te como o faço a mim própria. Para
depois tudo recomeçar. Ficou-me a folha em branco, o papel e as noites sem fim.
Não, já não as cubro inteiras com o teu cheiro que tanto quis reter. E,
contudo, precisava de umas mãos que me afagassem o rosto agora» (p. 43-44).
Lirismo
contido, que – num relance – acaba por despontar, em desabafo:
«Quem
sabe o silêncio de uma lagoa onde se esconde uma vida inteira?» (p. 42).
Prenhes
de significado as descrições do quotidiano vivido em Malange na década de 60;
pinceladas certas, as que retratam um Alentejo para onde Filo mena
Barata cedo foi batalhar:
«[…]
Esse espaço era tão, tão grande que nele havia também lugares cheios de esteva,
infestando hectares e hectares, e outros, onde o montado teima em sobreviver,
abrigando as “zorras” quando anoitec e,
e onde escavam tocas os coelhos bravios, sobrevoados pelas sobranceiras águias
ao alvorecer» (p. 33).
Louve-se
o facto de serem raras as gralhas – os frades cistercienses rezam as Laudes e
não as laudas, as benzeduras desfazem o quebranto… Mui eloquente o design
gráfico, bem patente na capa, em cuja 1ª badana se semearam as fotos de um
passado saudoso, onde não falta a avioneta que aprendeu a pilotar…, e onde se
retrata a pele sob a qual, no livro, se espraiaram emoções, experiências
fecundas («Resistir, continuar é o sítio de quem não quer parar» - p. 32).
A
apresentação foi no dia 26 de
Outubro, no Museu Nacional de Arqueologia. O prefácio é de Luísa Amaral, em
jeito de carta à Autora. Glória de Sousa, do Perfil Criativo (a editora),
explica, na contracapa, que estamos perante uma «arqueologia do sentir», não
apenas (digo eu) por Filo mena Barata
ser arqueóloga mas também – e sobretudo – porque de ‘sentires’ está bem
impregnado o testemunho, meticulosamente escavado no mais profundo do ser.
Cascais,
5 de Novembro de 2017
José d’Encarnação
Apenas ficam as lágrimas e uma gratidão antiga a um grande Mestre e Amigo.
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