segunda-feira, 20 de maio de 2024

Irás vencerás não morrerás

             A frase escolhida para título desta crónica tem uma história – real ou inventada – sobejamente conhecida.

           Atribuída a oráculo proferido pela pitonisa de Delfos, em resposta à consulta de um soldado (segundo uma versão) ou dos conselheiros de Alexandre-o-Grande (segundo outra), é amiúde citada para demonstrar o valor da vírgula.

           De facto, sem vírgulas a frase tem dois sentidos opostos, dependendo do sítio onde a vírgula se puser:
1)      Irás vencerás não, morrerás
2)      Irás vencerás, não morrerás
Dir-se-á que tudo isso é tão comezinho que não justifica nova crónica.
           Quiçá justifique, se atentarmos no desleixo generalizado que se verifica quanto ao uso da vírgula. Mesmo pessoas altamente instruídas caem, por exemplo, no erro de separar o sujeito do predicado por meio duma vírgula e não sabem quando é que depois do pronome relativo se deve – ou não – pôr vírgula.

           Por isso, merece pensar-se no uso da pontuação.

           Há regras. Importa aplicá-las na linguagem escrita, que se quer escorreita.

           Lembro-me que alguém desabafou: «Que chatice! Ele está sempre a pôr vírgulas!». Outro confidenciou-me: «Isso nos poemas a pontuação atrapalha tudo!». E um terceiro perguntava-me: «Leste o ‘Memorial do Convento’?».

           Respondo:
Aceito que o poeta não queira usar pontuação, como o pintor pode não dar título a um quadro. Ambos preferem dar liberdade: cada qual entenda como quiser. Acham que essa liberdade enriquece a obra. Aceito.

Uma coisa é, todavia, a linguagem escrita dum texto científico, normal, outra a linguagem literária. De facto, tanto Saramago como Lídia Jorge usam a pontuação para se aproximarem da linguagem oral. Nos seus livros, o ponto equivale a uma pausa na fala, mesmo que seja a meio da frase.

Em suma, não basta ter aprendido a escrever. Expressar-se por escrito exige prática, atenção e, sem dúvida, algum esforço. Não admira, por isso, que se esteja a recorrer cada vez mais aos emojis, que é como quem diz: «Interpreta à tua vontade! Mando-te um grande coração vermelho; interpreta ‘gosto’, ‘amo-te!’, ‘adoro-te!’, ‘gosto de ti!’ – como quiseres. Confesso, no entanto, que por palavras fica tudo muito mais explícito. E eu sempre prefiro um «adoro-te!» a um mero «gosto de ti!». O coração vermelho, ao ter tudo, acaba por nada ter. Fica-se na dúvida. E é chato!

 

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 330, 20-05-2024, p. 13.

 

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