terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Contadores de histórias...

            Lembro-me como se fosse hoje. A tarde estava serena, nem brisa corria. Ali, sentados na terra, com seus albornozes grosseiros, castanhos, pretos, escutavam o ancião. De pé, contava-lhes coisas de outrora: lendas, feitiços, lutas, conquistas… sei lá! Imagino contos das mil e uma noites. Solene, penetrando no céu bem azul, o minarete da Koutoubia lembrava, também ele, tempos idos… Marraquexe e os seus contadores de histórias, nesse longínquo 1967!…
Sentados em redor do contador de histórias, em Marraquexe (1967)
            E recordei-os logo, assim que dei comigo a ler a História de Portugal de Natael Rianço. Sim, porque é a história dele. Como ele a estudou, como lha ensinaram em tempos de heróis e de santos e do Poeta que canta, quando se não dizia que, afinal, santos e heróis e poetas também eram homens de carne e osso – como se não houvesse Povo, mulheres e homens e crianças numa labuta pelo pão de cada dia, como se tudo se passasse só nas cidades, no amarinhar por aquela muralha acima…
A capa de «A Minha
História de Portugal»
            Há mitos, porém, a que, hoje ou amanhã, temos de nos agarrar. Mesmo que saibamos que o são, que não podem aguentar muito peso. Mas são… raízes! Dizem-nos que, antes de nós, outros houve e, antes desses, outros ainda, numa sucessão de gentes que pisaram este solo, que lhe deram cor, que lhe rasgaram as entranhas num frutificar de gerações…
. . .
O Sol apareceu, enfim, nesse final de tarde inexplicavelmente suave e tépido. Muitos vultos negros se haviam espalhado por entre os mármores trabalhados das campas. Era um céu azul claro; as nuvens em farrapos aconchegavam-se no tom alaranjado dum sol-pôr que se adivinhava para breve. Bem suave era a brisa, mal se sentia, a querer aninhar-se nos densos, esguios e altos ciprestes. Um silêncio…
            Por sobre os mármores iam-se depositando as coroas, as palmas, os ramos, os «corações»… Feitas as preces rituais, o ataúde desceu, lento, à cova. Numa emoção grande, dificilmente contida. Cobriu-o uma colcha de flores, depois a terra-mãe; por cima, o enorme comoroiço de mais flores. O Sol vai pôr-se. Já tocou a sineta a lembrar-nos que temos de abalar. E a aragem tornou-se fria, agora.
Perfumem as flores o Poeta, o Homem, o Lutador – que esperou pelo primeiro dia do milénio para, enfim, ir repousar!
            Antes, porém, muito antes, pelos serões, quis ser contador de histórias, da nossa História. E aqui estão. Sem o saber, reatava uma tradição antiga, dos Mouros e das Mouras Encantadas e de gloriosos feitos de antanho. Junto à lareira, ele; os outros, em plena praça pública, despertando sonhos, deixando-os voar…

NOTA: Permita-se-me que assim partilhe o prefácio que fiz para a obra póstuma, em versos, A Minha História de Portugal, do alentejano Natael Rianço, falecido a 1 de Janeiro do ano 2000. Publicou-a a Associação Cultural de Cascais, com o apoio da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana, em 2001 (ISBN: 972-9406-22-7). 

 

 


  

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