Lembro-me
como se fosse hoje. A tarde estava serena, nem brisa corria. Ali, sentados na terra,
com seus albornozes grosseiros, castanhos, pretos, escutavam o ancião. De pé, contava-lhes
coisas de outrora: lendas, feitiços, lutas, conquistas… sei lá! Imagino contos
das mil e uma noites. Solene, penetrando no céu bem azul, o minarete da
Koutoubia lembrava, também ele, tempos idos… Marraquexe e os seus contadores de
histórias, nesse longínquo 1967!…
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Sentados em redor do contador de histórias, em Marraquexe (1967) |
E recordei-os logo, assim que dei comigo a ler a História
de Portugal de Natael Rianço. Sim, porque é a história dele. Como ele a
estudou, como lha ensinaram em tempos de heróis e de santos e do Poeta que
canta, quando se não dizia que, afinal, santos e heróis e poetas também eram homens
de carne e osso – como se não houvesse Povo, mulheres e homens e crianças numa
labuta pelo pão de cada dia, como se tudo se passasse só nas cidades, no
amarinhar por aquela muralha acima…
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A capa de «A Minha
História de Portugal» |
Há mitos, porém, a que, hoje ou amanhã, temos de nos
agarrar. Mesmo que saibamos que o são, que não podem aguentar muito peso. Mas são…
raízes! Dizem-nos que, antes de nós, outros houve e, antes desses, outros
ainda, numa sucessão de gentes que pisaram este solo, que lhe deram cor, que
lhe rasgaram as entranhas num frutificar de gerações…
. . .
O Sol apareceu, enfim, nesse
final de tarde inexplicavelmente suave e tépido. Muitos vultos negros se haviam
espalhado por entre os mármores trabalhados das campas. Era um céu azul claro;
as nuvens em farrapos aconchegavam-se no tom alaranjado dum sol-pôr que se adivinhava
para breve. Bem suave era a brisa, mal se sentia, a querer aninhar-se nos
densos, esguios e altos ciprestes. Um silêncio…
Por sobre
os mármores iam-se depositando as coroas, as palmas, os ramos, os «corações»… Feitas
as preces rituais, o ataúde desceu, lento, à cova. Numa emoção grande, dificilmente contida. Cobriu-o uma
colcha de flores, depois a terra-mãe; por cima, o enorme comoroiço de mais
flores. O Sol vai pôr-se. Já tocou a sineta a lembrar-nos que temos de abalar.
E a aragem tornou-se fria, agora.
Perfumem
as flores o Poeta, o Homem, o Lutador – que esperou pelo primeiro dia do milénio
para, enfim, ir repousar!
Antes, porém, muito antes, pelos serões, quis ser contador de histórias, da
nossa História. E aqui estão. Sem o saber, reatava uma tradição antiga, dos Mouros e das Mouras Encantadas e de
gloriosos feitos de antanho. Junto à lareira, ele; os outros, em plena praça pública,
despertando sonhos, deixando-os voar…
NOTA: Permita-se-me que assim partilhe o prefácio que fiz para a obra póstuma, em versos, A Minha História de Portugal, do alentejano Natael Rianço, falecido a 1 de Janeiro do ano 2000. Publicou-a a Associação Cultural de Cascais, com o apoio da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana, em 2001 (ISBN: 972-9406-22-7).
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