Ocorreu-me
essa imagem, no almoço doutro dia, quando, a meu lado, se sentou um veterano da
guerra no Ultramar. Foi todo o tempo a história das emboscadas, das baixas, do
helicóptero a voar baixo, das ostras que à socapa se iam saborear para
descontrair da tensão…
Precisam
os velhos de desabafar, de contarem o que foram e fizeram.
‒ Devias escrever isso em livro de memórias,
Eugénio! – perorei eu.
Que
não tinha paci ência.
Dizia-me
aquela vizinha a rondar os 60 anos, quando lhe sugeri a frequência do Centro de
Dia, onde até estavam várias das suas amigas:
‒ Eu?! Para ao pé daquelas velhas que só
sabem falar de doenças?!... Deus me livre!
Assim
João Roque, nas suas já citadas Digressões
Interiores (p. 95):
«Tempos
difíceis para envelhecer. Por tudo e por nada, os velhos perturbam-nos e
incomodam-nos. Nos cafés ou nos bancos de jardim quando, sem mais aquela, se
sentam à nossa beira, metem conversa e desatam a contar-nos a vida toda. Nos restaurantes
quando sôfregos comem a sopa e deixam cair o guardanapo e o talher. Nos
sanitários onde molham o chão e nós molhamos os sapatos. Nos serviços públicos
e nos supermercados onde empatam as filas ou nos tiram a vez».
Retratos,
enfim, que nos fazem pensar e nos ajudam a chupar até ao tutano o osso de cada
dia.
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento
(Mangualde) nº 656, 1-02-2015, p. 12.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarJose Martins Colaço:
ResponderEliminarO teu comentário recorda-me as viagens de comboio, que fiz entre a Regua e S. Bento, no inverno de 1968. Cumpria o serviço militar em Lamego, e, nas dispensas, vinha à Amadora, viajando no comboio-correio, que partia da Regua à meia-noite e chegava a S. Bento às seis da madrugada. Os bancos eram de madeira, em compartimentos de oito. Mas as viagens eram uma festa. As pessoas dirigiam-se ao Porto pelas mais diversas razões, e levavam consigo "mantimentos" nos cestos de verga e garrafões de vinho.para matar a sede. Quer um bocado de presunto ?... Amigo, prove este vinho... Vai para a Guiné?...Tenho aqui uma broa com bacalhau seco, coma ... Tenho um filho em Angola que está nos Comandos, se for para lá diga, que me faz o favor de levar-lhe uns chouriços... Coma um bocado desta regueifa...
Teresa Silva:
ResponderEliminarNão gostei, adorei! Amo as pessoas e tenho a dizer que dos meus já vividos 57 anos as melhores partes foram com toda a certeza "gastas" a ouvir histórias de "velhotes", em casa, nos comboios, nas breves viagens de autocarro; aliás é uma das razões pelas quais gosto de andar nos transportes públicos. Eu pela parte que me toca já estou a começar a cumprir o mesmo papel: passo a vida a contar aos meus filhos e netos histórias que já as minhas avós me contavam, rezas, ditos e outras sabedorias e bruxarias que são o substrato da vida vivência e cultura!
Filipe Desmet:
ResponderEliminarCaro José d'Encarnação, isso faz-me pensar o quanto me sinto rico quando consigo fazer com que o meu tempo escorra à mesma cadência dos 'mais velhos' (como se diz em África), e fico a ouvir, ouvir e ouvir o que eles têm para me dizer.
Agradeço ao Zé, à Teresa e ao Filipe os comentários atrás exarados. Certamente receberam também aquela história do filho que está a ler no jardim e o pai a perguntar-lhe «aquilo é um pardal, não é?». E o filho, chateado com as interrupções constantes. Quando o pai morre, ele descobre num caderno de memórias do pai que ele, em pequeno, era assim, sempre a perguntar e o pai não se importava nada de ser interrompido e respondia-lhe. Um velho é mais do que um livro, é... uma biblioteca!
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