sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Terra Fria Terra Quente – um romance de costumes

            Em nota que publiquei a 7 de Janeiro de 2014, referi-me a este livro Terra Fria Terra Quente, da autoria de Maria José Corrêa Pinto, que fora editado por Exoterra, em Novembro de 2013. Salientei, então, que ainda o não lera e que era minha intenção lê-lo. Ora o li – e dessa leitura aqui peço licença para exarar as minhas anotações.

Um romance de costumes
            O facto de apresentar bibliografia no final leva-nos a supor que não terá sido apenas uma experiência real e concreta – se é que a houve, o livro não o denuncia expressamente – que esteve no cerne da narrativa, mas também o estudo haurido em obras da especialidade. Não é, porém, uma obra histórica, obediente às regras de citação, por exemplo, que um texto com essas características postularia.
            Dois livros estão, porém, presentes do princípio ao fim, para identificarem os capítulos (só três vezes, decerto por lapso tipográfico, os capítulos não são individualizados): Os Lusíadas, de Camões, e Só, de António Nobre. De ambos se transcrevem passagens em sintonia com o tom geral que o capítulo vai ter. Capítulos curtos, que começam frequentemente com o nascer do dia ou uma referência de tipo climatérico.
            Ousaria classificar a narrativa não como um romance histórico mas como um romance de costumes, uma vez que trata da história de uma família da classe média flaviense em plena II Grande Guerra. É todo esse ambiente que ali é descrito, em pormenor: os costumes, os hábitos quotidianos (das famílias, dos pais, das crianças…), o viver social e económico, a tensão que paira mesmo numa cidade de província sob o espectro velado do salazarismo omnipresente, as dificuldades que o racionamento dos géneros alimentícios acarretavam…
            Há, de modo especial, o retrato urbano de Chaves nos anos 40, abundantemente ilustrado pela oportuna inclusão de postais ilustrados (editados pela célebre Tipografia e Papelaria Mesquita, de Chaves), com vistas dos aspectos mais significativos da cidade: as ruas do comércio, o Jardim Público, a ponte romana, as poldras, as igrejas, os largos…
Chaves - as termas na década de 40
            Há, porém, especificamente, o retrato social: histórias de adultérios e mulheres da vida, miséria, as brincadeiras dos miúdos (o romisco, o pucarinho, os verdelhos…), os ditos populares, as rezas, o leituário, as palavras típicas («zerbada», as «sebas»…). E a rádio e os jornais que vão pondo a população ao corrente não apenas da guerra que na Europa se desenrola nessa primeira metade dos anos 40, mas também das tentativas de sublevação e greves, a manifestarem o descontentamento do Povo para com a política salazarista, a secreta vigilância dos agentes da PIDE… Aparece um jornalista a hospedar-se na pensão que a mãe da protagonista tem, destinada, sobretudo, a albergar quem vem às termas; a ideia é fazer a reportagem das inundações que afectaram a cidade (e lá está um postal a mostrá-las); contudo, ao serão, não se inibe de dar conta, a meia voz, do que sabe acerca do que se passa por esse País além, o trabalho de sapa dos comunistas...

As tradições de cá e de lá
            O enredo começa com a ida para Moçambique, mais propriamente para Nacala, terra de Macuas, do marido de Leonor, Miguel Afonso, em busca de melhor vida; assim pagaria as dívidas e, se tudo corresse de feição, em breve a família estaria lá com ele.
            É, pois, nestes anos de separação que reside o cerne da narrativa, a possibilitar a descrição, tanto de um lado como do outro, do que eram as tradições locais. Se assistimos, em Chaves e arredores, à descrição de como se ensinavam, na escola, as primeiras letras, às superstições (o miúdo de três anos que não fala e se põe num saco para curar-se… p. 244), às tradições natalícias e aos cantares do Dia de Reis, aos festejos do Entrudo, a um «Cortejo de Oferendas», à matança do porco, à romaria de S. Caetano ou da Senhora do Amparo, às comemorações do São Martinho… também do lado do marido, nomeadamente através da correspondência, ficamos a saber como se fazia a iniciação dos rapazes, como eram as caçadas (p. 193-194), o casamento macua, o cerimonial que envolvia o nascimento de uma criança, a figura do missionário que evoca a história da região, os feitiços a que se lançava mão para se obter a misericórdia divina, e até saboreamos, aqui e além, o linguajar indígena (p. 264-267, por exemplo)…
            Aliás, se, como atrás se disse, os capítulos têm epígrafe poética a abri-los, explicita-se no índice (p. 6 e 7) o seu conteúdo, de forma que o livro, depois de ‘devorada’ a história, pode servir de documentário acerca dessas cerimónias tradicionais. De resto, aproveita-se, inclusive, o facto de um mocinho negro ter sido deportado para S. Tomé, por brincar com uma menina branca, para também se fazer da vida nessa ilha circunstanciada descrição.
            E se são anotados os problemas económicos da protagonista (também!) e os socioeconómicos (a frequente morte de crianças à nascença, nessa época, por via das gastroenterites, os parcos rendimentos de uma agricultura dependente das contingências climatéricas…), procura fazer-se igualmente uma análise psicológica: que pensa uma mulher com filhos nos braços para sustentar, quando o marido está longe mais de cinco anos, a viver num meio para ela totalmente desconhecido, sabendo como são os homens e as mulheres? E, claro, como é a matreirice da vizinhança, sempre pronta a agudizar suspeições…
            Não poderia a autora deixar de mostrar, aqui e além, a sua veia poética. Maria Leonor faz sonetos, que surgem de vez em quando nas suas cartas; a «odisseia do povo macua» (p. 281-284) tem forma de poema quase heróico.

Quatro dados a salientar
            Para além do mais, quatro dados gostaria de salientar, pela sua oportunidade como memória de uma época:
            Era caseiro o fabrico do pão (p. 242). Cada família fazia a sua fornada, ainda não havia padarias e foi, aliás, para trabalharem na panificação que muitos portugueses emigraram para a Venezuela e para o Brasil.
            O lugar de destaque que tinha, no Norte, a Praia da Granja, como pólo de atracção do veraneio (p. 240), ainda hoje bem patente nas casas típicas dessa época, em arte nova, a mostrar o requinte da burguesia que as procurava ou mandara construir.
            Hoje, que há cursos de Jornalismo e de Comunicação Social, pode ter-se a impressão de que sempre assim foi. Impõe-se, por consequência, como inteligente reflexão o facto de se dizer do atrás referido jornalista: «Ele tinha tido a sorte de fazer alguns estudos no liceu e, como escrevia bem, arranjara emprego num jornal. Conseguia fazer face à vida, mas trabalhava muito» (p. 172).
            A referência às botijas como forma de se aquecerem os pés na cama (p. 246). Foi costume que perdurou até bem dentro da década de 50: as botijas eram as garrafas de grés da genebra, bem cilíndricas e estreitas, que vedavam bem e se mantinham quentes durante muito tempo. A genebra era uma aguardente muito em voga, feita nos Países Baixos a partir da destilação do zimbro (daí, a designação zinebra, que deu ‘genebra’).
 
A dúvida
            No final, confesso, ficou-me a dúvida – mormente agora que estão a surgir narrativas do tempo colonial, de antes, de durante e do após-conflitos – se algumas das páginas não são descrições do que a autora viveu.
            Escreve-se numa das badanas que se abordam aqui «aspectos do Portugal salazarista (Metrópole – colónia) que muito a intrigaram e impressionaram». Há, contudo, na pág. 192, a seguinte frase: «Assim que os deixámos de ver [os búfalos], um grupo de elegantes e delicadas gazelas debruaram as margens do lago». A narração é sempre feita na terceira pessoa e, aqui, inopinadamente, surge a primeira pessoa do plural, como se a autora estivesse a copiar um relato e se houvesse distraído na transcrição
            Claro, eu poderia perguntar-lhe, inclusive se as fotos das capas correspondem à família de que se conta a história. Aparentemente, sim: na da capa, há o pai, a mãe, as três filhas e o filho, mais pequenino; na quarta capa, um homem (é o mesmo da capa) mostra uma cria de leopardo, qual troféu de caça. Uma verificação se impõe: o facto de ter assinado com o nome de solteira denuncia a vontade, como já assinalei, de um retorno à infância, cujas memórias aqui mui minuciosamente se deixam exaradas. Se são de familiares seus ou de pessoas muito próximas ou se tudo não passa de mera ficção – cada um que pense como lhe parecer melhor.
            Certo é que Terra Fria Terra Quente constitui, sem pretensões literárias nem de estilo (nota-se, aqui e além, alguma dificuldade no uso da pontuação), o retrato de uma geração. No final, embarcados no paquete Angola, que zarpa da doca de Alcântara, Maria Leonor e os filhos demandam Moçambique. Fica-se a saber dos seus primeiros tempos lá e da adaptação (difícil) que lhes foi exigida. Imaginamos o resto: o sacrifício, aliado ao espírito compreensivo de ambos para com a população indígena, terá valido a pena – numa felicidade, enfim, bem merecida.
                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 13-02-2015:

1 comentário:

  1. Teve a autora a gentileza de assim comentar o que escrevi, esclarecendo e completando eficazmente o sentido da mensagem que desejou transmitir. Muito lhe agradeço.
    «Vi que leu o meu livro e apreciei a explicação pormenorizada que dele fez.
    Mas porquê tanto trabalho para apontar os aspectos de pobreza e, sobretudo, de atraso do nosso povo nos anos quarenta em relação com epígrafes de versos de António Nobre, poeta de finais do séc. XIX? E as epígrafes de versos de Camões, séc. XVI, com vida dos negros no século XX? A escolha dos aspectos que pus em paralelo tinha um objectivo. Não referiu isso. Porquê escrever sobre a vidinha das pessoas de mais baixo nível social e suas desgraças e contar a vida dos negros em África no mesmo período? O valor do livro reside nessa mensagem, que espero o leitor conclua.

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