Um romance de costumes
O
facto de apresentar bibliografia no final leva-nos a supor que não terá sido
apenas uma experiência real e concreta – se é que a houve, o livro não o denuncia
expressamente – que esteve no cerne da narrativa, mas também o estudo haurido
em obras da especialidade. Não é, porém, uma obra histórica, obediente às
regras de citação , por exemplo, que
um texto com essas características postularia.
Dois
livros estão, porém, presentes do princípio ao fim, para identificarem os
capítulos (só três vezes, decerto por lapso tipográfico, os capítulos não são individualizados):
Os Lusíadas, de Camões, e Só, de António Nobre. De ambos se
transcrevem passagens em sintonia com o tom geral que o capítulo vai ter.
Capítulos curtos, que começam frequentemente com o nascer do dia ou uma
referência de tipo climatérico.
Ousaria
classificar a narrativa não como um romance histórico mas como um romance de
costumes, uma vez que trata da história de uma família da classe média flaviense
em plena II Grande Guerra. É todo esse ambiente que ali é descrito, em
pormenor: os costumes, os hábitos quotidianos (das famílias, dos pais, das crianças…),
o viver social e económico, a tensão que paira mesmo numa cidade de província sob
o espectro velado do salazarismo omnipresente, as dificuldades que o
racionamento dos géneros alimentícios acarretavam…
Há,
de modo especial, o retrato urbano de Chaves nos anos 40, abundantemente ilustrado
pela oportuna inclusão de postais ilustrados (editados pela célebre Tipografia
e Papelaria Mesquita, de Chaves), com vistas dos aspectos mais significativos
da cidade: as ruas do comércio, o Jardim Público, a ponte romana, as poldras,
as igrejas, os largos…
Chaves - as termas na década de 40 |
Há,
porém, especificamente, o retrato social: histórias de adultérios e mulheres da
vida, miséria, as brincadeiras dos miúdos (o romisco, o pucarinho, os
verdelhos…), os ditos populares, as rezas, o leituário, as palavras típicas
(«zerbada», as «sebas»…). E a rádio e os jornais que vão pondo a população ao corrente não apenas da guerra que na Europa
se desenrola nessa primeira metade dos anos 40, mas também das tentativas de sublevação e greves, a manifestarem o descontentamento do
Povo para com a política salazarista, a secreta vigilância dos agentes da PIDE…
Aparece um jornalista a hospedar-se na pensão que a mãe da protagonista tem, destinada,
sobretudo, a albergar quem vem às termas; a ideia é fazer a reportagem das
inundações que afectaram a cidade (e lá está um postal a mostrá-las); contudo,
ao serão, não se inibe de dar conta, a meia voz, do que sabe acerca do que se passa por esse País além, o trabalho
de sapa dos comunistas...
As tradições de cá e de lá
O
enredo começa com a ida para Moçambique, mais propriamente para Nacala, terra
de Macuas, do marido de Leonor, Miguel Afonso, em busca de melhor vida; assim
pagaria as dívidas e, se tudo corresse de feição ,
em breve a família estaria lá com ele.
É,
pois, nestes anos de separação que
reside o cerne da narrativa, a possibilitar a descrição ,
tanto de um lado como do outro, do que eram as tradições locais. Se assistimos,
em Chaves e arredores, à descrição
de como se ensinavam, na escola, as primeiras letras, às superstições (o miúdo
de três anos que não fala e se põe num saco para curar-se… ‒ p. 244), às tradições natalícias e aos
cantares do Dia de Reis, aos festejos do Entrudo, a um «Cortejo de Oferendas», à
matança do porco, à romaria de S. Caetano ou da Senhora do Amparo, às
comemorações do São Martinho… também do lado do marido, nomeadamente através da
correspondência, ficamos a saber como se fazia a iniciação
dos rapazes, como eram as caçadas (p. 193-194), o casamento macua, o cerimonial
que envolvia o nascimento de uma criança, a figura do missionário que evoca a
história da região, os feitiços a que se lançava mão para se obter a misericórdia
divina, e até saboreamos, aqui e além, o linguajar indígena (p. 264-267, por
exemplo)…
Aliás,
se, como atrás se disse, os capítulos têm epígrafe poética a abri-los,
explicita-se no índice (p. 6 e 7) o seu conteúdo, de forma que o livro, depois
de ‘devorada’ a história, pode servir de documentário acerca
dessas cerimónias tradicionais. De resto, aproveita-se, inclusive, o facto de
um mocinho negro ter sido deportado para S. Tomé, por brincar com uma menina branca,
para também se fazer da vida nessa ilha circunstanciada descrição .
E
se são anotados os problemas económicos da protagonista (também!) e os socioeconómicos
(a frequente morte de crianças à nascença, nessa época, por via das
gastroenterites, os parcos rendimentos de uma agricultura dependente das
contingências climatéricas…), procura fazer-se igualmente uma análise
psicológica: que pensa uma mulher com filhos nos braços para sustentar, quando
o marido está longe mais de cinco anos, a viver num meio para ela totalmente
desconhecido, sabendo como são os homens e as mulheres? E, claro, como é a
matreirice da vizinhança, sempre pronta a agudizar suspeições…
Não
poderia a autora deixar de mostrar, aqui e além, a sua veia poética. Maria
Leonor faz sonetos, que surgem de vez em quando nas suas cartas; a «odisseia do
povo macua» (p. 281-284) tem forma de poema quase heróico.
Quatro dados a salientar
Para além do mais,
quatro dados gostaria de salientar, pela sua oportunidade como memória de uma
época:
1º
‒ Era caseiro o fabrico do pão (p.
242). Cada família fazia a sua fornada, ainda não havia padarias e foi, aliás,
para trabalharem na panificação que
muitos portugueses emigraram para a Venezuela e para o Brasil.
2º
‒ O lugar de destaque que tinha, no
Norte, a Praia da Granja, como pólo de atracção
do veraneio (p. 240), ainda hoje bem patente nas casas típicas dessa época, em
arte nova, a mostrar o requinte da burguesia que as procurava ou mandara
construir.
3º
‒ Hoje, que há cursos de Jornalismo e
de Comunicação Social, pode ter-se a
impressão de que sempre assim foi. Impõe-se, por consequência, como inteligente
reflexão o facto de se dizer do atrás referido jornalista: «Ele tinha tido a
sorte de fazer alguns estudos no liceu e, como escrevia bem, arranjara emprego
num jornal. Conseguia fazer face à vida, mas trabalhava muito» (p. 172).
4º
‒ A referência às botijas como forma
de se aquecerem os pés na cama (p. 246). Foi costume que perdurou até bem
dentro da década de 50: as botijas eram as garrafas de grés da genebra, bem
cilíndricas e estreitas, que vedavam bem e se mantinham quentes durante muito
tempo. A genebra era uma aguardente muito em voga, feita nos Países Baixos a
partir da destilação do zimbro (daí,
a designação zinebra, que deu ‘genebra’).
A dúvida
No
final, confesso, ficou-me a dúvida – mormente agora que estão a surgir narrativas
do tempo colonial, de antes, de durante e do após-conflitos – se algumas das páginas
não são descrições do que a autora viveu.
Escreve-se
numa das badanas que se abordam aqui «aspectos do Portugal salazarista (Metrópole
– colónia) que muito a intrigaram e impressionaram». Há, contudo, na pág. 192, a seguinte frase:
«Assim que os deixámos de ver [os
búfalos], um grupo de elegantes e delicadas gazelas debruaram as margens do
lago». A narração é sempre feita na
terceira pessoa e, aqui, inopinadamente, surge a primeira pessoa do plural,
como se a autora estivesse a copiar um relato e se houvesse distraído na
transcrição …
Claro,
eu poderia perguntar-lhe, inclusive se as fotos das capas correspondem à
família de que se conta a história. Aparentemente, sim: na da capa, há o pai, a
mãe, as três filhas e o filho, mais pequenino; na quarta capa, um homem (é o
mesmo da capa) mostra uma cria de leopardo, qual troféu de caça. Uma verificação se impõe: o facto de ter assinado com o nome de
solteira denuncia a vontade, como já assinalei, de um retorno à infância, cujas
memórias aqui mui minuciosamente se deixam exaradas. Se são de familiares seus
ou de pessoas muito próximas ou se tudo não passa de mera ficção – cada um que pense como lhe parecer melhor.
Certo
é que Terra Fria Terra Quente constitui,
sem pretensões literárias nem de estilo (nota-se, aqui e além, alguma
dificuldade no uso da pontuação ), o
retrato de uma geração . No final, embarcados
no paquete Angola, que zarpa da doca
de Alcântara, Maria Leonor e os filhos demandam Moçambique. Fica-se a saber dos
seus primeiros tempos lá e da adaptação
(difícil) que lhes foi exigida. Imaginamos o resto: o sacrifício, aliado ao espírito
compreensivo de ambos para com a população
indígena, terá valido a pena – numa felicidade, enfim, bem merecida.
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, edição de 13-02-2015:
Teve a autora a gentileza de assim comentar o que escrevi, esclarecendo e completando eficazmente o sentido da mensagem que desejou transmitir. Muito lhe agradeço.
ResponderEliminar«Vi que leu o meu livro e apreciei a explicação pormenorizada que dele fez.
Mas porquê tanto trabalho para apontar os aspectos de pobreza e, sobretudo, de atraso do nosso povo nos anos quarenta em relação com epígrafes de versos de António Nobre, poeta de finais do séc. XIX? E as epígrafes de versos de Camões, séc. XVI, com vida dos negros no século XX? A escolha dos aspectos que pus em paralelo tinha um objectivo. Não referiu isso. Porquê escrever sobre a vidinha das pessoas de mais baixo nível social e suas desgraças e contar a vida dos negros em África no mesmo período? O valor do livro reside nessa mensagem, que espero o leitor conclua.