Sucede,
porém, veio alguém dizer depois, que não fora exactamente isso que a senhora
afirmara; preconizara, sim, maior atenção para o ensino técnico-profissional. É
uma ‘luta’ que travamos quase desde pouco depois do 25 de Abril, quando se optou
por fechar as escolas comerciais e industriais e uniformizar tudo. Medida que
gerou oposição por parte de quem já nisto andava há algum tempo, mas que corria
então sério risco de ser apelidado de ‘reaccionário’ e… metemos a viola no
saco!
Parece
que ora se torce a orelha, não deita sangue e arremedaram-se uns cursos à
pressão, em jeito de forma de suavizar as estatísticas do desemprego. Não é,
porém, a mesma coisa e continuamos a ter falta de mecânicos, electricistas,
sapateiros, alfaiates, torneiros…
E
contava-me o meu amigo David, que é professor catedrático, a propósito desse
dilema, relacionando-o com o ‘ganhar a vida’ e ser recompensado. Foi, a convite
da comissão organizadora, fazer uma conferência, integrada numa jornada em
honra de vulto importante da história nacional. Preparou cuidadosamente o seu PowerPoint
e o texto, durante alguns dias; comprou o bilhete de comboio (a cidade fica a
uns 150 km
da residência); foram buscá-lo e levá-lo à estação. Ficou lá o dia, para ouvir
os outros intervenientes na jornada. Antes do almoço, a senhora que presidia
informou: «Pedimos desculpa, mas por imposições de orçamento nem sequer lhes
podemos pagar a refeição». Passaram já uns quinze dias e ainda não foi
reembolsado do magro custo da viagem. Repito: é catedrático, continua a queimar
as pestanas para se manter actualizado, gastou horas e horas a preparar a
conferência, por acaso até nem precisa já dela para o currículo e, claro,
ninguém o obrigou a aceitar o convite…
Vem
de seguida o resto da história. Dias antes, o esquentador deixou de funcionar e
ele não percebia porquê. Chamou o canalizador, que se deslocou de uns 5 km . Chegou e sentenciou
(contou-me ele): «Isto é a pilha. Pode ir comprar uma como esta e fica bom. São
30 euros pela deslocação!».
Não
será infinitamente melhor tirar um curso profissional?
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 651, 01-12-2014, p. 12.
Enviada por José Soares em terça-feira, 2 de Dezembro de 2014 19:03:
ResponderEliminarMeu caro Professor.
Claro que agora, depois de extintos os cursos técnico profissionais (eu tenho um: Montador Radiotécnico), é melhor (ganha-se mais) ser canalizador do que catedrático. A Coisa é simples. Trata-se da velhissima lei da procura e oferta. A oferta de canalizadores rarificou-se, descendo abaixo da procura, enquanto a oferta de catedráticos aumentou muito excedendo a procura dos ditos. Conclusão: sobe o preço dos serviços de canalização e baixa o preço dos serviços de catedráticos. Uma hora de canalizador, de mecânico de automóveis, vale 30-35 euros, enquanto as " explicações" de um catedrático não passam de 20-25 euros. Sic transit gloria mundi!
Grande abraço,
José Soares
Eu que tanto queria ser cozinheira; mas aí já é necessário ser Chef! Portanto, mais vale , mesmo, é ser canalizador porque eu paguei 40 euros!
ResponderEliminarRicardo Gomes Caro Professor, bom dia. Folgo em sabê-lo bem. Posso partilhar este seu texto, que lhe faz juz de tão acutilante?
ResponderEliminarRicardo Gomes Caro Professor, a lei da oferta e da procura! Quanto menos, mais valiosos!
José d'Encarnação
Claro que podes partilhar! Confesso, porém, que não sabia haver assim tantos catedráticos, porque o comentário do Dr. José Soares também refere essa questão da oferta e da procura! Serão, quiçá, mais do que os canalizadores; no entanto, canalizador é canalizador; catedrático é de Arqueologia, de Medicina, de Psicologia Clínica...
Caro Prof. José d’Encarnação,
ResponderEliminarNão foi ousadia, foi um excelente momento de reflexão sobre uma realidade que nos cerca, este mundo virado do avesso. Ao mesmo tempo deu para sorrir pela ironia da coisa.
Obrigada!
Bem haja!
Natália Fauvrelle
Ricardo Gomes comentou:
ResponderEliminar"Sabe, Professor, em termos conjunturais, há muitos anos que as profissões ditas "braçais" ou práticas vêm tendo enorme valorização no mercado. Enquanto que os académicos, cada vez menos. Eu dou uma cadeira no IP Leiria, já há alguns anos, relacionada com a minha formação académica e essa pessoa com responsabilidades de administração desta casa resolveu afirmar que os canalizadores, electricistas, etc. resolvem os problemas que os engenheiros, doutores, gestores (onde me insiro), economistas criam. E resolvem-nos de forma prática. Se existem mais académicos que canalizadores, não faço ideia, mas a ideia que passa é que esses são bem mais valiosos. Vivemos num país debaixo de uma mentalidade muito pouco inclusiva. Eu sou gestor internacional de uma fábrica, onde o sector produtivo é composto pelos engenheiros que concebem e calculam o que os operários executam, numa quase perfeita e harmoniosa causalidade. Parece-me é que, neste país, os nexos de causalidade entre as pessoas é imensamente subvertido."
Um dos meus colegas comentou (e agradeço-lhe):
ResponderEliminarMuito obrigado pela partilha do texto. É actual e tem toda a razão. Também fui dos que surdamente se insurgiram contra a abolição do ensino técnico. Fui mestra numa escola técnica. É verdade que, em muitos aspectos, aquele ensino estava desactualizado e obsoleto, mas carecia de reforma pensada e concretizada. Passamos a ser um país sem estruturas médias: de um lado, os quase analfabetos; do outro, uns …portadores de “canudos”, que se enxofram quando não são tratados por senhores doutores.
A propósito do que aconteceu ao seu colega, vou relatar-lhe uma que me sucedeu a mim. Em Janeiro, fui abordado por um senhor de T… que se apresentou como sendo filho e sobrinho de dois longínquos colegas meus de colégio. Como se comemoravam os 500 anos do foral manuelino da terra, e como T… pertencia ao mosteiro de F…, pedia-me que, em Maio, fizesse, em Lisboa, a apresentação de algo relacionado com aquela casa monástica. Ele sabia que eu tinha publicado alguns trabalhos relacionados com esses frades. Desloquei-me a T… propositadamente para tomar contacto com o património da terra (aí fui de minha livre vontade) e no Arquivo da Universidade de Coimbra vasculhei coisas relacionadas com T… Pareceu-me que falar, naquele contexto, apenas de F… era coisa de pouca monta e descontextualizada. Marquei, em Lisboa, duas noites no hotel onde costumo ficar (só uma, ou ir e vir no mesmo dia, não me permitia fazer a apresentação), fui e vim de comboio, tomei alguns táxis, comi sempre à minha custa e, depois de apresentar um PowerPoint, que me deu imenso trabalho a elaborar, regressei a Coimbra. Nem me perguntaram quanto gastara nem me pagaram nada. Fazerem face ao que gastei com a estada e com as deslocações era o mínimo. Eu ainda nunca consegui perceber as razões que assistem ao justo pagamento do trabalho do canalizador e parecem querer determinar a oferta do trabalho intelectual.
Pepita Tristão, do Cyberjornal:
ResponderEliminarÉ um problema que vem de cima. Acabam com o Ministério da Cultura, cortam subsídios... Os agentes culturais começam a ser uns coitados, a quem se faz o favor de deixar falar... Fica bem promover eventos culturais... desde que não acarretem custos... porque não?
Numa sociedade presidida pelo primado da hipocrisia, todos os valores são subvertidos. E talvez nem seja necessário ir tão longe nas comparações entre catedrático e canalizador... Talvez seja bastante comparar entre um canalizador formado na sua profissão e um canalizador da «escola do desenrasca». Assim como assim, o problema premente é o entupimento e alguém para promover o desentupimento urgente... E o chico-esperto, ao contrário do experto, tende a meter-se-nos pelos olhos dentro, atropelando tudo e todos.
ResponderEliminarCerto é que vivemos num país - ainda há, na Europa, países com outras lógicas - onde o trabalho competente e eficaz não é valorizado. E isto vale para o catedrático como para qualquer profissional com formação (e, principalmente, para este).
Afinal, convenhamos: obter uma formação profissionalizante para quê, se na arte do desenrasca se ganha o mesmo ou mais, sem queimar pestanas ou pagar propinas? E os «bons» exemplos aí estão, vindos de «cima», ao que vamos assistindo.
Depois, é só ver as taxas de emigração... E aí, sim, apavoro-me ao imaginar o que será do estado social daqui a meia-dúzia de anos. Porque isto está mesmo tudo ligado.
Jorge, 100% de acordo. A verdade é que as pessoas (não os canalizadores) funcionam cada vez mais assim.
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