Pretensão não, claro! Jamais
teria competência para escrever ensaio digno deste nome e, muito menos, sobre
tema tão arrojado. Senti, porém, a necessidade de me sentar nesta falésia sobre
o mar da Arrifana a reflectir, na serenidade do sol-pôr, acerca da frequência
com que se usam expressões como «Isto está uma porcaria!». Porcaria práqui,
porcaria práli. Como quem diz: «Nada se aproveita!».
Impunha-se-me
defender o animal.
Primeiro,
porque, apesar do chiqueiro em que eles se moviam e de mui bom grado
chafurdavam, sempre gostei de ver os porcos que meu avô paterno e minha avó materna
foi tendo. Depois, porque, embora não quisessem que eu visse, o ritual da
matança do porco era… um ritual! Em 3º lugar, desde cedo compreendi que, do
porquito longamente alimentado com restos de comida e lavadura, tudo se acabava
por bem aproveitar. Finalmente, muitas histórias de criança metiam simpáticos
porquinhos pelo meio.
Não há,
pois, direito que se dê à palavra «porcaria» a conotação hedionda com que
diariamente a pronunciamos.
Não há direito!
E até me recordo, com ternura, das
vezes em que meu pai me pedia:
– Pega aí numa mortalha e tira-me
a porqueira que me foi prá vista!
Ele dizia «porqueira»! Uma lasquinha
mínima de pedra que lhe saltara, quando abria os caboucos nos bancos da pedreira.
Porqueira!
Assusta-me a conotação negativa. Sobretudo,
a entoação pérfida facilmente atribuída àquilo que qual porcaria se classifica.
Não me parece bem.
Denuncia, da parte de quem a pronuncia,
sistemático olhar de desagrado, mal cheiroso, perante a realidade e as circunstâncias
da vida. Bem contrário, aliás, ao constantemente apregoado mas não entendido
«Crise também é oportunidade!». Ou a uma frase que, em jovem, desde logo
retive, ao ver pela primeira vez o filme «Os Dez Mandamentos» de Cecil B. Demille:
«Também na lama do Nilo vicejam as flores de
lótus!».
Sim,
acredito, crónica sobre a porcaria é, sem dúvida, uma porcaria. Mas… também
pode não ser!
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 820, 15-04-2022, p. 12.
Gostei. Ensaio limpo sobre tema difícil de abordar.
ResponderEliminarVanda Amaro
ResponderEliminar20 de abril de 2022 19:29
Gostei muito deste ensaio, porque tenho respeito pelos animais que nos alimentam e acho a expressão do teu pai ( porqueira) mais adequada. No entanto e para mim, actualmente, vejo o mundo com grande pessimismo ,uma parte de bichos humanos imundos e nojentos a explorar e massacrar outros bichos humanos ingénuos e inocentes! Estou farta de pandemia, guerra, ganância, mentira, desinformação, oportunismo...
Esperemos que haja uma Páscoa mesmo verdadeira!
Meu amigo, gostei da sua crónica sobre a porcaria sobretudo porque cada vez há mais dela na universal porqueira... e pensar que até o coração do pobre porco serve para substituir o humano... olhe, sugestão: comecemos a dizer "isto está uma humanaria"! Faz mais sentido. Um abraço julieta
ResponderEliminarTeresa Meira 21 de abril de 2022 11:41
ResponderEliminarVerdade, verdadinha! Palavra que está a ser usada para tudo. Faz-me confusão ouvir crianças à mesa, quando não conhecem um prato, dizerem de imediato «Não gosto. É porcaria!» sem sequer provarem. E ninguém os repreende…
ResponderEliminarKarl Heinz Delille
21 de abril de 2022 19:50
Prezado Colega e Amigo
Gostei das suas ambulações em volta de «porco» e «porcaria»; em alemão encontramos o mesmo (como em outras línguas do nosso círculo cultural também). Diz-se jocosamente: “Das Schwein [o porco] hat seinen Namen zurecht [merece o nome que tem], denn es ist auch eins [pois é isso mesmo (ou seja: porco)]. E, ao mesmo tempo, sabe-se (o que a maioria talvez não pense) que o porco (segundo uma reportagem televisiva centrada numa investigadora norte-americana especializada na matéria) é o animal com o mais alto quociente de inteligência. Acontece o mesmo (oriundo sobretudo, linguisticamente, da “sabedoria popular”) com outros animais, com plantas (alemão “Unkraut” [plantas daninhas], por vezes, visto de perto, de grande beleza), com povos («Judeu») e o., tratando-se de um tesouro lexical idiomático que, acriticamente enraizado e transmitido nas escolas, facilmente criará preconceitos. (A língua tem esses perigos; bem o sabem os ditadores…).
Ex corde
Karl Heinz Delille
Alberto Correia
ResponderEliminar21 de abril de 2022 22:01
Li e gostei. Cheirando a flor de Lótus, referenciadas...
Nunca podia ser uma porcaria esta crónica, depois da perfeita estruturação do texto. Fez-me pensar quão mal, às vezes, empregamos as palavras. É bem verdade que os simpáticos (e dizem os homens de Ciência que mais inteligentes que os cães) suínos gostam de chafurdar na lama, mas se até é moderno e favorável à saúde da pele das pessoas! De agora em diante, e por respeito aos porquinhos das histórias da infância, jamais direi "esta porcaria". E guardarei ainda maior respeito pelo sofrimento, ou deploráveis condições de "vida", a que sujeitam os animais para abate. Muito grata pelo texto.
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