domingo, 20 de fevereiro de 2022

Torto como um garrocho!

             A ligação entre o concreto e o psicológico: torto, o garrocho, porque assim precisa de ser para a função, que tem, de apertar a cilha duma cavalgadura; torto, o indivíduo teimoso, de antes quebrar que torcer! O garrocho já está torcido e, na verdade, também não apreciamos gente ‘torcida’. Uma forma bem expressiva de se entenderem significados, quando o contexto o propicia. Sim, porque quem há aí, em 2022, que saiba o que é um garrocho? No Algarve, sim; mas… em Lisboa?
            Há, de facto, expressões quotidianas que remontam a esse passado agrícola em que a maior parte da população se ocupava: de pequenino se torce o pepino, tremer como varas verdes, malhar em centeio verde…
               Era bom procurar o retorno a esse modo de falar nosso, para se evitar a uniformização.
         Fala-se em biodiversidade; porque não falar da diversidade linguísticas? Pugna-se pela conservação das espécies; porque não pugnar para que os nossos idiotismos se divulguem e se usem?
              Idiotismo!? Palavra curiosa, essa, que não tem que ver com idiota. Ou talvez tenha. O que é um idiota? Na brincadeira dizemos: «É o que tem ideias!». E, nesse contexto, aplica-se quando alguém se sai com uma sugestão oportuna. A conotação negativa é, todavia, «estúpido», sem raciocínio capaz. Sucede, porém, que, etimologicamente, o significado é o positivo: através do latim, a palavra veio do substantivo grego «idiótes», que quer dizer ‘particular’, ‘pessoa particular’.
            Apontei três idiotismos colhido no (longínquo?) quotidiano rural. Não queremos que os nossos meninos – e, muito menos, os o políticos! – sejam tortos como um garrocho. Detestamos que, assaz amiúde, se ande a malhar em centeio verde. E não gostaríamos que ninguém, em circunstância alguma, tremesse como varas verdes:
            Outros – muitos! – idiotismos temos nós. Venham eles!
            (Pedi a Emanuel Sancho que me emprestasse a fotografia dum garrocho do Museu do Traje. Ela aí vai, com o meu bem-haja!)

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 303, 20-02-2022, p. 13.

5 comentários:

  1. Que belo texto! Se eu já tinha visto um garrocho, não lhe devo ter dado a menor atenção, porque nunca o associei ao ditado. Associava "arrocho" (também pedaço de pau encurvado) e fazia-me sentido. Era assim que ouvia pronunciar às pessoas simples. Sempre em constante aprendizagem!...Gente torcida, acho que é precisa para responder à letra em certas ocasiões, porque "quem não se sente, não é filho de boa gente". Parece que esta também deve remeter ao espaço rural. Já o idiotismo, a que se atribui a conotação negativa a maior parte das vezes, fez-me lembrar quando uma espectadora escreveu a Vitorino Nemésio, que via no programa Se bem Me Lembro, dizendo que ele parecia uma cavalgadura. E não é que ele fez uma dissertação brilhante acerca dos atributos desses animais, acabando por lhe agradecer o "elogio"? Lá está: a palavra é polissémica. Muito grata por mais este pedaço de bela prosa com sumo.

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  2. Vários amigos me escreveram a informar que, na zona deles, as Beiras, por exemplo, se diz 'arrocho'. É verdade. Garrocho é próprio da terminologia algarvia: esse g inicial dá-lha mais força!

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  3. De: victor barros
    Enviada: 17 de fevereiro de 2022 10:14

    A propósito do garrocho:
    E tantas, tantas vezes que eu ouvi essa palavra...
    Ainda me parece estar a ouvir o meu avô a dizer que ia aparelhar o macho! Esse ritual diário de outrora. A sobrecarga ou cilha, o cabresto, a albarda ou os alforges. As cangalhas para os cântaros de água. Numa cantaria da cabana, uma escova para passar no pêlo do animal, limpando-o e alisando-o...
    O meu avô: alça, alça!
    E o animal a levantar uma das patas para o meu avô conferir o estado das ferraduras.
    Tudo pronto... e o dia pela frente. Era o arado, a charrua, o encharrueco. O menino Vítor à frente saltitando. Outras vezes, desafiado pelo avô, com o sacho fazia covas para ver se o Castanho ao chegar lá caía... Nunca caiu, que me alembre...
    O avô, o tal Zé João que, um dia, foi levar o tal porco para ele aprender a comer!
    Abraço

    Comentário (meu): essa história do porco vai ser contada no nº 4 de «SBA Revista de Cultura», a sair em Maio.

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  4. O meu amigo Nascimento Afonso decidiu enviar em mirandês a sua mensagem de boas festas pascais a todos os seus antigos condiscípulos. Terminou com um «Abraço arrochado», que não hesitei de comentar:
    «O arrocho, como sabes, palavra doutros tempos, designava o pau que servia para apertar bem a cilha da albarda. Tem, pois, arrochado todo o seu prístino significado de... apertado!».
    Ao que me respondeu:
    «Bés cumo tu spliqueste bien l que quier dezir "arrochado"? Yê isso mesmo! "Abraço arrochado" yê cumo dezir "chi-coraçon" bien apertado.
    Assi se diç i se scribe an buono mirandés.
    Outro abraço arrochado, JdE.».
    Por sua vez, Vidal Minga veio também à baila:
    «Quantas vezes nas minhas aldeias Carção, Matela e Santulhão, eu vi apertar a cilha da albarda com o dito arrotcho. Albarda bem arrotchada não se deslocava pelo dorso do animal, para trás nem para a frente, nem para o lado. Enfim, cenas de infância que só a memória traz de volta».

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  5. A quantidade de vezes que a minha mãe me disse que era torta que nem um garrocho!!
    E eu sem saber o que era um garrocho! 😅

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