O
recente falecimento de Lauro António trouxe-me à baila recordações cinematográficas
de infância. Como foi o contacto dos cascalenses no final dos anos 40 e anos 50
adiante com essa arte tão nobre? Fui, então, ao baú das recordações, na certeza
de que outros também aqui poderão despejar as suas, para as completar.
O Dragon Ball
Permita-se-me, todavia, que, antes de entrar no
assunto, conte uma cena passada a 16 de Novembro de 2007, no decurso das Jornadas
de História, em Seia, a propósito de Lauro António.
Conversávamos com
ele e o filho Frederico Corado e alguém disse, a determinado momento, para o rapazinho
que estava ao lado:
– Olha! Este é
Dragon Ball!
O miúdo mirou
o Frederico de alto a baixo, com ar incrédulo:
– Não é nada!
– É! – retorquiu
o pai. – Queres ver?
E o Frederico
fez a voz do Dragon Ball, como estava habituado a fazer nessa altura. O miúdo
aninhou-se todo, junto ao pai, num contentamento:
– É mesmo!
Tinha estado
ao pé do Dragon Ball! Certamente terá contado a façanha a todos os amiguinhos.
Esta,
portanto, a minha dupla homenagem: ao génio de Lauro António e, na pessoa de
seu filho, a todos os actores que, incógnitos, emprestam a sua voz diariamente
a personagens dos desenhos animados, para delícia de milhares de crianças!
Foi na batemilha
No centro de Birre, nos finais dos anos 40, havia uma
batemilha ao lado da taberna da Srª Conceição (Maria da Conceição Viana, casada
com Francisco Domingos). O local predilecto para a pequenada jogar à bola de trapos
sem se enlamear. Aí paravam as camionetas para descarregar o abastecimento à
taberna (ai, aquele cheirinho forte aos barris do carrascão de Torres!...) e
foi aí que eu vi cinema pela primeira vez.
O
homenzinho trazia um petromax para o pessoal se ajeitar; a parede da casa serviu
de ecrã, o petromax apagou-se e começou o barulho do desbobinar da fita. Que filme
foi não sei, mas desconfio de qualquer coisa do Bucha e Estica. Creio que esse
animatógrafo ambulante terá vindo outras vezes e decerto o pessoal acabava por
lhe dar umas moeditas, porque, mesmo muda, a fita fazia soltar boas gargalhadas.
Na vila
Na vila, o meu primeiro encontro com o cinema foi no Parque
Atlântico, aí pelos primeiros anos da década de 50. Ficava do lado direito de
quem sobe a Av. Valbom, antes do que são hoje as Galerias Girassol (inauguradas
a 3 de Junho de 1970, um empreendimento de Joaquim Baraona). Não, não fui ver;
ou melhor, não entrei para a esplanada ao ar livre. O filme era projectado num ecrã
(ou seria numa parede?) para poente e, com os meus pais, eu fiquei no passeio
contrário. Já não podiam comigo ao colo para eu ver melhor, mas creio que eles
ainda conseguiam lobrigar alguma coisa. Ouvir ouvia-se. Recordo bem o filme que
estava a passar quando fomos por ali: «Aldeia da Roupa Branca». E minha mãe
muitas vezes cantarolava essa canção da Beatriz Costa. «Água fria… da ribeira!...».
Veio
depois o Cine-Teatro S. José, no centro da vila, ali mesmo ao lado do Jardim Visconde
da Luz. Iniciativa de José Afonso Vilar Júnior, um empreendedor vidente, que comprou
o terreno à Câmara.
O cine-teatro S. José |
Em
ampla reportagem, com abertura na 1ª página e conclusão na última, o jornal «A
Nossa Terra» não regateou aplausos a José Afonso Vilar, que lograra materializar
um «empreendimento há tanto tempo desejado e quando outros se viram forçados a dele
desistir».
Foram arquitectos
Joaquim Ferreira e Gonzaga Bronze, esclarece José Leite no seu blogue «Restos
de Colecção»; os cálculos de estabilidade estiveram a cargo do engenheiro N.
Abrantes e J. Custódio encarregou-se do
estudo das fundações, aspecto nada fácil por o edifício estar no leito de cheia
da Ribeira das Vinhas.
Solene, com presença
de Américo Tomás, a inauguração no dia de S. José (19 de Março) de 1959. «Um
acontecimento notável», uma inauguração «com pleno êxito», escreve o «A Nossa
Terra», que continua:
«É uma demonstração
de poder criador, da grande civilização da nossa importante região, e assinala
uma época de extraordinário progresso no concelho de Cascais. A nova casa de espectáculos,
fruto de uma iniciativa oficial, executada por um particular, não pode deixar
de ser considerada como um património moiral de nós todos, filhos e habitantes
desta terra. Assim o compreendeu o público que teve a dita de assistir à
memorável sessão inaugural.»
Programa. Fevº 1970 |
Seguiu-se-lhe
«O Processo de Jesus», uma das peças mais na berra nessa altura, lembro-me bem.
Igualmente a cargo da Companhia de Amélia Rey Colaço – Robles Monteiro.
Sim, primeiro
foi teatro e só depois cinema. Capacidade para 998 espectadores distribuídos
pela plateia e dois balcões. Viria a encerrar a 26 de Janeiro de 1978.
O
edifício acabaria por se transformar completamente, na década de 80, segundo
traça do Arquitecto Gil Graça; e a foto – que retiro, com a devida vénia, do
blogue «Cinemas do Paraíso» – mostra como era o edifício antigo.
O Oxford
Em
1975, se não erro (prometo que vou investigar mais…), abriu o Cine Académico,
onde é hoje um dos centros de acolhimento da Igreja Universal do Reino de Deus,
a meio da subida da Av. 25 de Abril. Transformou-se, mais tarde, no Cinema
Oxford.
Na página
«Comunidade Cascais Nostalgia», além de se mostrarem dois bilhetes para um
espectáculo a 5 de Outubro de 1990, vem o comentário de Ana Teixeira Dias sobre
as cadeiras brancas: «Sentávamo-nos e fazia pufffff!». Era verdade: esse ‘abaixamento’
das cadeiras de napa branca fez sensação!
Tive ocasião
de ir à inauguração do Oxford. Passou o filme «Eram os Deuses Astronautas?», realizado
por Harold Reinl, baseado no livro – que muita atenção despertara – de Eric Von
Däniken (1968). Tivera o filme estreia mundial a 26 de Abril de 1970. A ideia,
colhida mormente a partir de imagens do antigo Egipto e, sobretudo, de Tiauanaco,
nos Andes, apontava para ter havido uma incursão de extraterrestres, pois só de
considerável altitude se entendiam, por exemplo, desenhos inscritos na paisagem
e, por outro lado, ¿como se teriam conseguido edificar as pirâmides?.
Fechou
o Oxford nos anos 90.
Os salesianos
Sempre foi preocupação dos Salesianos dar sadias ocupações
aos jovens. Por isso, não há escola salesiana que não tenha um teatro, a fim de
se incentivarem os estudantes a prepararem festas com peças de teatro,
cantares, declamações… Tinha, por isso, a Escola Técnica e Liceal Salesiana de
Santo António do Estoril um amplo teatro, que, ao domingo à tarde, passava
cinema.
Não
era gratuito, que eu me lembre, mas quase, porque tínhamos caderneta e, se no
quadradinho desse dia estivesse marcado que o menino fora à missa, a entrada
era bem facilitada! Eu ia de Birre a pé até lá para ver sobretudo filmes de
cowboys, que era o que estava na moda. Depois do filme, comprava meia dúzia de suspiros,
que havia sempre uma senhora com eles ao pé da estação...
As
sessões de cinema prosseguiram durante muito tempo, pois recordo que ainda na
década de 60 vi lá alguns filmes, o «Quo Vadis?», por exemplo, a 31 de Dezembro
de 1960.
Em suma:
Não
temos, que eu saiba, uma história das salas de cinema de Cascais como existe o
livro, dos já consagrados Manuel Eugénio Fernandes Silva e José Ricardo Fialho,
«Teatros de Cascais» (edição da Junta de Freguesia de Cascais e Estoril, 2017),
que dedicam ao S. José as páginas 304-305, mais de imagens que de texto (quatro
breves parágrafos, sobre teatro).
Haverá
por aí quem tenha recordações, quiçá até bilhetes e programas. Valerá a pena
guardá-los ou fazê-los chegar ao Arquivo de Cascais, onde serão devidamente tratados
e oportunamente disponibilizados para quantos desejem saber algo mais sobre este
aspecto da história cultural da nossa terra. Este ‘ensaio’ – meras lambuzadelas
num quadro a completar – consubstancia, pois, esse desafio!
José d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas,
9 de Fevereiro de 2022:
Este regresso ao passado pelas memórias de cinema, soube-me a pouco. Muito grata. De facto as primeiras cenas que alguns de nós avistaram na grande tela (uma parede, em muitos casos) provocaram emoções fortes a pedirem repetição. E ela cumpriu-se. No meu caso, e apesar de haver cinemas em Coimbra, foi a exibição do filme Chaimite de Jorge Brum do Canto, era ainda muito criança. Apesar de outros nomes sonantes do teatro e do cinema de então, foi um grande plano de Lurdes Norberto e Emílio Correia que me ficou na lembrança, como icónico. Hoje o filme, sobre as campanhas de África, seria naturalmente censurado. Quanto a esta matéria sobre os cinemas de Cascai, é bem aliciante para investigação.
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