Amanheceu há
umas duas horas. Ao fundo, as ondinhas insistem, uma após outra, a irem lamber
a areia, ao pé da íngreme falésia xistosa. Só muito de longe chega aqui o seu
marulhar, apenas dois pardais em desafio estridente cortam a aragem fraca.
Jaz no parque
uma dezena de rulotes, de portas abertas umas, preguiçosas inda outras, na
certeza de que delas sairão daí a pouco os ocupantes surfistas – que o mar
d’Arrifana os aguarda lá em baixo. A autarquia aljezurense tarda em dar prioridade
a construir ali sanitários públicos, só disponibilizou os da praia e o pessoal organiza-se
como pode. Servem para isso as abundantes moitas de que, no seu topo, a falésia
se reveste.
Sempre
apreciei deveras o mato. Não, nunca quis ser bicho-do-mato nem tenho especial
vocação para isso, agrada-me conviver. O mato, para mim, era o lugar onde surpreendia
cobras, lagartos, lagartixas; onde apanhava erva-de-São-Roberto e bagas de zimbro
(cheguei a vender ao quilo); onde podia apreciar o sabor acre dos murtinhos
silvestres; onde apanhava amoras e abrunhos (medronhos só em alguns deles);
onde armávamos aos pássaros nos silvados e troviscos…
Volto a admirar
este mato, aqui, a proteger as infinitas camadas oblíquas que o xisto grauváquico
da arriba deixa ver. Manto verde matizado de mil colorações, que até contrasta
com o verde berrante da vedação virgem daquela vivenda ao pé. Lá ao longe, sobranceiro,
sentinela, alto marco geodésico branco cintado de negro. Mas, até lá, a perder
de vista, esta infinita sucessão de verdes, verdadeiro paraíso da passarada
livre. Aqui e além, ainda se mostra tímida flor branca de giesta, réstia de Primavera
a findar…
Esse e todos
os matos me encantam, lições duma biodiversidade real, que não carecem de
livros para nos explicar a sua imprescindível importância e real necessidade.
Que o mato, hoje, acaba por ser apetecível é por outros motivos:
– Já viste
quantos lotes eu poderia construir ali? E com esta vista de mar! E este sossego!
E este contacto com a Natureza!...
– Desculpa – atalhei
– tu falaste em lotes a construir e em contacto com a Natureza?!...
Até o casalito de pardais que o ouviu deu uma gargalhada das deles!
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 845, 01-06-2023, p. 10.
Gostei muito de ler o texto. Por esses matos deve ter andado o meu avô algarvio...
ResponderEliminarCada vez existe menos terra virgem, de vegetação natural, que sirva de abrigo e alimento aos animais e plantas selvagens, tão importantes para preservação dos ecossistemas.
Os que querem moradias de bom e mau gosto em cima do mar, só pensam nos seus privilégios...nem sequer na degradação do ambiente, nem nas gerações futuras.
Que vivam em bunkers, ou pequenos retalhos desertificados, onde os pássaros não cantam.