Texto José d’Encarnação, arqueólogo
Ilustração Zé Luís Madeira
Não há fumo sem fogo e se eles, aí
pelos finais do século II, se organizaram em sodalício, é porque alguma
intenção teriam! E qual seria? Secreta ou à vista de todos? Essa é a questão
que se levanta depois de lermos uma das inscrições romanas mais enigmáticas da
Beja romana. Enigmática porque lhe falta uma das letras mais significativas e
porque o tempo se encarregou de delir a superfície epigrafada, impedindo-nos,
pois, de ter certezas.
Essa inscrição foi gravada numa
placa que está no Museu Regional Rainha D. Leonor, com o n.° de inventário
B-36, incrustada numa das paredes do claustro. De mármore cinzento de
Trigaches, mede 29 cm de altura, 38 de largura e oito de espessura. A sua
existência só foi revelada, quanto se sabe, por Abel Viana, quando procedeu à
elaboração do catálogo da Secção Lapidar do Museu, publicado logo nos números I
e II do seu “O Arquivo de Beja”.
Dada a importância do espólio aí
estudado, mandou fazer separata com o título “Museu Regional de Beja – Secção
Lapidar”, vinda a lume em 1946. É na página 11 desse livrinho que vem
reproduzido o que o sábio antes escrevera, tendo dado à inscrição o n.º 8. O
espólio lapidar do museu foi crescendo, haveria, por outro lado, algumas
correções a fazer ao que fora dado a conhecer e, por isso, Abel Viana voltou ao
tema no n.º IV da revista.
Tem uma razão este esmiuçamento de
publicações. É que, de 1944 a 1947, vão três anos e Abel Viana não terá
reparado que nada dissera acerca das circunstâncias do achado dessa inscrição.
Quiçá também se não tenha apercebido logo do seu elevado alcance histórico. A
placa dera entrada no museu, integrada naturalmente no abundante número de
achados que, na altura, se faziam no perímetro urbano da cidade e nada mais
haveria a acrescentar. Por conseguinte, uma primeira conclusão se poderá
retirar desta ausência informativa: a placa foi recolhida na cidade, porque
estamos certos de que, vinda doutro local, Abel Viana não deixaria de o
referir.
UMA INSCRIÇÃO… MISTERIOSA!
Mas, afinal, que é que essa epígrafe
tem de especial?
Para já, um motivo de arrelia: “tem
quebrados os ângulos superior esquerdo e inferior direito”, como Abel Viana
anotou. E, embora apresente a leitura que logrou fazer e comente algumas das
suas especificidades, comenta: “As três últimas linhas têm falta de muitas
letras, devido aos tratos sofridos pela lápide”. E por aqui se fica.
Acontece, porém, que há nesse texto
em latim – no que se consegue apurar bem – algumas expressões fora do comum:
‘Deo invicto, sodalicium Bracarorum, sua impensa fecerunt e magister’.
‘Deo invicto’ significa que a
inscrição foi dedicada a um “deus invencível”. A sua identificação mais precisa
estaria no tal pedaço de lápide que desapareceu. No tempo dos romanos,
“invencíveis” costumavam designar-se dois deuses, que – aqui para nós – são
praticamente equivalentes nas suas funções e características, de tal modo que,
por vezes, aparecem identificados: o Sol e Mitra! Divindades muito veneradas
sobretudo na parte oriental do Império e cujo culto se revestia de um certo
secretismo. Nem todos poderiam participar nas cerimónias, só depois de terem
sido aceites pela comunidade dos crentes... Ambos com sua luz resplandecente
iluminariam os seus fiéis em todas as circunstâncias da vida!
Portanto, de acordo com os
especialistas, a rotura teria levado o M de Mitra ou o S de Sol. ‘Sodalicium
Bracarorum’, por seu turno, tem ainda mais que se lhe diga! O sodalício era o
que poderíamos designar de “corporação”, por comparação com a tonalidade
económica que o termo detém em português e com a função que também tinha na
época romana; se preferíssemos “confraria”, a tónica seria acentuadamente religiosa
e também não andaríamos longe da verdade, porque amiúde os ‘sodales’ (assim se
designavam os seus membros) se constituíam em grupo em torno da devoção
específica a determinada divindade. Aqui, seria um “deus invicto”!
A palavra ‘Bracarorum’ significa
“dos Brácaros”, ou seja, dos naturais da cidade de Bracara Augusta, a atual
Braga. Hoje, preferiríamos chamar-lhes bracarenses. E não deixará de ser
curioso verificar, a esse propósito, que se conhece desde pelo menos o século
XVIII uma inscrição dessa cidade, achada “junto ao monte de Penas” (a colina de
Maximinos, fertilíssima em achados romanos),em que se fala de um “sodalício dos
urbanos”, isto é, dos que habitavam a cidade, o que prova que o termo era aí
usado comummente.
Sua ‘impensa fecerunt’ quer dizer
“fizeram a expensas suas”. O facto de a expressão vir por extenso é sintoma de
que faziam gala em que tal constasse sem dúvidas. Por outro lado, isso indicava
que era um grupo de posses. ‘Magister’ significa, neste caso, “presidente”. O
sodalício estava, pois, organizado como devia ser e consta no texto que foi o
presidente, um tal Méssio Artemidoro que, para que tudo constasse, diligenciou
no sentido de ser gravada a inscrição.
E QUE FARIAM AQUI OS DE BRAGA?
A pergunta tem toda a razão de ser,
porque não é sem mais nem menos que, numa cidade estranha, com a categoria de
capital administrativa de todo o Sul da Lusitânia romana, um grupo de
forasteiros se organiza. E lembramo-nos, os de hoje, das Casas do Benfica ou do
Sporting, ou, em Lisboa, das Casas do Alentejo ou do Algarve, com a sua
organização e os seus objetivos claramente de defesa, estas últimas, dos
interesses regionais. Será que em Pax Iulia havia interesses bracarenses a
defender? E que motivo teria levado os naturais de Braga a instalarem-se na
Beja romana?
Importa, antes de responder à
pergunta, explicar que, entre as hipóteses de interpretação do facto concreto
que poderia ter levado à gravação da inscrição, se aventa a de se tratar da
inauguração da sua sede, um ‘studium’, equivalente à nossa palavra “estúdio”,
como local de reunião e de reflexão. E nesse estúdio se teria colocado uma
‘crátera’, vaso que se usava nas libações em honra das divindades, como, hoje,
há o cálice e também, em cerimónias mais solenes, o turíbulo para o incenso.
Por conseguinte, função religiosa,
de culto, teria de haver; mas… seria a única? Não poderia funcionar tal
sodalício como lóbi? Creio bem que sim, sobretudo tendo em conta a estratégica
posição de Pax Iulia, capital político-administrativa, em relação aos campos
derredor e no estreito relacionamento com o Norte de África romano.
Dir-se-á: elucubrações! Talvez não.
Não temos no catálogo das inscrições romanas de Beja aquela em que Gaio Blóssio
Saturnino, cidadão a que os pacenses deram o estatuto de “residente” (‘incola’,
em latim), o equivalente ao nosso “cidadão honorário”, sendo ele Napolitanus
Afer, isto é, natural da Colonia Iulia Neapolis, cidade que ficava perto da
atual Nabeul, na Tunísia?
Não se falará da riqueza agrícola,
dos férteis campos – que já o seriam há dois mil anos. Acentuar-se-á, de modo
especial, o facto de a cidade ficar muito perto de Vipasca, o couto mineiro de
Aljustrel, explorado pelos romanos. Aliás, não será despropositado referir que
uma inscrição romana achada em Garvão, no concelho de Ourique, constitui o
epitáfio de Ladrono, cujos familiares não hesitaram em aí mencionar que ele era
‘Bracarus’! Daí se poderá induzir que essa comunidade fazia questão em se
manifestar para, naturalmente, melhor se evidenciar entre os demais.
Fica assim justificado o elevado
interesse histórico que singela placa, meio delida pelo tempo, detém para o
estudo das migrações de outrora. Já em 1970, o historiador Georges Fabre, ao
estudar o tecido urbano do Noroeste peninsular; sublinhava: “Recordemos também
que estes migrantes não se movimentam num meio hostil. Podem, desde logo,
estabelecer relações com compatriotas já instalados: existem verdadeiros
agrupamentos organizados, como em Pax Iulia, onde se faz menção dum ‘sodalicium
Bracarorum’, uma confraria, uma tertúlia que devia permitir às gentes
originárias de Bracara que fossem aconselhadas e defendessem, se fosse caso
disso, os seus interesses”.
Publicado em Diário do Alentejo [Beja],
04 de maio 2021.