sábado, 5 de junho de 2021

Las aceitunas de Doña María

             Curioso título de um livro que o nosso amigo Juan Manuel Abascal diligenciou para que fosse publicado. Não, não se trata de um tratado de olivicultura! É, ao invés, o livro de recordações das viagens que Peter Witte fez, durante muitos anos, a partir de 1965, na sua qualidade de fotógrafo do Instituto Arqueológico Alemão de Madrid. O subtítulo é, por isso, assaz significativo: «35 anos de viagens pela Arqueologia Ibérica»
            Nasceu na Alemanha em 1933 e, no livro, além de mui escassas linhas de currículo na p. 263,  nada mais se diz expressamente sobre o autor. No final (p. 265), escreve-se, em castelhano, língua em que todo o livro está redigido (tradução do alemão por Dolores Escarpa Sánchez e Sigrid Witte):
«Este livro, pelo qual desfilam, do princípio ao fim, as antiguidades de Hispânia, acabou de ser impresso no dia 15 de Outubro de 2020, aniversário do nascimento do poeta Virgílio».
          Editado por Pórtico Librerías, S. L., nem prólogo, nem prefácio… nada! Apenas a dedicatória a Sigrid, «compañera em mi caminhar por estas tierras», em gratidão pelo apoio e inspiração. Começa, sem mais, «sentados no ponto mais alto da Ponte do Gard, junto a Nîmes» e, no epílogo, «a fachada de Notre Dame brilhava numa tonalidade branca acinzentada sob o pálido sol primaveril»…
Essa opinião é, contudo, bem falsa, porque de imediato compreendemos, à medida que o nosso olhar se embrenha linhas afora, que tudo se vai explicando e que esse primeiro capítulo «En el sur», dos 31 que compõem o volume, explica tudo: porque é que, a determinado momento, aceitaram o desafio de vir fazer fotografias para Espanha, donde «resultaram 35 anos de trabalho no país que, a princípio, havíamos contemplado como mero plano B, mas cujo poder de fascínio acabou por ser maior em nós do que o desejo de novas mudanças».
Livro de viagens, sim; mas, só por esta minúscula amostra, viagens com olhar poético, sensível, que vê para além do que se vê…. Vamos, por isso, às azeitonas, que o título deveras nos seduz e precisamos, desde já, de saber o que isso é. Já voltaremos ao resto.
Dessa feita, a missão era fotografar o arco quadrifronte de Cáparra – magnífica foto, reproduzida, de resto, na página 172. Batem à porta de Doña María, que mui prazenteiramente os recebe, como recebera quem estudara o arco, o Prof. José María Blázquez, amigo da família. Antes, porém, de se meterem ao trabalho, quis Doña María que tomassem o segundo pequeno-almoço, que estava na hora dele. Na mesa: uma garrafa de vinho, presunto, uma tortilha, pão e um prato de azeitonas. E foram estas, pelo seu requintado tempero, que mereceram as maiores atenções. Assevera Peter Witte que «até os severos inspectores do Guia Michelin lhes teriam concedido uma estrela»! (p. 175). Não resistiu, pediu a receita e deixou-a pormenorizadamente consignada no volume. Perante isso, quase perderam interesse as considerações tecidas linhas antes acerca do azeite hispânico em tempos romanos e da delícia que é barrar com ele uma torrada!...
Os títulos dos capítulos são, de facto, mais de livro de viagens que de obra sobre Arqueologia (que o é, garanto!). E serão, porventura, as fotografias a preto e branco que levarão para este ou aquele lugar: um dólmen, as explorações nas minas romanas de Três Minas, o santuário de Panóias («as pedras de Calpurnius Rufinus»)… Ora leia-se: «A Mona Lisa Ibérica», «De monges, santos e águas romanas», «O senhor das 1000 tumbas», «Ao encalço do ouro romano», «As janelas ibéricas de Nero»… Que lhes parece?
Certamente, o mesmo que a mim. Ou muito semelhante. O halo poético com que pode rodear-se uma descoberta arqueológica, integrando-a na história em que ocorreu… Porque se há-de transmitir tudo numa seca linguagem técnica sempre? Esse capítulo das janelas ibéricas de Nero, por exemplo, trata de Segóbriga e do importante papel que deteve na sua economia a exploração do lapis specularis, o gesso cristalizado que servia para as janelas. Quase a terminar o capítulo, Peter Witte escreve assim:
«Foi insidioso o fim de Segóbriga. Começou por perder os clientes das suas  exportações do lapis specularis hispânico, o artigo-estrela da sua economia. O gesso cristalizado foi perdendo lugar face ao vidro, que era mais barato, e Segóbriga teve de regressar a uma economia baseada na agricultura» (p. 198).
Peter Witte tudo foi anotando, ao longo dos anos. Doutra forma, se não compreenderia a minuciosa descrição de ambientes (não me sai da cabeça a cena das azeitonas e do panito torrado com azeite por cima!...). Veja-se como começa o capítulo que trata de minas de ouro, as de Las Médulas e as de Três Minas (em Trás-os-Montes):
«Estavam sentados na mesa da tasca, como Philemon e Baucis. Das vigas caiadas do tecto de madeira pendia uma lâmpada só. Rudimentar quebra-luz de papel de jornal concentrava a luz sobre os dois velhotes, tão mergulhados no seu jogo de cartas que nem se haviam dado conta da nossa chegada. Só quando chamámos discretamente à porta é que levantaram a cabeça:
– Boas noites! Chegaram bem?
Pareciam realmente contentes ao verem que havíamos regressado das minas sãos e salvos» (p. 199).
E o último parágrafo é, a meu ver, de antologia:
«Sentado num cadeirão de vime “num lugar de La Mancha”, saboreio uma das azeitonas cuja receita Dona Maria me revelou, um dia; e penso nos 35 anos de fotografia arqueológica que me levaram pela Península Ibérica, nesta espécie de dentinho que nos permitiu conhecer um espaço tão rico e tão variado» (p. 261).
Depois de confessar que foram os encontros com as pessoas o que mais os enriqueceu, lembra-se da pergunta que Gérard Nicolini lhe fizera aos pés de Notre Dame (assim começara o livro) «Porque é que não vêm viver para França?» e conclui:
«Esta tarde, quando a algazarra das crianças nos chega da praça da aldeia, parece-me que estou bem sentado neste cadeirão de vime e por aqui vou ficar».
Maravilha!
Através da lente da sua objectiva, Peter Witte habituou-se a ver melhor também com os seus olhos. Os vestígios arqueológicos, sim; mas, de modo especial, tudo o que esses vestígios arqueológicos significavam para as gentes, outrora e no momento actual.
Um livro, que é um testemunho a ler e a reler!

                                                                 José d’Encarnação

1 comentário:

  1. Pois o subtítulo é que será a valer, como dizíamos nas brincadeiras de infância, tratando da Arqueologia Ibérica como o autor desejaria, mas que o título seja bem mais sugestivo, ninguém o pode negar, pelo menos nesta colorida descrição dos factos por José d´Encarnação. A cusquice popular muito se empolga por saber alguma coisa da dona das azeitonas que tanto interesse acrescenta ao livro. Afinal Peter Witt (e a sua musa) bastantes histórias deve ter ouvido nas deambulações por terras da Ibéria, talvez entre uns petiscos de belo pão caseiro com as apetitosas azeitonas. Ainda bem que o arqueólogo Juan Manuel Abascal o deu a conhecer e ao resultado das três décadas de vida de Witt em Espanha. Que afinal eram de trabalho sério e bem planeado. Começava por fotografar as ruínas romanas do arco de Cáparra, em Oliva de Plasencia. E se havia uma primeira oliva, surgiriam outras da Dona Maria, anfitriã, bem como os petiscos del desayuno por terras de Cáceres. O resto é ler este belíssimo texto que nos dá conta de um curioso livro de viagens com pormenores gastronómicos e muitas fotografias de sítios arqueológicos.

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