A
riqueza da língua portuguesa –
em comparação, então, com a pobreza, mais do que franciscana, do inglês – deve
ser posta em realce.
Nós temos palavras para
tudo e ‘saudade’ será, sem dúvida, a primeira palavra que nos ocorre, por
sempre se ter considerado única no mundo com essa conotação tão específica.
Saudade não é melancolia, não é tristeza, não é ausência – é isso tudo!...
Aparentemente, terá derivado do vocábulo latino salutatem, que os
dicionários não registam. Prender-se-á com salus, saúde; com salutare,
saudar… Ao particípio salutatus se poderá dar o significado de
«adorado». E saudade é esse amor, essa adoração por algo que está ausente e
cuja falta nos dói...
Quando estive na Roménia,
país de língua românica, como se sabe, falaram-me de «dor». Dor
é, para eles, o equivalente à nossa saudade. E, se atentarmos bem, saudade é
esse sentimento que nos aperta o coração, uma dor sui generis, mas… dor!
Roménia e Portugal por aí singram, então.
A riqueza do
nosso vocabulário radica no facto de nos situarmos em privilegiada zona de passagem. Há
etimologias latinas, gregas, visigóticas, árabes, do longínquo Oriente… E dos
árabes, por exemplo, recebemos mui fecundo manancial de vocábulos concretos:
nós dizemos azeitona, almanxar, alcoviteira!... Aliás, é nessa terminologia
concreta que radica a nossa grande originalidade e, por outro lado, a grande
dificuldade de falantes diferentes de nós lograrem captar o significado de
muitas frases.
Foi-me dado o privilégio
de ensinar português a Peter Koj, professor da Escola Alemã de Lisboa, hoje um
grande divulgador da língua portuguesa em Hamburgo, sua terra natal, para onde
se retirou aquando da aposentação. Hamburgo, a cidade mais portuguesa da
Alemanha. Um dia, deu-lhe na veneta coligir as palavras e locuções nossas com o
significado de «fugir», pôr-se na alheta, escapulir-se, dar às de vila-diogo…!
Chegou à centena e não ficámos certos de que o rol estivesse completo. O mesmo
em relação a embebedar-se, apanhar uma piela, estar alegre, ter um grãozinho na
asa… Um nunca-mais-acabar!...
ooo
Depois
daquele longo período em que o Latim era a língua universal; depois do século
XIX e primeira metade do século XX em que o Francês predominava, instalou-se
agora a tirania do inglês, de tal maneira que se determinou: ou escreves em
inglês ou arriscas-te a não ver valorizado nenhum dos teus escritos. E não é
valorizado porque os avaliadores não compreendem o português.
E agora pergunto eu: se não
escrever em português estou a contribuir para que a nossa língua mantenha o
estatuto que hoje detém de uma das mais faladas no mundo? Quem é que está mal?
Os que não querem aprender português ou eu que não desisti de escrever na minha
língua?
E o grave é que essa opção
assumiu foro oficial, a nível da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, que,
para ter ‘estatuto’, contrata avaliadores internacionais, os quais, na maioria
dos casos, da língua portuguesa conhecem apenas mui leves rudimentos. Claro,
por isso, é que ditatorialmente se decretou que é em inglês que se deve
escrever. Uma língua paupérrima a tentar adaptar-se a um idioma vetusto de
quase dois milénios, riquíssimo das mais variadas contribuições!...
Diria o nosso sempre oportuno Gil Vicente: e así se hacen las cosas! Em castelhano, pois – que, no seu tempo, era língua culta
e todos a entendiam muy bien!
José d’Encarnação
Publicado, a 28-08-2021, em:
http://laconimbriga.blogspot.com/2021/08/a-riqueza-da-lingua-portuguesa.html
Jorge de Oliveira
ResponderEliminarNão haverá um "link", uma ligação, para os "donos" da FCT?
Isabel Maria Luciano
ResponderEliminarExcelente. Vergamo-nos perante as exigências seja da FCT ou de outra qualquer entidade e desprezamos a nossa língua e a nossa cultura. E os falantes de português vão abastardando a língua-mãe, cada vez mais cheia de anglicismos e de variantes do português do Brasil, desconstruindo uma língua tão antiga e nobre como a nossa.
Paulo Renato
ResponderEliminar"inglês ... Uma língua paupérrima a tentar adaptar-se a um idioma vetusto de quase dois milénios, riquíssimo das mais variadas contribuições!..." Adorei, professor. Obrigado.
Julia Fernandes
ResponderEliminarUma delícia.
Helena Ventura Pereira
ResponderEliminarJustifica-se a oportunidade do texto que me deu tanto prazer ler. De facto é bem pertinente que os estrangeiros não entendam a nossa língua pela sua enorme riqueza, herdeira de tantas influências linguísticas.
De: Mário Jorge Almeida
ResponderEliminar31 de agosto de 2021 16:26
Como sempre, interessante e despertador de curiosidade que se traduz em conhecimento:
https://www.goodreads.com/book/show/44173131-portugu-s-meu-amor
31 de agosto de 2021 16:42
E quando se é curioso, sempre se encontra MAIS: https://notascomentarios.blogspot.com/2017/10/o-brilhante-exemplo-do-anedotario.html
De: António Rebelo
ResponderEliminar31 de agosto de 2021 16:36
Muito obrigado, meu caro.
Já tinha lido no facebook, onde logo registei o meu apreço.
Parabéns! Estamos escravos de gente submissa aos estrangeiros, infelizmente.
Enquanto a língua portuguesa continuar a ser desprezada, negligenciada no ensino básico e secundário, enquanto a (boa) literatura portuguesa for secundarizada nos programas educativos, não saberemos aprender a valorizar a sua riqueza.
De: António Campar
ResponderEliminar31 de agosto de 2021 17:49
Estou plenamente de acordo. Aliás, está para sair um pequeno texto meu num livro de homenagem a uma colega que acabou de se jubilar, sobre o uso por vários colegas nossos das ciências do termo tidal quando se referem à maré. Eu vejo nisso um comodismo e alguma presunção de tentarem usar uma terminologia "mais científica". São batalhas que se me afiguram perdidas.
RESPONDO:
Não pode ir-se para a guerra, com a ideia de que a derrota é certa! Já viste o que seria o nosso Fernando Santos com essa maneira de pensar? E o Mourinho? Vai-se à luta para vencer e… vencer-se-á!
Ora, fui ao dicionário de inglês ver o significado de «tidal». Se esses nossos colegas fossem tomar banho!... A ver se a tidal enchia...
De: Fernanda Frazão
ResponderEliminar31 de agosto de 2021 18:04
Como dizia, e escrevia, o nosso cardeal Saraiva: O português não é filho do latim.
Lamento mas, dos estudos que vou fazendo, onde fica a maioria dos nomes das nossas terras e rios? Tudo isto vem de mais atrás. Sei lá quando ou quem. Sou ignorante, felizmente.
Para mim, o latim instalou-se e entrou muito especificamente no nosso vocabulário nos séculos XV e XVI. Era necessário para criar os novos conceitos pós-descobertas.
Então antes disso viviam aqui umas pedras com perninhas, mas mudas?!
Desculpe o desabafo!
De: Luis Torgal
ResponderEliminar31 de agosto de 2021 19:34
Mais uma vez grato pelo texto que me envias. Deves bem conhecer a narrativa de Herculano "De Jersey a Granville", nas Lendas e Narrativas. É um texto delicioso e aí vês o que o nosso escritor pensava da língua inglesa.
Na verdade, é o que dizes: hoje sem o Inglês não se vai longe. E assim vai este mundo de mediocridade, onde se devia ter afirmado o tradutor, como emprego conceituado, pois cada escritor e cada comunicador tem direito a usar a sua língua, que pode e deve ser traduzido para outras. Agora fala-se e escreve-se em Inglês e está tudo dito. Deves calcular o que são os textos que por aí correm escritos na língua de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra! Nem quero imaginar.
Só mais uma nota do domínio do inimaginável. Queres acreditar que já estive num colóquio na nossa cidade de Coimbra em que havia uma tradução simultânea de Francês para Inglês e vice-versa e em que não se podia falar em Português?! Fui eu o único que furei a "regra" e foi uma confusão dos diabos.
De: José Cardim-Ribeiro
ResponderEliminarEnviada: 31 de agosto de 2021 23:02
É evidente que a Língua Portuguesa – que, aliás, é actualmente uma das mais faladas no mundo – possui uma incontornável importância não apenas literária, mas também científica. Só não vê quem não quer, ou quem no fundo – pese embora as suas eventuais habilitações académicas – fôr basicamente ignorante, ou ainda a quem não der jeito por alguma inconfessável "razão"...
Há que continuar a escrever e a publicar em Português, até que passe esta onda – todas acabam por passar, mais cedo ou mais tarde, disso tenho eu a absoluta certeza … –, mesmo que sob pena de ser olhado com desconfiança e algum desprezo pelos servos das modas, do “institucionalmente correcto” e das conveniências. E se certos editores seguidistas fecharem as portas, outros abri-las-ão.
Nos dias de hoje, com as avaliações académicas estandardizadas em termos de publicações, será preciso alguma coragem e, sobretudo, alguma abnegação. Mas dos fracos jamais falará a História…