Fazia uma pausa e olhava
derredor, a ver as reações dos estudantes. Explicava-lhes depois que não havia dúvidas:
o resto do mosaico, de teor geométrico, qual esteira, junto ao que restava da
parede indicava, sem sombra para dúvidas, que ali houvera um leito, ali haviam
repousado, há dois mil anos, seres como nós, após a labuta quotidiana.
O silêncio que pairava sobre a cidade
de Conimbriga, nessa tarde serena da visita de estudo em semana da
Queima, ajudava a imaginação a espraiar-se em mentes juvenis e sonhadoras... Um
dia, também terão um quarto, onde almejam dormir ternamente acompanhados…
"Aqui era o quarto".
Agora, mais de quatro décadas passadas sobre essas inesquecíveis visitas de
estudo, não é que a frase se veste de mui outras roupagens?
Muito ano a lutar pelo património
edificado, mormente o que é de características locais, "aqui era o
quarto" transporta-me sempre para aquela casinha antiga, sobre a suavidade
da colina, do lado norte da A6 antes de cortarmos para Montemor. Sinto-lhe o
choro, pelo abandono a que a votaram, sempre que por lá passo. Vi, há, dias, que
já caíra parte do telhado. Imagino que, algum dia, o proprietário ou um
descendente dele ali venha e aponte: "Sabes, aqui era o quarto!".
Mas, nesse percurso Alentejo fora
– e não só – muitas paredes decrépitas gostariam de ouvir a frase, sinal de que
alguém poderia estar de novo a interessar-se por elas. O véu da tristeza as
envolve.
"Aqui era o quarto"
estamos agora a ouvir quase diariamente. O míssil caiu em cheio e tudo ficou
irreconhecível. O senhor de idade, único que ousara ficar, a voz embargada, as lágrimas
há muito que secaram.
Sob aquela aba de prédio urbano,
a frase mudou de tempo: "Agora, amigo, o meu quarto é aqui!". No montinho
de jornais, o canito levantou a cabeça a mostrar olhar ternurento e sereno; bem
encostada à parede, a trouxa envolvida em manta velha. “É verdade, amigo, durmo
aqui há seis meses. O meu quarto, agora, é aqui”.
E assim fico, de olhos nos longes do território e da História. E a frase, com todos esses instantes parados no tempo, insiste em permanecer comigo, bem viva.
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 853, 15/10/2023, p. 10.
O que dirão, no futuro, os Historiadores sobre a destruição, hoje, de tantos "quartos"?
ResponderEliminarAgradeço, em primeiro lugar, ao Dr. José Luís Madeira, a bem sugestiva ilustração que elaborou expressamente para esta crónica; depois, ao meus amigos que desejaram expressar o seu parecer face ao que se escrevera. Fico, naturalmente, contente e não resisto a transcrever aqui, pela ordem a que os recebi, os comentários enviados:
ResponderEliminarDe: Alexandre Gonçalves
Enviada: 17 de outubro de 2023 21:50
Este seu texto fez-me lembrar que, há algum tempo, me pediram para interceder por uma família, de que me enviaram fotografias, a viver numa casa em que os ratos já faziam parte da família.
Na verdade já era uma família assinalada e só estava dependente de uma garantia do proprietário de que não alugava a “casa” a ninguém sem fazer obras, para lhe poderem atribuir uma casa num bairro social, porque, justificaram, corria-se o risco de, em pouco tempo, terem outra família para realojar.
Isto para dizer que muitas pessoas ainda não têm grandes razões para dizer este é o meu quarto, mesmo tendo um teto sob o qual possam dormir…
Mas toda a conversa que, quase diariamente, se ouve sobre habitação chega a saturar, porque todos sabem tudo sobre este problema, ficando tudo pela verborreia.
E esta saturação leva a que, pelo menos no meu caso, já reaja a algumas situações mesmo não estando diretamente ligadas a este tema, como uma publicidade em que uma fadista aparece a cantar e em que se ouve a frase, “este quarto tão pequeno”, e depois de várias vezes ouvir isso não resisti a dizer para o ecrã da televisão “arranja um maior”!
De: Vanda Amaro
Enviada: 17 de outubro de 2023 21:53
Agradeço mais um texto tão inspirado, que nos transmite de forma singela a realidade de um mundo humano tanto lembrado quanto esquecido!
Votos de saúde e paz!
De: Amy Madeira
Enviada: 17 de outubro de 2023 22:14
Interessante!
É bom saber.
Obrigada!
De: Alberto Correia
Enviada: 17 de outubro de 2023 22:50
Para uma silenciosa meditação!...
De: Nair Castro Soares
ResponderEliminarEnviada: 18 de outubro de 2023 00:48
Que lindo texto, meu querido Amigo! A erudição académica a dar lugar à sensibilidade e humanismo, em tempos tão difíceis de sobrevivência... tantas vezes!
De: Maria Lopes
Enviada: 18 de outubro de 2023 08:15
Que bom começar assim um dia . Num comboio cheio, onde cada um olha o seu telefone ou computador.
O quarto, era isso, pois era.
E , por favor, continue assim, em forma máxima.
De: Cecília Travanca
Enviada: 18 de outubro de 2023 10:00
Os muitos quartos da vida apontados de forma certeira. Obrigada Zé.
De: Helena Ventura Pereira
Enviada: 18 de outubro de 2023 10:20
Deste texto bem pequenino, guardo elementos para ficar grandemente comovida.
Um belíssimo e comovente texto que doravante nos fará concentrar as atenções em todas as casas em ruínas.
Talvez não as possamos visitar, como então em deslocações no âmbito dos cursos fazias com os alunos e podias indicar, como em Conímbriga, onde era o quarto, um dos lugares emblemáticos de um lar, mas podemos imaginar que dentro daquelas paredes que restam,
existiu o decurso de uma vida.
As casas deviam ser todas recuperadas, mantida a traça original exterior e lá dentro podiam viver outras famílias. Por um lado não ficaria essa tristeza pungente por ver a decadência no que se imagina já ter sido uma digna moradia. Depois o pensamento inevitável seria: aqui era e continua a ser o quarto, ou...aqui era o quarto e agora é uma salinha...Uma vida nova que talvez os antigos proprietários, se pudessem, aprovariam.
Em nome daqueles edifícios arrasados, de que nem pedra se vê, deviam recuperar-se os prédios em decadência.
Muito grata por esta beleza de texto.
De: maria helena coelho
Enviada: 18 de outubro de 2023 10:43
A memória de quartos inteiros, outrora vividos, é saudosa, mas doce.
A presença de quartos destruídos pela guerra dos homens é presente de dor insuportável.
Até quando esta destruição de vidas-quartos?!...
De: Jorge de Alarcão
Enviada: 18 de outubro de 2023 10:57
Gostei de ler a pequena sanfonina.
De: Jorge Castro
Enviada: 18 de outubro de 2023 16:26
Belo naco de prosa, tão intemporal... que é, por demais, actual.
De: António Campar
Enviada: 18 de outubro de 2023 19:49
Belo pensamento, infelizmente com atualidade e extensividade.
De: José Azevedo Silva
Enviada: 19 de outubro de 2023 10:27
"Aqui era o quarto", lugar de repouso, lugar de sonhos, lugar de amor.
Belo naco de prosa literária.
Parabéns.
De: Virgílio Martins
Enviada: 19 de outubro de 2023 12:24
Nestes tempos conturbados, é-me mais confortante pensar num passado de ternura do que viver um presente que me deixa perplexo.
De: José Belchior
ResponderEliminarEnviada: 18 de outubro de 2023 10:05
Muito gostei do “quarto através dos tempos”.
Obrigado.