terça-feira, 3 de junho de 2025

O rebuçado

        Longe de mim estava, bem longe, a ideia de que, ao começar a ler A Capital, de Eça de Queiroz, logo as primeiras páginas me induziriam a escrever esta crónica.
 
        
        Na Nota Introdutória à edição que tenho, ao caracterizar-se a situação desta obra póstuma no percurso literário de Eça de Queiroz, explica-se, sem o menor rebuço e com toda a clarividência:
        «Em A Capital, Eça retrata duramente a fauna dos salões onde Artur Corvelo, vindo de Oliveira de Azeméis, se perde e se arruína na tentativa vã de encontrar a fama como literato e a fortuna, que se julga poder fazer escrevendo».
        Antes, porém, de Vasco, o protagonista, demandar essa capital, ele frequentou as estouvadas literárias e outras da Coimbra dos estudantes e passou férias, a determinada altura, em casa das tias, em Oliveira de Azeméis, o ambiente naturalmente provinciano de então, que Eça não hesitou em descrever com as tintas mais carregadas.
        Engraçou com Vasco o farmacêutico local e, um dia, após filosófico diálogo sobre a família, “instituição responsável”, “num reconhecimento às Corvelos, por possuírem um sobrinho de tanta virtude doméstica, pesou um quarto de rebuçados, encartuchou-os e exclamou:
          – Para as senhoras suas tias, da minha parte. Compreendo o gosto que fazem em Vossa Excelência”.

 

        Surpreendeu-me, confesso, o cartucho de rebuçados. Não havia motivo para surpresa, disse de imediato de mim para comigo; era natural a oferta dum cartucho de rebuçados nesse final do século XIX.
         De facto, nesse caso o cartuchinho de rebuçados desempenhou bem e a preceito o seu papel; contudo, pensando melhor, acabei por verificar que, afinal, o rebuçado – ou arrabuçado, como, por vezes, se dizia – sempre estivera bem presente na minha vida. Ainda na semana passada, ao tirar dum púcaro a fatura do restaurante, para pagar o jantar, dei com dois rebuçadinhos no fundo. Saboreei-os com gosto, achei simpático o gesto da gerência e não me surgiu nenhuma reflexão a esse propósito.
        A frase do Eça não. Fez-me voltar aos tempos de criança: «Se fores ali à venda fazer-me este mandado, eu dou-te um rebuçado!»; «Toma uma coroa para comprares rebuçados»…
        Por vezes, nessa vontade de amealhar uns tostõezinhos, ou não se compravam os rebuçados e se punha a moedita no migalheiro, ou gastavam-se apenas dois tostões e guardava se o resto. Doutras vezes, não havia moedas para o troco, ou fingia-se que não havia, e lá iam os rebuçadinhos para o bolso. Poderiam até servir para colher as boas graças daquela de que – em miríficos sonhos de criança… – já antecipávamos noiva…
        Outra imagem me surgiu forte neste queiroziano cartucho de rebuçados: o Padre João de Moura Pires. Foi diretor da Escola Técnica e Liceal Salesiana do Estoril, quando, em meados da década de 50, eu lá fui aluno. O Padre Pires não perdia o recreio da hora de almoço, passeava-se pelo pátio, falava com este e aquele, conhecia pelo nome todos os alunos, aplaudia as boas raquetadas do ténis ou o bom bolar do vólei e, sorrateiramente, lá tirava um rebuçado do bolso da batina e distribuía por quem estava por perto. A imagem acabada do sistema preventivo de Dom Bosco, que preconizava a maior convivência entre docentes e estudantes, mormente nas horas de recreio. Era um mimo, esse rebuçadinho, que sabia mesmo bem e detinha um significado que ultrapassava de longe o docinho concreto a derretidamente deliciar paladares…
        Tiveram o desejado efeito os rebuçados do cartucho oferecido às Corvelos pelo boticário. Agradam-nos os rebuçados verdadeiros que de doçura vão salpicando os nossos dias. Entre os grandes do nosso tempo também oferendas de rebuçados se fazem. Na intenção e no concreto porém, essoutros são mesmo rebuçados no verdadeiro sentido da palavra: têm rebuço, onde sempre alguma manigância se esconde…
 
                                                                                                 José d'Encarnação
 
Publicado em Duas Linhas, 3 de Junho, 2025: https://duaslinhas.pt/2025/06/o-rebucado/

 

 

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