Longe de mim estava, bem
longe, a ideia de que, ao começar a ler A Capital, de Eça de Queiroz,
logo as primeiras páginas me induziriam a escrever esta crónica.
Na Nota Introdutória à edição que tenho, ao
caracterizar-se a situação desta obra póstuma no percurso literário de Eça de
Queiroz, explica-se, sem o menor rebuço e com toda a clarividência:
«Em A Capital, Eça retrata duramente a fauna dos
salões onde Artur Corvelo, vindo de Oliveira de Azeméis, se perde e se arruína
na tentativa vã de encontrar a fama como literato e a fortuna, que se julga
poder fazer escrevendo».
Antes, porém, de Vasco, o protagonista, demandar essa
capital, ele frequentou as estouvadas literárias e outras da Coimbra dos
estudantes e passou férias, a determinada altura, em casa das tias, em Oliveira
de Azeméis, o ambiente naturalmente provinciano de então, que Eça não hesitou
em descrever com as tintas mais carregadas.
Engraçou com Vasco o farmacêutico local e, um dia, após
filosófico diálogo sobre a família, “instituição responsável”, “num
reconhecimento às Corvelos, por possuírem um sobrinho de tanta virtude
doméstica, pesou um quarto de rebuçados, encartuchou-os e exclamou:
– Para as senhoras suas tias, da minha parte.
Compreendo o gosto que fazem em Vossa Excelência”.
Surpreendeu-me, confesso, o cartucho de
rebuçados. Não havia motivo para surpresa, disse de imediato de mim para
comigo; era natural a oferta dum cartucho de rebuçados nesse final do século
XIX.
De facto, nesse caso o cartuchinho de rebuçados desempenhou
bem e a preceito o seu papel; contudo, pensando melhor, acabei por verificar
que, afinal, o rebuçado – ou arrabuçado, como, por vezes, se dizia –
sempre estivera bem presente na minha vida. Ainda na semana passada, ao tirar
dum púcaro a fatura do restaurante, para pagar o jantar, dei com dois
rebuçadinhos no fundo. Saboreei-os com gosto, achei simpático o gesto da gerência
e não me surgiu nenhuma reflexão a esse propósito.
A frase do Eça não. Fez-me voltar aos tempos de criança: «Se
fores ali à venda fazer-me este mandado, eu dou-te um rebuçado!»; «Toma uma
coroa para comprares rebuçados»…
Por vezes, nessa vontade de amealhar uns tostõezinhos, ou
não se compravam os rebuçados e se punha a moedita no migalheiro, ou
gastavam-se apenas dois tostões e guardava se o resto. Doutras vezes, não havia
moedas para o troco, ou fingia-se que não havia, e lá iam os rebuçadinhos para
o bolso. Poderiam até servir para colher as boas graças daquela de que – em
miríficos sonhos de criança… – já antecipávamos noiva…
Outra imagem me surgiu forte neste queiroziano cartucho de
rebuçados: o Padre João de Moura Pires. Foi diretor da Escola Técnica e Liceal
Salesiana do Estoril, quando, em meados da década de 50, eu lá fui aluno. O
Padre Pires não perdia o recreio da hora de almoço, passeava-se pelo pátio,
falava com este e aquele, conhecia pelo nome todos os alunos, aplaudia as boas
raquetadas do ténis ou o bom bolar do vólei e, sorrateiramente, lá tirava um
rebuçado do bolso da batina e distribuía por quem estava por perto. A imagem
acabada do sistema preventivo de Dom Bosco, que preconizava a maior convivência
entre docentes e estudantes, mormente nas horas de recreio. Era um mimo, esse
rebuçadinho, que sabia mesmo bem e detinha um significado que ultrapassava de
longe o docinho concreto a derretidamente deliciar paladares…
Tiveram o desejado efeito os rebuçados do cartucho oferecido
às Corvelos pelo boticário. Agradam-nos os rebuçados verdadeiros que de doçura
vão salpicando os nossos dias. Entre os grandes do nosso tempo também oferendas
de rebuçados se fazem. Na intenção e no concreto porém, essoutros são mesmo
rebuçados no verdadeiro sentido da palavra: têm rebuço, onde sempre alguma
manigância se esconde…
José d'Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 3 de Junho, 2025: https://duaslinhas.pt/2025/06/o-rebucado/
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