Por se tratar
de mui desajeitada pedra que, provavelmente, um dia até escacilharam para dela
fazerem cunho de abóbada; por ter, devido a isso, sofrido tratos de polé, e
poucas letras lhe restarem – não mereceria, de facto, a atenção de algumas
linhas de texto.
Decerto foi
isso que aconteceu, nessas mudanças de espólio do Palácio Episcopal do Senhor
Dom Frei Manuel do Cenáculo para Évora: deixaram da mão a coitada, que já
tivera como destino consolidar o alicerce duma construção.
Sucedeu, porém,
que o Senhor Bispo, ainda que vendo-a assim tão maltratada, não esteve com
meias medidas e mandou que a desenhassem e que constasse o seu achamento na Rua
do Touro, no alicerce das casas de José Joaquim de Oliveira, nesta cidade de
Beja.
Como se vê
pelo desenho, que tem o número 43 na pasta que o prelado nos deixou e está na Biblioteca
Pública de Évora, pouco se enxerga ler que jeito tenha. Frei Manuel do Cenáculo
ainda acreditou que ali se falava de um tal Clódio mas nada mais adiantou.
Coube ao
investigador alemão Emílio Hübner dar conta, no relatório que, em 1861,
apresentou à Academia das Ciências de Berlim, que, com um pouco de imaginação e
alguma sabedoria, esta pedra romana com letras poderia ser o testemunho vivo da
homenagem que um servo, Modesto de seu nome, teria prestado, a expensas suas,
ao seu senhor, um cidadão muito possivelmente chamado Clódio Quadrado e que
fora edil, função que aparecia nomeada isoladamente, em boa letra e bem
centrada, na linha 3.
Nada de
especial até aqui, pois que, amealhando pecúlio ao longo dos anos, um servo
poderia dar-se ao luxo de gastar parte dele em gesto seguramente de gratidão.
Há, no
entanto, um pormenor não de somemos: é que Quadrado recebe a homenagem na
qualidade de edil! E esse aspecto carece de ser bem assinalado, pela
significativa importância que detém. Daí estar isolado e centrado na linha!
Todavia, antes
de se explicar o que é isso de ser edil e o que poderia estar, afinal, por
detrás da (aparentemente singela) homenagem de um servo ao seu senhor, importa
que se diga ter sido aceite pelos investigadores subsequentes a interpretação inicial
proposta por Hübner.
Assim, ele
próprio a incluiu, com o nº 50, no seu Corpus das Inscrições Latinas da
Península Ibérica publicado em 1869. E daí passou, sem objecções, para o
catálogo das inscrições latinas da Espanha romana elaborado por José Vives, em
1971, sob o nº 552. O professor Júlio Mangas, que escreveu um livro sobre escravos
e libertos na Espanha romana, também datado de 1971, não se esqueceu de aludir
a esta epígrafe na página 62, por referir um servo, datando-a do século I. Também
Julian de Francisco Martin, no nº 1 da revista «Memorias de Historia Antigua» (1977,
pág. 238) cita Cláudio Quadrado como edil de Pax Iulia, acrescentando:
«Contamos com um
Lúcio Clódio Salviano, filho de Marco, o mesmo que o nosso edil e também da tribo
Galéria, como ele, flâmine de Pax Júlia. É, pois, lógico pensar que estavam
aparentados e, inclusivamente, que se trata de dois irmãos. Mas não temos
informação acerca do montante que o servo gastou».
Anote-se que
esta referência de Julian de Francisco se baseia numa informação hipotética, o
que não invalida a afirmação de que haja, em Pax Iulia, outros membros desta
família Clódia.
A leitura interpretada de Hübner não sofreu,
por conseguinte, contestação e, à falta de alternativa, foi aceite e integrada em
posteriores catálogos das inscrições romanas, nem sempre os autores se dando
conta de estarmos, de facto, perante um texto deveras de interpretação duvidosa.
E onde está, então, a cumplicidade política de
que se fala no título?
O servo poderia estar grato ao senhor; poderia
ter no bolso a quantia necessária para pagar ao canteiro. Mas… o seu senhor não
era um senhor qualquer! E o cargo que ocupa no momento em que a homenagem lhe
foi feita é um cargo municipal de grande importância, porque o edil ‘mexia’ nas
finanças locais! Não dizemos nós, hoje, por vezes, que o presidente da câmara é
o edil máximo?...
Se o servo se sai
bem do empenho, melhor se sai o seu senhor, porque vê o seu nome perpetuado num
monumento público! E – aqui para nós – será grande maldade pensar que o próprio
senhor secretamente instigou o servo a tomar a iniciativa de o homenagear? Não
encontramos nós homenagens desse tempo em que o homenageado, ‘contente com a
honra, pagou as despesas’ e faz questão de isso mandar gravar na inscrição? Porque
seria? E quando, por exemplo, na cidade romana de Balsa (a actual Tavira) Mânlia
Faustina consegue que os decuriões (o equivalente à nossa Assembleia Municipal)
a autorizem a organizar um banquete público em homenagem ao irmão, Tito Mânlio
Faustino, ‘modelo de piedade’, que foi duas vezes duúnviro (magistrado municipal)
terá sido esta uma homenagem… inocente? Não estariam os Mânlios Faustinos em
campanha eleitoral?
Essas são, na verdade, as cumplicidades políticas doutrora. Muito diferentes das de hoje?
José d’Encarnação
Publicado em Diário do Alentejo, nº 2262 (II série), 29-08-2025, p. 11.