No passado dia 1, Dia Mundial da Floresta, uma bióloga da SPEA – Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves [ http://www.spea.pt/pt ] ‒ falou, em improvisado auditório do Parque Urbano do Rio dos Mochos, em Cascais, da importância que detém a preservação das aves para o equilíbrio ambiental e, inclusive, para ser possível proporcionar ao Homem a deliciosa visão das suas plumagens e a variedade musical dos seus cantares.
Explicou medidas a tomar por cada um de nós no dia-a-dia: evitar o uso descontrolado de pesticidas, a caça desregrada, o corte de árvores… Sugeriu a criação de jardins com plantas, árvores e arbustos diversificados (fugir da tentação de pôr tudo relvado…); não facilitar a vida aos predadores (os gatos, por exemplo); pôr ninhos em locais adequados…
O público, várias dezenas de estudantes de três escolas do concelho; o pretexto (para além da celebração do dia), o lançamento da obra Aves da Ribeira dos Mochos, resultado de muitos anos de observação e de fotografias feitas por um dos vizinhos do vale ora sabiamente transformado em parque para deleite da população…
De 37 aves José Manuel Durão ali apresenta mais do que uma foto e faz breve descrição dos seus hábitos e aparência.
De muito aplaudir, portanto, esta edição camarária!
Assim como o é um outro livrinho, em jeito de bloco de notas, apresentado, no dia 24, no Museu do Mar, sobre as espécies vegetais da orla marítima cascalenses: um Guia de Plantas do percurso pedonal Cascais-Guincho, da autoria do Comandante Abel Melo e Sousa e da bióloga Maria Cristina Duarte.
Insistentemente venho chamando a atenção para esta maravilha da nossa orla, pérola de variegado colorido no cinzento monótono do lapiás, mormente desde que João de Carvalho e Vasconcelos publicou, na colecção camarária do VI Centenário (1964), o livro Vegetação Natural do Concelho de Cascais. É mosaico policromado que a Primavera faz o favor de acrescentar ao eterno tapete pitoresco duma orla marítima, donde apenas o chorão é intruso a erradicar.
E assim vamos apreciando melhor o que ainda nos rodeia!
Publicado no Jornal de Cascais, nº 260, 30-03-2011, p. 6.
quinta-feira, 31 de março de 2011
segunda-feira, 28 de março de 2011
Júlia Nery
Porque haveria de me dar na veneta, agora, de dedicar crónicas a pessoas? Acto instintivo, de defesa, dir-se-ia, num tempo de menosprezo pelos valores humanos. Deve ser.
Docente de língua portuguesa (evito a palavra «professor», amaldiçoada pela governação…), Júlia Nery (Lisboa, 1939) sentiu a necessidade de, também pela escrita, dizer o que lhe ia na alma, partilhar o resultado das suas observações quotidianas pelo mundo das gentes com que tanto convivia, até por dever de ofício.
Docente que derrama, assim, pelos livros a experiência vivida, o sonho, a inquietação. Os seus estudantes – Na Casa da Língua Moram as Palavras (1993), O Plantador de Naus a Haver (1994); os jovens – Valéria, Valéria (1998), www.morte.com (2000); a necessária incursão pela História de Portugal – O Cônsul (1991), que seria traduzido para francês pela tradutora de Miguel Torga, com o título La résolution de Bordeaux (1993), e que marca o começo do interesse mais generalizado pela vida de Aristides de Sousa Mendes, Do Forno 14 ao Sud-Express com autos e foral (Câmara Municipal de Nelas, 1996), O Segredo Perdido (2005, tendo como cenário o terramoto de 1755), Crónica de Brites (a padeira da Aljubarrota, 2008)…
Ah! E os que se viram forçados a abalar!... Ontem. Como hoje. Não deixa, pois, de ser evidentemente natural que ora se dê especial relevo ao seu primeiro romance «pouca terra… poucá terra…» (1984), sobre o fenómeno da emigração para França, que termina com aquela frase lapidar de Leonor para Kathy:
«E depois, minha amiga Francesa, nós entraremos pelo vosso sangue, pela vossa Língua, pela vossa História, pelos vossos hábitos, que o português é semente que em qualquer terra dá fruto…».
Honra ao mérito!
Pouca terra... poucá terra está a ser objecto de leitura num curso do Professor José Costa Esteves na Universidade de Paris-Nanterre; e, em Maio, Júlia Nery estará nessa universidade para participar, com comunicação, no Colóquio Internacional “A Mulher Portuguesa na Diáspora”. Esse seu livro já foi objecto de comunicação num colóquio em Curitiba (Brasil) e está prevista a participação da autora, a 5 de Agosto, na Universidade de Brasília, numa mesa-redonda com escritoras brasileiras, no quadro do Seminário Internacional “Mulher e Literatura”. Ainda no mês de Agosto assistirá, na Universidade de S. Paulo, à defesa da tese de doutoramento da Profª Alleid Machado, intitulada "As personagens femininas de Júlia Nery: paradigmas e representações”.
Docente durante largos anos na “Polivalente” de Cascais, ora aposentada, Júlia Nery continua a viver em Murches. E fazemos votos de que por muito tempo – para dos seus ensinamentos lograrmos beneficiar!
Publicado no Jornal de Cascais, 23-03-2011, p. 4.
Docente de língua portuguesa (evito a palavra «professor», amaldiçoada pela governação…), Júlia Nery (Lisboa, 1939) sentiu a necessidade de, também pela escrita, dizer o que lhe ia na alma, partilhar o resultado das suas observações quotidianas pelo mundo das gentes com que tanto convivia, até por dever de ofício.
Docente que derrama, assim, pelos livros a experiência vivida, o sonho, a inquietação. Os seus estudantes – Na Casa da Língua Moram as Palavras (1993), O Plantador de Naus a Haver (1994); os jovens – Valéria, Valéria (1998), www.morte.com (2000); a necessária incursão pela História de Portugal – O Cônsul (1991), que seria traduzido para francês pela tradutora de Miguel Torga, com o título La résolution de Bordeaux (1993), e que marca o começo do interesse mais generalizado pela vida de Aristides de Sousa Mendes, Do Forno 14 ao Sud-Express com autos e foral (Câmara Municipal de Nelas, 1996), O Segredo Perdido (2005, tendo como cenário o terramoto de 1755), Crónica de Brites (a padeira da Aljubarrota, 2008)…
Ah! E os que se viram forçados a abalar!... Ontem. Como hoje. Não deixa, pois, de ser evidentemente natural que ora se dê especial relevo ao seu primeiro romance «pouca terra… poucá terra…» (1984), sobre o fenómeno da emigração para França, que termina com aquela frase lapidar de Leonor para Kathy:
«E depois, minha amiga Francesa, nós entraremos pelo vosso sangue, pela vossa Língua, pela vossa História, pelos vossos hábitos, que o português é semente que em qualquer terra dá fruto…».
Honra ao mérito!
Pouca terra... poucá terra está a ser objecto de leitura num curso do Professor José Costa Esteves na Universidade de Paris-Nanterre; e, em Maio, Júlia Nery estará nessa universidade para participar, com comunicação, no Colóquio Internacional “A Mulher Portuguesa na Diáspora”. Esse seu livro já foi objecto de comunicação num colóquio em Curitiba (Brasil) e está prevista a participação da autora, a 5 de Agosto, na Universidade de Brasília, numa mesa-redonda com escritoras brasileiras, no quadro do Seminário Internacional “Mulher e Literatura”. Ainda no mês de Agosto assistirá, na Universidade de S. Paulo, à defesa da tese de doutoramento da Profª Alleid Machado, intitulada "As personagens femininas de Júlia Nery: paradigmas e representações”.
Docente durante largos anos na “Polivalente” de Cascais, ora aposentada, Júlia Nery continua a viver em Murches. E fazemos votos de que por muito tempo – para dos seus ensinamentos lograrmos beneficiar!
Publicado no Jornal de Cascais, 23-03-2011, p. 4.
sexta-feira, 18 de março de 2011
Os marcos do Tibre
Amiúde se plantam as cidades nas margens dos rios. Cresce o casario de um lado e doutro; fazem-se as pontes e, por vezes, ao manancial se deixa apenas estreita passagem, quando não se pensa que o melhor é mesmo canalizá-lo subterraneamente para a urbe ganhar espaço!...
Esse ganho, porém, já hoje não ganha muitos adeptos, cientes, como estamos todos, de dois aspectos fundamentais: primeiro, a Natureza tem as suas regras, as águas carecem de se espraiar quando abundam; depois, ver a água fluir e nelas vicejar vegetação e usufruir doutra vida a fauna que a povoa está a ser, cada vez mais, o sadio pulmão aonde apetece ir, onde apetece sentarmo-nos… Já não sei onde foi e não tenho os contornos todos da história, mas contou-nos Jorge Paiva, numa das suas lições, que um ancião mandara fazer um banco e o legara à cidade, com uma mensagem: a da felicidade que ali tivera oportunidade de viver, sentado, a ver o riacho que passava perto, as crianças a brincar no parque envolvente da linha de água…
O leito de cheia, área non aedificandi!... Quantas vezes não vociferamos contra os ataques que lhe são feitos, no momento em que as imagens da televisão nos mostram desgraças das cheias e inundações em meio urbano!... E estudávamos nós as cheias do Nilo e os seus benefícios! E eram normais para o homem da lezíria ribatejana as inundações invernais fertilizantes da sementeira a fazer!...
As preocupações do imperador Augusto
Recordado – que a tradição lho contara – das inovações cedo introduzidas pelos Etruscos nas terras do Lácio, Augusto não menosprezou a segurança de pessoas e bens no que concerne ao eventual mau uso do leito do Tibre.
Isso mesmo nos conta Suetónio:
«Para evitar as inundações, mandou alargar e dragar o leito do Tibre há muito cheio de escombros e apertado pela extensão dos edifícios».
O problema, aliás, já vinha de longe, como H. Thédenat nos refere, na extensa e bem estruturada entrada «Curatores Alvei Tiberis et Riparum et Cloacarum Urbis» do clássico Dictionnaire des Antiquités Grecques et Romaines, de Daremberg et Saglio (p. 1623-1625): houve uma inundação em 34 a. C., que devastou Roma, e, por isso, os censores Messala e P. Servilius Isauricus procederam à delimitação das margens, ex senatus consulto. No ano 8 a. C., os cônsules G. Asinius Gallus e C. Marcius Censorinus tiveram idêntica actuação; e o imperador Augusto, no ano seguinte, ou fez nova delimitação ou completou a que pelos cônsules fora iniciada.
É dessa intervenção que dá conta o marco hoje seleccionado (Fig. 1) para documentarmos, em continuidade, o papel que os monumentos epigráficos podem desempenhar como elementos didácticos.
Desdobradas siglas e abreviaturas, o texto (Fig. 2) reza o seguinte:
IMP(erator) • CAESAR • DIVI • F(ilius) / AVGVSTVS / PONTIFEX • MAXIMVS / TRIBVNIC(ia) • POTEST(ate) • XVII (decima septima) / EX • S(enatus) • C(onsulto) • TERMINAVIT // R(ecta) • R(egione) • PROX(imus) • CIPPVS • PED(ibus) • CCXIX (ducenti et undeviginti).
Ou seja:
«O imperador César Augusto, filho do Divino, pontífice máximo, no seu 17º poder tribunício, por senátus-consulto, delimitou. Em linha recta, o próximo cipo a 219 pés».
Serve o texto, como facilmente se depreende, para inúmeras reflexões, quer do ponto de vista dos conceitos que nele se exprimem quer pelo cuidado posto na execução do empreendimento, pois se indica claramente que o próximo marco (cippus) se encontra a 219 pés, isto é, se consideramos o pé equivalente a 29,6 cm, teremos uma distância de 64,824 metros, frequência que dá bem a medida da importância dessa marcação.
Detenhamo-nos, por agora, em três pontos.
a) Augustus
Vem este nome por extenso e ocupa uma linha, centrado – a significar o relevo que se lhe atribui.
Nem sempre se consciencializa que o adjectivo – pois que de adjectivo inicialmente se trata, assumido depois como nome próprio – vem do verbo augere, «aumentar». Augustus é, pois, aquele que detém em si a capacidade de aumentar, de trazer benefícios, prosperidade. Augusto é o contrário de angusto, donde vem a palavra angústia… Há, por consequência, aqui uma conotação positiva do maior alcance e não foi por mero acaso que o imperador a esse nome se referiu nas suas Res Gestae:
«No meu sexto e sétimo consulados, depois de ter extinguido a guerra civil, e de ter assumido, por consenso universal, o poder supremo, passei a República do meu poder para o arbítrio do Senado e do Povo Romano. Por esse motivo, e para me honrar, recebi o título de Augusto por decisão do Senado».
b) Pontifex maximus
Também por extenso e também isolado numa linha. Se Augustus traz já implícita uma certa noção de outros poderes, fora do comum, a função de sumo pontífice, de intermediário privilegiado entre os deuses e os homens mais corrobora tal carisma. De resto, também neste caso o imperador não quis omitir um testemunho para a posteridade:
«Recusei ser nomeado pontífice máximo, em lugar do meu colega, ainda vivo, quando o povo me outorgava o sacerdócio que o meu pai exercera».
Atitude política essa recusa, aqui referida em jeito de auto-elogio, mas que consubstancia, no fundo, o significado maior que o exercício destas funções detém. Sim, é para dar cumprimento a uma decisão do Senado que manda colocar este marco; contudo, o poder que dele emana não é apenas derivado de mero acto administrativo dos homens: está impregnado de uma religiosidade, que o autentica e sacraliza, determinando punição humana e também divina para quem tal determinação violar.
c) O poder tribunício
Regressemos de novo às Res Gestae:
«As acções que o Senado então quis que eu executasse, cumpri-as por efeito do meu poder de tribuno, poder esse para o qual eu mesmo solicitei cinco vezes do Senado um colega».
E a epígrafe documenta cabalmente esta determinação: o imperador executa não apenas a mando do Senado (ex senatus consulto – expressão que vem em sigla, por ser já corrente na linguagem quotidiana), mas também porque detém a tribunicia potestas! Traduzimos potestas por ‘poder’, mas sentimos que melhor seria uma tradução à letra: é potestade mesmo! Um poder sobre-humano, que lhe é transmitido por uma força estranha, pois não é impunemente que os tribunos gozam de imunidade, diríamos que são intocáveis! E recordamos, forçosamente, a invocação que Camões põe na boca de Vasco da Gama, quando dele se aproxima o Adamastor: «Ó potestade, disse, sublimada» (Os Lusíadas, canto V, 38)…
Era, na verdade, por anualmente lhe ser outorgado o tribunado – no dia de aniversário da sua tomada de posse – que o imperador podia legislar. Daqui que o número dessas atribuições seja para nós elemento fundamental de datação duma epígrafe imperial. Neste caso, estamos perante o poder tribunício a ser exercido pela 17ª vez; como Augusto, teve o 1º poder tribunício a 1 de Julho do ano 23 a. C., esta epígrafe data-se de entre 1 de Julho de 7 a. C. e 30 Junho do ano 6.
Publicado no Boletim de Estudos Clássicos, Coimbra, Dezembro de 2010, p. 71-75. [ O texto integral tem notas e pode ser consultado em http://hdl.handle.net/10316/14703 ]
Esse ganho, porém, já hoje não ganha muitos adeptos, cientes, como estamos todos, de dois aspectos fundamentais: primeiro, a Natureza tem as suas regras, as águas carecem de se espraiar quando abundam; depois, ver a água fluir e nelas vicejar vegetação e usufruir doutra vida a fauna que a povoa está a ser, cada vez mais, o sadio pulmão aonde apetece ir, onde apetece sentarmo-nos… Já não sei onde foi e não tenho os contornos todos da história, mas contou-nos Jorge Paiva, numa das suas lições, que um ancião mandara fazer um banco e o legara à cidade, com uma mensagem: a da felicidade que ali tivera oportunidade de viver, sentado, a ver o riacho que passava perto, as crianças a brincar no parque envolvente da linha de água…
O leito de cheia, área non aedificandi!... Quantas vezes não vociferamos contra os ataques que lhe são feitos, no momento em que as imagens da televisão nos mostram desgraças das cheias e inundações em meio urbano!... E estudávamos nós as cheias do Nilo e os seus benefícios! E eram normais para o homem da lezíria ribatejana as inundações invernais fertilizantes da sementeira a fazer!...
As preocupações do imperador Augusto
Recordado – que a tradição lho contara – das inovações cedo introduzidas pelos Etruscos nas terras do Lácio, Augusto não menosprezou a segurança de pessoas e bens no que concerne ao eventual mau uso do leito do Tibre.
Isso mesmo nos conta Suetónio:
«Para evitar as inundações, mandou alargar e dragar o leito do Tibre há muito cheio de escombros e apertado pela extensão dos edifícios».
O problema, aliás, já vinha de longe, como H. Thédenat nos refere, na extensa e bem estruturada entrada «Curatores Alvei Tiberis et Riparum et Cloacarum Urbis» do clássico Dictionnaire des Antiquités Grecques et Romaines, de Daremberg et Saglio (p. 1623-1625): houve uma inundação em 34 a. C., que devastou Roma, e, por isso, os censores Messala e P. Servilius Isauricus procederam à delimitação das margens, ex senatus consulto. No ano 8 a. C., os cônsules G. Asinius Gallus e C. Marcius Censorinus tiveram idêntica actuação; e o imperador Augusto, no ano seguinte, ou fez nova delimitação ou completou a que pelos cônsules fora iniciada.
É dessa intervenção que dá conta o marco hoje seleccionado (Fig. 1) para documentarmos, em continuidade, o papel que os monumentos epigráficos podem desempenhar como elementos didácticos.
Desdobradas siglas e abreviaturas, o texto (Fig. 2) reza o seguinte:
IMP(erator) • CAESAR • DIVI • F(ilius) / AVGVSTVS / PONTIFEX • MAXIMVS / TRIBVNIC(ia) • POTEST(ate) • XVII (decima septima) / EX • S(enatus) • C(onsulto) • TERMINAVIT // R(ecta) • R(egione) • PROX(imus) • CIPPVS • PED(ibus) • CCXIX (ducenti et undeviginti).
Ou seja:
«O imperador César Augusto, filho do Divino, pontífice máximo, no seu 17º poder tribunício, por senátus-consulto, delimitou. Em linha recta, o próximo cipo a 219 pés».
Serve o texto, como facilmente se depreende, para inúmeras reflexões, quer do ponto de vista dos conceitos que nele se exprimem quer pelo cuidado posto na execução do empreendimento, pois se indica claramente que o próximo marco (cippus) se encontra a 219 pés, isto é, se consideramos o pé equivalente a 29,6 cm, teremos uma distância de 64,824 metros, frequência que dá bem a medida da importância dessa marcação.
Detenhamo-nos, por agora, em três pontos.
a) Augustus
Vem este nome por extenso e ocupa uma linha, centrado – a significar o relevo que se lhe atribui.
Nem sempre se consciencializa que o adjectivo – pois que de adjectivo inicialmente se trata, assumido depois como nome próprio – vem do verbo augere, «aumentar». Augustus é, pois, aquele que detém em si a capacidade de aumentar, de trazer benefícios, prosperidade. Augusto é o contrário de angusto, donde vem a palavra angústia… Há, por consequência, aqui uma conotação positiva do maior alcance e não foi por mero acaso que o imperador a esse nome se referiu nas suas Res Gestae:
«No meu sexto e sétimo consulados, depois de ter extinguido a guerra civil, e de ter assumido, por consenso universal, o poder supremo, passei a República do meu poder para o arbítrio do Senado e do Povo Romano. Por esse motivo, e para me honrar, recebi o título de Augusto por decisão do Senado».
b) Pontifex maximus
Também por extenso e também isolado numa linha. Se Augustus traz já implícita uma certa noção de outros poderes, fora do comum, a função de sumo pontífice, de intermediário privilegiado entre os deuses e os homens mais corrobora tal carisma. De resto, também neste caso o imperador não quis omitir um testemunho para a posteridade:
«Recusei ser nomeado pontífice máximo, em lugar do meu colega, ainda vivo, quando o povo me outorgava o sacerdócio que o meu pai exercera».
Atitude política essa recusa, aqui referida em jeito de auto-elogio, mas que consubstancia, no fundo, o significado maior que o exercício destas funções detém. Sim, é para dar cumprimento a uma decisão do Senado que manda colocar este marco; contudo, o poder que dele emana não é apenas derivado de mero acto administrativo dos homens: está impregnado de uma religiosidade, que o autentica e sacraliza, determinando punição humana e também divina para quem tal determinação violar.
c) O poder tribunício
Regressemos de novo às Res Gestae:
«As acções que o Senado então quis que eu executasse, cumpri-as por efeito do meu poder de tribuno, poder esse para o qual eu mesmo solicitei cinco vezes do Senado um colega».
E a epígrafe documenta cabalmente esta determinação: o imperador executa não apenas a mando do Senado (ex senatus consulto – expressão que vem em sigla, por ser já corrente na linguagem quotidiana), mas também porque detém a tribunicia potestas! Traduzimos potestas por ‘poder’, mas sentimos que melhor seria uma tradução à letra: é potestade mesmo! Um poder sobre-humano, que lhe é transmitido por uma força estranha, pois não é impunemente que os tribunos gozam de imunidade, diríamos que são intocáveis! E recordamos, forçosamente, a invocação que Camões põe na boca de Vasco da Gama, quando dele se aproxima o Adamastor: «Ó potestade, disse, sublimada» (Os Lusíadas, canto V, 38)…
Era, na verdade, por anualmente lhe ser outorgado o tribunado – no dia de aniversário da sua tomada de posse – que o imperador podia legislar. Daqui que o número dessas atribuições seja para nós elemento fundamental de datação duma epígrafe imperial. Neste caso, estamos perante o poder tribunício a ser exercido pela 17ª vez; como Augusto, teve o 1º poder tribunício a 1 de Julho do ano 23 a. C., esta epígrafe data-se de entre 1 de Julho de 7 a. C. e 30 Junho do ano 6.
Publicado no Boletim de Estudos Clássicos, Coimbra, Dezembro de 2010, p. 71-75. [ O texto integral tem notas e pode ser consultado em http://hdl.handle.net/10316/14703 ]
quarta-feira, 16 de março de 2011
Edgardo Xavier
Esteve durante anos ligado à organização das exposições na galeria do Casino Estoril, nomeadamente quando a galeria fazia parte integrante da orgânica da empresa.
O seu natural pendor para as artes e o assíduo contacto com os artistas (comissariou as bienais de Óbidos, por exemplo) fizeram amadurecer em Edgardo Xavier (Huambo, 1946) um estilo muito próprio, em que os meus olhos (quiçá heréticos…) descobrem o desejo – conseguido – de manifestar o que de belo se poderá encontrar na inesperada chapada de cor prantada na rígida geometria de objectos mecânicos, frios, positivos, por onde um pêndulo amiúde se passeia, a marcar os tempos. [Ver http://visii.multiply.com/photos/album/1/Telas_de_Edgardo_Xavier].
Depois de se reformar, Edgardo Xavier optou por dar largas à sua veia poética: Amor Despenteado (2007); O Canto da Pedra (2009), lançado na Livraria Verney (Oeiras); e, agora, Corpo de Abrigo, apresentado em Lisboa, a 12 de Fevereiro.
Não têm rima os seus poemas; nem dimensão estipulada. É como surgem. Por todo este Corpo de Abrigo perpassa uma tónica permanente: o corpo amado, esse abrigo a que o poeta sempre recorre. Febre, arder, rubro, incendiar, silêncio, boca, pele… palavras integrantes desse refúgio, para onde, na pausada leitura, nós próprios queremos ir, no voluntário alheamento ao macabro horizonte aritmético em que nos obrigaram a viver…
«Procura-me / na terra mais fértil / ou na aridez do caminho» (p. 13); «Veste-me com o aroma da tua boca / e devassa-me / como se fosse terra tua» (p. 19); «Nos teus caminhos / sabem-me a mosto as manhãs» (p. 26); «Importa que se devassem / segredos / e se abatam as fronteiras» (p. 27); «e a língua acende a festa / no teu corpo» (p. 30); «Diz o meu nome / pelo lado doce das sílabas / mansamente» (p. 33); «sou a pedra em que te apoias»... (p. 43).
Um mundo, pois, inteiramente vivido num lirismo tão absorvente que as searas, o mar, a paisagem surgem transfiguradas por completo, no saboreio da entrega… «Amarras palavras / Ao peso dos silêncios»... (p. 57).
Há lugar, hoje, para uma poesia assim, para este caloroso explodir do sentimento amoroso? Mais do que nunca, diria eu; mais do que nunca! Libelo contra o desamor reinante, contra os martelados discursos quotidianos de que tudo isso está deliberadamente afastado – como no livro de George Orwell, 1984… É proibido amar!...
Gostaria que o impressor tivesse tido maior cuidado com as ilustrações, que resultaram empasteladas (a meu ver). Achei curiosa a hesitação do autor no que concerne à pontuação – a que mui raramente recorre. Eu, porém, não hesitei em dedicar-lhe esta nota, porque urge proclamar, mais uma vez e muitas mais: amar é preciso, make love not war! E voltarmos, com toda a força, a Maio de 68!
Publicado no Jornal de Cascais, nº 258, 16-03-2011, p. 6.
O seu natural pendor para as artes e o assíduo contacto com os artistas (comissariou as bienais de Óbidos, por exemplo) fizeram amadurecer em Edgardo Xavier (Huambo, 1946) um estilo muito próprio, em que os meus olhos (quiçá heréticos…) descobrem o desejo – conseguido – de manifestar o que de belo se poderá encontrar na inesperada chapada de cor prantada na rígida geometria de objectos mecânicos, frios, positivos, por onde um pêndulo amiúde se passeia, a marcar os tempos. [Ver http://visii.multiply.com/photos/album/1/Telas_de_Edgardo_Xavier].
Depois de se reformar, Edgardo Xavier optou por dar largas à sua veia poética: Amor Despenteado (2007); O Canto da Pedra (2009), lançado na Livraria Verney (Oeiras); e, agora, Corpo de Abrigo, apresentado em Lisboa, a 12 de Fevereiro.
Não têm rima os seus poemas; nem dimensão estipulada. É como surgem. Por todo este Corpo de Abrigo perpassa uma tónica permanente: o corpo amado, esse abrigo a que o poeta sempre recorre. Febre, arder, rubro, incendiar, silêncio, boca, pele… palavras integrantes desse refúgio, para onde, na pausada leitura, nós próprios queremos ir, no voluntário alheamento ao macabro horizonte aritmético em que nos obrigaram a viver…
«Procura-me / na terra mais fértil / ou na aridez do caminho» (p. 13); «Veste-me com o aroma da tua boca / e devassa-me / como se fosse terra tua» (p. 19); «Nos teus caminhos / sabem-me a mosto as manhãs» (p. 26); «Importa que se devassem / segredos / e se abatam as fronteiras» (p. 27); «e a língua acende a festa / no teu corpo» (p. 30); «Diz o meu nome / pelo lado doce das sílabas / mansamente» (p. 33); «sou a pedra em que te apoias»... (p. 43).
Um mundo, pois, inteiramente vivido num lirismo tão absorvente que as searas, o mar, a paisagem surgem transfiguradas por completo, no saboreio da entrega… «Amarras palavras / Ao peso dos silêncios»... (p. 57).
Há lugar, hoje, para uma poesia assim, para este caloroso explodir do sentimento amoroso? Mais do que nunca, diria eu; mais do que nunca! Libelo contra o desamor reinante, contra os martelados discursos quotidianos de que tudo isso está deliberadamente afastado – como no livro de George Orwell, 1984… É proibido amar!...
Gostaria que o impressor tivesse tido maior cuidado com as ilustrações, que resultaram empasteladas (a meu ver). Achei curiosa a hesitação do autor no que concerne à pontuação – a que mui raramente recorre. Eu, porém, não hesitei em dedicar-lhe esta nota, porque urge proclamar, mais uma vez e muitas mais: amar é preciso, make love not war! E voltarmos, com toda a força, a Maio de 68!
Publicado no Jornal de Cascais, nº 258, 16-03-2011, p. 6.
A minhoca
Como é que aquela minhoca poderia ter entrado na cozinha?! Donde viera, se o espaço confinante com a porta é pavimentado a pedaços de mármore e a porta tem soleira alta?...
Apesar do mistério, agarrei num pau de fósforo e, com todo o cuidado, peguei-lhe a meio e, sem medo à chuva miudinha que caía, fui até ao canteiro mais próximo e lá a depositei. Mas… o canteiro transbordava de água!... Ah! Ontem, a meio da tarde, veio cá o canalizador e foi preciso despejar os canos. Não estive com meias medidas e pus a mangueira da rega a correr para ali. O canalizador fez o seu trabalho, a torneira de segurança voltou a ser aberta e… a mangueira desatou a regar o canteiro que não precisava de ser regado, até porque a chuva foi constante a noite inteira!... Por isso também, ninguém se deu conta de que o contador não parava de contar, no seu dispendioso tiquetaque monótono…
Voltei a perguntar-me: quem pôs a minhoca ali?
Quem foi não sei! Ou melhor, sei, porque acredito «na comunhão dos santos», para usar a terminologia da Igreja Católica e… algum «santo» de minha particular devoção – tenho vários, mormente os mais chegados de minha família que já partiram mas estão diariamente junto de mim… – um deles pôs a minhoca. A todos agradeci, portanto.
Hoje de manhã, por mais voltas que desse, não logrei passar as fotos do telemóvel para o computador, porque queria colocar na página http://www.encontra-me.org/ o anúncio do gato da minha vizinha que andava perdido há três dias. Por mais que tentasse, não consegui. Ocorreu-me, então, telefonar a outra vizinha a perguntar se não vira o gatinho pelo jardim. Viu-o depois: fora morto numa zanga de gatos com cio.
São inúmeros, no dia-a-dia, os sinais que nos enviam. Insignificantes, à primeira vista. Verificamos, depois, que tinham um sentido bem preciso, que visavam alertar-nos para um perigo, recordar-nos o que esquecido fora e nos viria causar muito transtorno… Aquele avião que se perdeu e que, afinal, sofreu um acidente... Chamamos-lhes «acasos», «coincidências felizes»… Eu chamo-lhes sinais – que, estou convicto, o acaso não existe! E procuro cada vez mais estar atento a eles!
Publicado no quinzenário de Mangualde, Renascimento, nº 566, 15-03-2011, p. 13.
Apesar do mistério, agarrei num pau de fósforo e, com todo o cuidado, peguei-lhe a meio e, sem medo à chuva miudinha que caía, fui até ao canteiro mais próximo e lá a depositei. Mas… o canteiro transbordava de água!... Ah! Ontem, a meio da tarde, veio cá o canalizador e foi preciso despejar os canos. Não estive com meias medidas e pus a mangueira da rega a correr para ali. O canalizador fez o seu trabalho, a torneira de segurança voltou a ser aberta e… a mangueira desatou a regar o canteiro que não precisava de ser regado, até porque a chuva foi constante a noite inteira!... Por isso também, ninguém se deu conta de que o contador não parava de contar, no seu dispendioso tiquetaque monótono…
Voltei a perguntar-me: quem pôs a minhoca ali?
Quem foi não sei! Ou melhor, sei, porque acredito «na comunhão dos santos», para usar a terminologia da Igreja Católica e… algum «santo» de minha particular devoção – tenho vários, mormente os mais chegados de minha família que já partiram mas estão diariamente junto de mim… – um deles pôs a minhoca. A todos agradeci, portanto.
Hoje de manhã, por mais voltas que desse, não logrei passar as fotos do telemóvel para o computador, porque queria colocar na página http://www.encontra-me.org/ o anúncio do gato da minha vizinha que andava perdido há três dias. Por mais que tentasse, não consegui. Ocorreu-me, então, telefonar a outra vizinha a perguntar se não vira o gatinho pelo jardim. Viu-o depois: fora morto numa zanga de gatos com cio.
São inúmeros, no dia-a-dia, os sinais que nos enviam. Insignificantes, à primeira vista. Verificamos, depois, que tinham um sentido bem preciso, que visavam alertar-nos para um perigo, recordar-nos o que esquecido fora e nos viria causar muito transtorno… Aquele avião que se perdeu e que, afinal, sofreu um acidente... Chamamos-lhes «acasos», «coincidências felizes»… Eu chamo-lhes sinais – que, estou convicto, o acaso não existe! E procuro cada vez mais estar atento a eles!
Publicado no quinzenário de Mangualde, Renascimento, nº 566, 15-03-2011, p. 13.
terça-feira, 15 de março de 2011
Cortar as pedras (3)
Dentro dum pedaço de jornal colocava-se a porção de pólvora em grão considerada suficiente. Descarnava-se a ponta do rastilho (um cordão preto, que se comprava em rolo); aconchegava-se com jeito dentro do punhado de pólvora; apertava-se muito bem e procedia-se à operação de levar tudo, mui cautelosamente, até ao fundo.
Atacava-se depois o tiro, ou seja, torranitos de argila bem secos, esfarelados à mão, eram calcados com a ajuda da tal vareta que dantes servira para tirar o pó; o rastilho aninhava-se num dos rasgos feitos pela arraiadeira. Importava que a compressão ficasse maciça.
Ficava de fora pouco mais de um palmo de rastilho. Uma chapa de zinco, uns taipais, ramagens de pinheiro estavam, agora, ali, à mão de semear, para rapidamente se porem em cima. Os trabalhadores haviam-se retirado. Os canteiros, avisados, largam as ferramentas e aproveitam para um púcaro de água ou o cigarrito de mortalha no alpendre. O cabouqueiro fica. Olha derredor. Puxa do isqueiro e… «Foooogo!».
Tem quase um minuto para acamar as tábuas, a chapa, as ramagens e foge para o abrigo. O estoiro ecoa pelos bancos; saltam as ramagens, num susto fumacento; há estilhaços de pedra pelos ares…
Serenamente, vai observar-se o resultado: se rachou como se pensara, se não houve um veio a estragar tudo, se o bloco se irá aproveitar bem. E, de esboço das encomendas na mão, já se combina como vai agora esquartejar-se – qual lombo de animal abatido para a melhor refeição!...
Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel], nº 146 (Março 2011) p. 10.
Atacava-se depois o tiro, ou seja, torranitos de argila bem secos, esfarelados à mão, eram calcados com a ajuda da tal vareta que dantes servira para tirar o pó; o rastilho aninhava-se num dos rasgos feitos pela arraiadeira. Importava que a compressão ficasse maciça.
Ficava de fora pouco mais de um palmo de rastilho. Uma chapa de zinco, uns taipais, ramagens de pinheiro estavam, agora, ali, à mão de semear, para rapidamente se porem em cima. Os trabalhadores haviam-se retirado. Os canteiros, avisados, largam as ferramentas e aproveitam para um púcaro de água ou o cigarrito de mortalha no alpendre. O cabouqueiro fica. Olha derredor. Puxa do isqueiro e… «Foooogo!».
Tem quase um minuto para acamar as tábuas, a chapa, as ramagens e foge para o abrigo. O estoiro ecoa pelos bancos; saltam as ramagens, num susto fumacento; há estilhaços de pedra pelos ares…
Serenamente, vai observar-se o resultado: se rachou como se pensara, se não houve um veio a estragar tudo, se o bloco se irá aproveitar bem. E, de esboço das encomendas na mão, já se combina como vai agora esquartejar-se – qual lombo de animal abatido para a melhor refeição!...
Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel], nº 146 (Março 2011) p. 10.
Carlos Avilez
O facto de acompanhar o Teatro Experimental de Cascais desde o primeiro ano da sua existência, em Cascais, no ano de 1965, levou-me inúmeras vezes a falar de Carlos Avilez e a entrevistá-lo. Senti, porém, nestes dias, a necessidade de voltar a falar dele, porque me impressionou o conteúdo do programa da peça ora em cena no Mirita Casimiro, O Comboio da Madrugada, a que me referi na passada edição.
É que, sob o título «Eunice», Carlos Avilez começa por dizer que «trabalhar com esta grande Senhora do teatro é uma experiência inesquecível e maravilhosa» e agradece-lhe, agradecimento que torna extensivo a todos e a cada um dos que mais directamente intervêm no espectáculo.
Até aqui, nada de especial. Carlos Avilez é um Senhor e, como tal, sabe quanto o trabalho em equipa é cada vez mais importante e exemplar nos tempos de egoísmo em que vivemos. Acontece, todavia, que, na conversa entre ele, Eunice Muñoz, Pedro Caeiro e Miguel Graça, Carlos Avilez termina assim:
«A mim dá-me vontade de perguntar: o que é que se faz depois disto? Não me importava de não fazer mais teatro e ficar como a senhora Goforth, fechado numa montanha a viver momentos como os que passámos nestes ensaios, e a recordá-los».
Que é lá isso?... E nós? E os alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais, que ainda tanto esperam de si? Lembra-se d’«As Criadas»? De «Fuenteovejuna», de «Ivone, Princesa da Borgonha», do «Balcão»… e tantas outras maravilhas? Também não lhe apeteceu, nessas alturas, ficar a reviver, mormente antes do 25 de Abril, com a adrenalina toda que era tentar enganar os esbirros da Censura?...
Permita-me que lhe recorde que, na edição de 9 de Novembro de 1965 (eu sei, já lá vão quase 46 anos, já vivemos muito, Carlos!...), o jornal A Nossa Terra enviou à estreia – foi a Esopaida, de António José da Silva, o Judeu, lembra-se? – dois repórteres: um do contra; outro, não.
O do contra escreveu: «(…) Não é o teatro do TEC que nos interessa. (…) Queremos (…) um grupo que nos proporcione momentos de distracção, que nos estimule o gosto pela arte, (…) em suma, que eleve o nosso nível cultural. Não é isso o que o TEC nos proporciona, infelizmente».
E o outro:
«E, ao abrir do pano, cada espectador era um derrotista e um pequeno crítico em potencial. Sentia-se nos camarins a sensação de pânico; havia no público um ambiente de descrença, gelo e apatia como preâmbulo dum espectáculo!
O final da 1ª cena foi sublinhado com prolongada salva de palmas. O público estava surpreendido, confuso, no constrangimento dum espectáculo que se lhe impunha; no inesperado duma arte de que se ia apercebendo.
E quando Esopaida chegou a seu termo, esse mesmo público não regateou aplausos calorosos e enternecidos, aplausos amigos e sinceros, tardia penitência da descrença e cepticismo».
E concluía: «O Teatro Experimental de Cascais é uma incontestável realidade e uma página escrita na história do teatro nacional».
Meu caro Carlos, acredite: vale a pena! E os ensaios do porvir trarão maior consolo ainda! Que os píncaros de Capri são frios, há uma neblina cortante e, lá em baixo, o mar morde, implacável, os rochedos, não sossega!...
Publicado no Jornal de Cascais, nº 257, 09-03-2011, p. 6.
quinta-feira, 3 de março de 2011
O comboio da madrugada
Nos últimos anos do seu reinado, o imperador romano Tibério fugiu de Roma e refugiou-se na Villa Jovis, palácio-fortaleza alcandorado num dos pontos mais altos da ilha de Capri. Vai-se de funicular até meia encosta e depois, por serpenteantes carreiros de cabras (diríamos!), chega-se lá, ao fim de quase uma hora de caminho. Soberbo, o panorama que de lá se avista. E mete medo o desfiladeiro imenso, a pique, o mar sussurrando lá no fundo, qual mastim a morder canelas de gigante. Corria uma neblina agreste e fria quando lá estive e compreendi porque, assim isolado, sobre a vida do imperador se houvessem tecido as mais estranhas fantasias.
Pensei em Tibério, ao ver O Comboio da Madrugada, de Tennessee Williams, a peça que o Teatro Experimental de Cascais estreou no dia 18, porque é por ali, nesse golfo de Nápoles, cenário de todas as elucubrações e muitos sonhos, que se passam os últimos dias de Flora Goforth, a protagonista, vivida aqui numa das mais portentosas interpretações de Eunice Muñoz. E qualificar de «portentosa» é pouco, diga-se desde já, porque Eunice está em palco do princípio ao fim e incarna a personagem com tal ‘naturalidade’ (!) que nos extasia.
O silêncio, o marulhar das ondas, a brisa forte e fresca… essa solidão em que, para fugir dos outros e de si, Flora se refugiou, guardada por mastins e uma segurança feroz – que «os passaportes expiram e os convites também!»… Ali poderia reflectir melhor sobre o significado da vida e o significado da morte… Realidade difícil de enfrentar: «Tens uns belos dentes… São postiços?»…
‒ De que anda à procura?
‒ Gostaria tanto de umas torradas com açúcar para acompanhar o meu café!...
O café, porém, tem de tomar-se simples, «porque o comboio da madrugada, que traz o leite, já não pára mais aqui»…
Flora Goforth pressente, contudo, que está bem perto do fim. Christopher Flanders (Pedro Caeiro, outra magnífica interpretação) é, afinal, não um amante mais a seduzir mas o beijo do anjo da morte. Ela suspeita-o. E tudo se passa, afinal, nesta luta entre dar esse beijo inexorável agora, mais tarde, e em que circunstâncias… Que «a verdade é uma coisa muito frágil, muito perigosa… É nitroglicerina, deve-se manejá-la com muito cuidado!...». Um jogo, esse, o da Verdade, mui arriscado, portanto: precisas de apanhar um barco que te leve daqui…
Transcreve-se, no programa, a conversa entre Eunice Muñoz, Pedro Caeiro e Carlos Avilez, uma conversa dirigida por Miguel Graça, que teve a seu cargo a dramaturgia da peça. Elucidativa. A ler. Fixei-me sobretudo numa palavra: os ensaios. A força e o importante papel que eles desempenharam. É que interpretações assim – do encenador, dos actores, do cenógrafo, de toda a equipa… – constituem desafio único, inesquecível. Inesquecível para quem as viveu; inesquecível para quem teve a dita de os apreciar.
Seguramente – e temo estar a segurar-me a um lugar-comum, que o não é… – uma das mais bem conseguidas realizações do TEC. Dar os parabéns é muito pouco! Aplauda-se de pé durante longos minutos!
Publicado no Jornal de Cascais, nº 256, 02-03-2011, p. 6.
Pensei em Tibério, ao ver O Comboio da Madrugada, de Tennessee Williams, a peça que o Teatro Experimental de Cascais estreou no dia 18, porque é por ali, nesse golfo de Nápoles, cenário de todas as elucubrações e muitos sonhos, que se passam os últimos dias de Flora Goforth, a protagonista, vivida aqui numa das mais portentosas interpretações de Eunice Muñoz. E qualificar de «portentosa» é pouco, diga-se desde já, porque Eunice está em palco do princípio ao fim e incarna a personagem com tal ‘naturalidade’ (!) que nos extasia.
O silêncio, o marulhar das ondas, a brisa forte e fresca… essa solidão em que, para fugir dos outros e de si, Flora se refugiou, guardada por mastins e uma segurança feroz – que «os passaportes expiram e os convites também!»… Ali poderia reflectir melhor sobre o significado da vida e o significado da morte… Realidade difícil de enfrentar: «Tens uns belos dentes… São postiços?»…
‒ De que anda à procura?
‒ Gostaria tanto de umas torradas com açúcar para acompanhar o meu café!...
O café, porém, tem de tomar-se simples, «porque o comboio da madrugada, que traz o leite, já não pára mais aqui»…
Flora Goforth pressente, contudo, que está bem perto do fim. Christopher Flanders (Pedro Caeiro, outra magnífica interpretação) é, afinal, não um amante mais a seduzir mas o beijo do anjo da morte. Ela suspeita-o. E tudo se passa, afinal, nesta luta entre dar esse beijo inexorável agora, mais tarde, e em que circunstâncias… Que «a verdade é uma coisa muito frágil, muito perigosa… É nitroglicerina, deve-se manejá-la com muito cuidado!...». Um jogo, esse, o da Verdade, mui arriscado, portanto: precisas de apanhar um barco que te leve daqui…
Transcreve-se, no programa, a conversa entre Eunice Muñoz, Pedro Caeiro e Carlos Avilez, uma conversa dirigida por Miguel Graça, que teve a seu cargo a dramaturgia da peça. Elucidativa. A ler. Fixei-me sobretudo numa palavra: os ensaios. A força e o importante papel que eles desempenharam. É que interpretações assim – do encenador, dos actores, do cenógrafo, de toda a equipa… – constituem desafio único, inesquecível. Inesquecível para quem as viveu; inesquecível para quem teve a dita de os apreciar.
Seguramente – e temo estar a segurar-me a um lugar-comum, que o não é… – uma das mais bem conseguidas realizações do TEC. Dar os parabéns é muito pouco! Aplauda-se de pé durante longos minutos!
Publicado no Jornal de Cascais, nº 256, 02-03-2011, p. 6.
Proximidade e vizinhança
O macabro achado, nos primeiros dias de Fevereiro, do cadáver duma idosa, falecida há nove anos, no seu apartamento da Rinchoa (Sintra), onde vivia com o seu cão – que também foi encontrado morto –, veio pôr o dedo na grave ferida de que padece o mundo actual: a solidão da velhice.
Já há alguns meses atrás, a RTP passara a reportagem «Este País não é para velhos», a abordar esse tema lancinante da quebra de laços familiares e de vizinhança.
Por incrível que pareça, há filhos que, tendo sido criados e sustentados pelos pais, os deixam viver e morrer ao abandono. Se calhar, não será tão incrível assim, quando, no dia-a-dia, vemos quem muito deve aos seus professores, tenta legislar (e legisla!) para deitar abaixo essa classe profissional. É a vida!...
O que falhou na Rinchoa? Tudo, já se disse. Houve, porém, uma falha que – até ao momento em que redijo estas linhas – não vi apresentada: falhou a Comunicação Social de proximidade!
Aquela vizinha, em vez de ir apenas ao posto da GNR e aos correios (e muito ela fez, coitada, sem que lhe dessem ouvidos e até zombassem dela!...), deveria ter posto a boca no trombone, como sói dizer-se, e bater a tudo quanto era redacção de jornal, de rádio, de televisão! E não desgrudava enquanto a notícia não saísse, enquanto a opinião pública não fosse alertada e se mexesse!
Para isso serve a rádio local, o jornal local: para cimentar comunidade, para insistir, insistir, como água em pedra dura!... De certeza que, alerta dado, duas semanas só passadas que fossem, o caso da Rinchoa não teria chegado aonde chegou.
Que a lição seja aprendida!
Publicado no quinzenário de Mangualde, Renascimento, nº 565, 01-03-2011, p. 13.
Já há alguns meses atrás, a RTP passara a reportagem «Este País não é para velhos», a abordar esse tema lancinante da quebra de laços familiares e de vizinhança.
Por incrível que pareça, há filhos que, tendo sido criados e sustentados pelos pais, os deixam viver e morrer ao abandono. Se calhar, não será tão incrível assim, quando, no dia-a-dia, vemos quem muito deve aos seus professores, tenta legislar (e legisla!) para deitar abaixo essa classe profissional. É a vida!...
O que falhou na Rinchoa? Tudo, já se disse. Houve, porém, uma falha que – até ao momento em que redijo estas linhas – não vi apresentada: falhou a Comunicação Social de proximidade!
Aquela vizinha, em vez de ir apenas ao posto da GNR e aos correios (e muito ela fez, coitada, sem que lhe dessem ouvidos e até zombassem dela!...), deveria ter posto a boca no trombone, como sói dizer-se, e bater a tudo quanto era redacção de jornal, de rádio, de televisão! E não desgrudava enquanto a notícia não saísse, enquanto a opinião pública não fosse alertada e se mexesse!
Para isso serve a rádio local, o jornal local: para cimentar comunidade, para insistir, insistir, como água em pedra dura!... De certeza que, alerta dado, duas semanas só passadas que fossem, o caso da Rinchoa não teria chegado aonde chegou.
Que a lição seja aprendida!
Publicado no quinzenário de Mangualde, Renascimento, nº 565, 01-03-2011, p. 13.