Teve despretensioso e anódino título, «Doação de artefacto de história marítima ao Museu do Mar Rei D. Carlos», a proposta nº 965/2011, apresentada pela Senhora Vereadora da Cultura na reunião camarária de 3 de Outubro, p. p.
Inserem-se os considerandos no estilo habitual de propostas congéneres: é vocação deste museu contribuir, inclusive mediante o enriquecimento das suas colecções, para documentar o que foi a gesta marítima nacional; por isso, a proposta ia no sentido de se «aceitar a doação de Maria Leonor Vieira de Novais e Castilho Monteiro, constituída por uma placa de agradecimento oferecida em 1898, por cidadãos brasileiros e portugueses de S. Paulo ao comandante português Augusto de Castilho, pelo seu papel na revolta da armada brasileira de 1894».
Não consta que tenham sido feitos quaisquer comentários durante a reunião, pensando os mui dignos vereadores que se tratava de mais uma das muitas doações que felizmente se destinam àquele museu, repositório da nossa tradição de pescadores e mareantes. Foi, por isso, aprovada, sem mais, por unanimidade. Decerto a algum o nome Augusto de Castilho não terá soado a desconhecido, por ser nome de arruamentos, aqui e além, na zona da Grande Lisboa, ou por ter havido uma corveta da Armada Portuguesa baptizada com esse nome…
Não se trata, porém, de uma doação vulgar.
O gesto heróico
A preciosa placa, oferecida ao Museu do Mar por uma sobrinha do homenageado, através da intervenção directa de um dos sócios do Grupo de Amigos, explicita, na inscrição junto ao anagrama de Augusto de Castilho (Augusto Vidal de Castilho Barreto e Noronha, de seu nome completo, nascido em Lisboa a 10 de Outubro de 1841, cidade onde viria a falecer a 30 de Março de 1912):
«Heróico comandante da Mindelo e da Affonso de Albuquerque em 1894 nas águas do Rio de Janeiro. Homenagem de Brasileiros e Portuguezes residentes em S. Paulo. 6-12-98».
Que se passou, então, com este brioso militar da Marinha Portuguesa?
Nesse ano de 1894, comandava Augusto de Castilho esses dois vasos de guerra, ancorados no porto do Rio de Janeiro, quando rebentou a rebelião no seio da esquadra brasileira contra o governo de Floriano Peixoto, que instalara a República. Uma revolta que motivou intensa actividade diplomática, gerida de modo especial pelo Conde de Paço d’Arcos, Carlos Eugénio Correia da Silva, o primeiro diplomata português nesse Brasil recém-republicano, uma vez que os portugueses foram de imediato considerados apoiantes dos revoltosos monárquicos e conservadores.
Esmagada a revolta, 493 brasileiros, incluindo cerca de 70 oficiais e o respectivo cabecilha, o almirante Saldanha da Gama, pediram asilo a bordo. Augusto de Castilho não hesitou em o conceder. E, não obstante os enormes protestos das autoridades brasileiras, que faziam temer o pior, zarpou da Baía de Guanabara e rumou para o Rio da Prata, onde procedeu ao desembarque da quase totalidade dos refugiados.
Tal decisão foi, por conseguinte, muito mal vista pelas autoridades brasileiras; invocou-se violação da soberania; e chegou-se mesmo ao extremo de se concretizar o corte das relações diplomáticas entre os dois países, como o historiador Adelar Heinsfeld muito bem frisou, por ocasião do XXIV Simpósio Nacional de História, que, sob o tema «História e Multidisciplinaridade: territórios e deslocamentos», se reuniu em Julho de 2007, na cidade de São Leopoldo, Rio Grande do Sul (Brasil), na comunicação intitulada "A ruptura diplomática Brasil-Portugal: um aspecto do americanismo do início da República brasileira".
O testemunho no Museu do Mar
Tendo herdado de seus pais esta placa de homenagem e considerando que se tratava de documento a resguardar num museu, Maria Leonor Castilho Monteiro, que tem casa em Cascais, optou, pois, pelo Museu do Mar como destinatário da sua doação.
Trata-se, na verdade, de um testemunho que, ainda que pertença de uma família concreta, acaba por ser de grande significado histórico, que vale também pelo seu carácter invulgar: não vem, decerto, nos livros que esta homenagem fora prestada quatro anos depois, prova de que a coragem do comandante se perpetuou na memória de quantos dela puderam beneficiar.
São gestos como estes que cumpre sublinhar – porque é também para resgatar memórias que existem os museus.
[Publicado no Jornal de Cascais, nº 294, 14-12-2011, p. 6].
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